O confuso texto de frei Leonardo Boff que aqui foi publicado no Domingo é um claríssimo exemplo (literariamente medíocre) de uma atitude intelectual muito comum nas análises da sociedade apresentadas em público por quem vagamente aspira à “mudança global” dela, sem ter a menor noção de como a alterar e, principalmente, sem ter (e principalmente sem querer ter, ou sabendo que em qualquer caso não terá) a menor responsabilidade na condução prática da sua alteração. Vale a pena, por isso mesmo, determo-nos um pouco nele (poderíamos encontrar milhares do mesmo género), e em alguns grandes equívocos intelectuais do nosso tempo de que ele é amostra banal. A primeira tarefa, como um frade cristão deve saber, é sempre a de separar o trigo do joio.Sob a superfície de uma linguagem amena e acessível e de alguma ironia, e pretendendo capitalizar (como é difícil fugir à lógica da acumulação…) a perfeitamente compreensível consternação com que os povos do mundo (e os seus leitores entre eles) assistem, desde há quatro meses, ao desabar do império bancário-financeiro mundial, frei Boff, que compreensivelmente não teve tempo para inventar a pólvora, construiu a sua argumentação sobre terreno já muito batido. Neste texto, procurarei chamar a atenção para quatro pontos principais:- Boff assenta em pressupostos intelectuais (filosóficos e científicos) errados, quando a manutenção desses pressupostos, que são erros característicos dos “séculos optimistas” do pensamento ocidental, apenas agravam, em vez de contribuírem para superar, a nossa dificuldade em nos centrarmos no tipo de mudanças que cada vez mais são indispensáveis, urgentes e inadiáveis. A esses erros podemos chamar “construtivismo”: a falácia segundo a qual podemos, a qualquer momento, “construir” ou “reconstruir” uma sociedade.- Boff confunde a ciência económica com o capitalismo, este com os modelos seguidos nas últimas décadas pelos governos europeus e norte-americano, estes com a defesa ideológica (e nada desinteressada) da especulação financeira dos anos 1990-2008, e esta com a doutrina económica liberal enquanto ideologia da liberdade; e fazê-lo agora contribui, mais do que em qualquer outra época, para minar liberdade dos povos, das nações e dos indivíduos. É pouquíssimo o que resta da liberdade, e ela é demasiado preciosa para ser agora atacada.- Boff pactua (no mínimo) com uma das modas intelectuais mais perigosas do “ocidente”, que é a do recurso permanente a uma linguagem pseudo-científica e pseudo-erudita como argumento puramente retórico, destinado essencialmente a impressionar o auditório (cientifica e filosoficamente analfabeto, como resulta do tipo de educação prevalecente) com a “ultima palavra da ciência” e, por essa via, a legitimar uma crítica que se não pode apresentar como aquilo que realmente é (uma crítica política). Hoje, a escala imensa dos problemas com que nos deparamos, a sua inaudita complexidade e a falta de preparação intelectual e científica da maior parte das pessoas para os debater ou, sequer, para entender aquilo que é o objecto do debate, tornam indesculpável tudo o que não seja uma discussão honesta e uma apresentação isenta dos problemas e dos caminhos de solução (nos poucos casos em que os haja já pressentidos). Hoje não é admissível nada que não seja a clareza e a honestidade.- Boff, finalmente, com o seu permanente apelo à “escolha” global de uma “outra” sociedade (?) está apenas (no plano puramente político) a desempenhar um papel completamente reaccionário, semelhante àquele que as igrejas instituídas do Ocidente desempenharam ao longo de séculos: colocando o “plano de salvação” fora deste mundo e a felicidade dependente de uma “Jerusalém Celeste” que nos há-de ser dada por inteiro ou inteiramente forjada de raiz (vai dar ao mesmo), contribui para a fortíssima corrente dos apelos – esses sim, perigosamente “suicidas” – à desintegração do conjunto do sistema social . Este não é uma ditadura, (embora as inclua) nem o resultado de uma escolha global (embora resulte de milhões delas, quotidianas) : é um sistema cuja sobrevivência depende de valores éticos partilhados e de um estado de confiança recíproca entre os homens, ética e confiança essas que se constroem no quotidiano e principalmente dependem da aceitação, como ponto de partida para a transformação do mundo que temos, da realidade e da outorga de valor ao mundo que temos.É, por isso, a argumentação de Boff, exactamente o tipo de argumentação de que não precisamos.(continua)
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O confuso texto de frei Leonardo Boff que aqui foi publicado no Domingo é um claríssimo exemplo (literariamente medíocre) de uma atitude intelectual muito comum nas análises da sociedade apresentadas em público por quem vagamente aspira à “mudança global” dela, sem ter a menor noção de como a alterar e, principalmente, sem ter (e principalmente sem querer ter, ou sabendo que em qualquer caso não terá) a menor responsabilidade na condução prática da sua alteração. Vale a pena, por isso mesmo, determo-nos um pouco nele (poderíamos encontrar milhares do mesmo género), e em alguns grandes equívocos intelectuais do nosso tempo de que ele é amostra banal. A primeira tarefa, como um frade cristão deve saber, é sempre a de separar o trigo do joio.Sob a superfície de uma linguagem amena e acessível e de alguma ironia, e pretendendo capitalizar (como é difícil fugir à lógica da acumulação…) a perfeitamente compreensível consternação com que os povos do mundo (e os seus leitores entre eles) assistem, desde há quatro meses, ao desabar do império bancário-financeiro mundial, frei Boff, que compreensivelmente não teve tempo para inventar a pólvora, construiu a sua argumentação sobre terreno já muito batido. Neste texto, procurarei chamar a atenção para quatro pontos principais:- Boff assenta em pressupostos intelectuais (filosóficos e científicos) errados, quando a manutenção desses pressupostos, que são erros característicos dos “séculos optimistas” do pensamento ocidental, apenas agravam, em vez de contribuírem para superar, a nossa dificuldade em nos centrarmos no tipo de mudanças que cada vez mais são indispensáveis, urgentes e inadiáveis. A esses erros podemos chamar “construtivismo”: a falácia segundo a qual podemos, a qualquer momento, “construir” ou “reconstruir” uma sociedade.- Boff confunde a ciência económica com o capitalismo, este com os modelos seguidos nas últimas décadas pelos governos europeus e norte-americano, estes com a defesa ideológica (e nada desinteressada) da especulação financeira dos anos 1990-2008, e esta com a doutrina económica liberal enquanto ideologia da liberdade; e fazê-lo agora contribui, mais do que em qualquer outra época, para minar liberdade dos povos, das nações e dos indivíduos. É pouquíssimo o que resta da liberdade, e ela é demasiado preciosa para ser agora atacada.- Boff pactua (no mínimo) com uma das modas intelectuais mais perigosas do “ocidente”, que é a do recurso permanente a uma linguagem pseudo-científica e pseudo-erudita como argumento puramente retórico, destinado essencialmente a impressionar o auditório (cientifica e filosoficamente analfabeto, como resulta do tipo de educação prevalecente) com a “ultima palavra da ciência” e, por essa via, a legitimar uma crítica que se não pode apresentar como aquilo que realmente é (uma crítica política). Hoje, a escala imensa dos problemas com que nos deparamos, a sua inaudita complexidade e a falta de preparação intelectual e científica da maior parte das pessoas para os debater ou, sequer, para entender aquilo que é o objecto do debate, tornam indesculpável tudo o que não seja uma discussão honesta e uma apresentação isenta dos problemas e dos caminhos de solução (nos poucos casos em que os haja já pressentidos). Hoje não é admissível nada que não seja a clareza e a honestidade.- Boff, finalmente, com o seu permanente apelo à “escolha” global de uma “outra” sociedade (?) está apenas (no plano puramente político) a desempenhar um papel completamente reaccionário, semelhante àquele que as igrejas instituídas do Ocidente desempenharam ao longo de séculos: colocando o “plano de salvação” fora deste mundo e a felicidade dependente de uma “Jerusalém Celeste” que nos há-de ser dada por inteiro ou inteiramente forjada de raiz (vai dar ao mesmo), contribui para a fortíssima corrente dos apelos – esses sim, perigosamente “suicidas” – à desintegração do conjunto do sistema social . Este não é uma ditadura, (embora as inclua) nem o resultado de uma escolha global (embora resulte de milhões delas, quotidianas) : é um sistema cuja sobrevivência depende de valores éticos partilhados e de um estado de confiança recíproca entre os homens, ética e confiança essas que se constroem no quotidiano e principalmente dependem da aceitação, como ponto de partida para a transformação do mundo que temos, da realidade e da outorga de valor ao mundo que temos.É, por isso, a argumentação de Boff, exactamente o tipo de argumentação de que não precisamos.(continua)