NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: Orientação

07-08-2010
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Kabissi Remos, " No Horizonte ", areia s/ tela E outra mulher chamando o Deus Infante: «- Quem és ti? Quem és tu?» «-Inês, eis o meu nome de baptismo; Amor, eis o meu nome de natura. «Amei, amei, amei, perdidamente! Mas – ai – a Sombra negra, enfurecida, Apanhou-me de súbito, e arrastou-me Pelos soltos cabelos para a cova!» E Inês, olhando a Turba, Tornou-se branca e trémula, gritando! E Deus lhe perguntou: « - quem é que viste?» «- Quem me feriu de morte...» E Deus chamou esse homem, que lhe diz: «- Matei-a, sim! Fui eu! Fui eu, Senhor! (As palavras saíam-lhe da boca, Turvadas, como vinho que referve) Matei-a, sim! Matei-a! O meu punhal Tocou-lhe o coração, no mesmo sítio Em que é gerado o amor! Matei-a, sim, Pelo desejo apenas de matar! «A alegria feroz do sangue vivo, Manando duma viva chaga aberta! Oh prazer de matar!... E todavia Vê tu como sou triste! Ah, se eu pudesse Libertar-me de mim?! Ficar sozinho Com a alegria doida que em meus olhos Punha a imagem do sangue... a flor vermelha?! «Vê tu a palidez da minha face! Meu negro olhar tombando em linha recta, Asa amaldiçoada e fulminada! «E repara depois na minha vítima! Nos seus olhos azuis! Como eles são Azuis! E transparentes de inocência!...» E o novo Deus, confuso: «- A letra de meu Pai é indecifrável... Suas divinas mãos já lhe tremiam Quando escreveu outrora a alma humana. «Vai: põe o teu pecado na Balança.» |Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, Assírio e Alvim, Lisboa, 1986, pp.158-160. _____ “A Obra é o eterno, o perfeito, o único Drama. A vida é liberdade; é, por isso, mal e bem; é, por isso, eterna mobilidade da exaltação divina. O criminoso tem terceira pessoa; Deus é também a trindade, pois Deus é a condição do Drama. Essa terceira pessoa excede o criminoso, essa terceira pessoa excede Deus em Deus.” Leonardo Coimbra, “Teixeira de Pascoais”, in Dispersos – I, Poesia Portuguesa, Editorial Verbo, 1984, p. 79. _____“Finda a estranha Audiência, o novo Deus Tomou na mão direita e luminosa Os transbordantes pratos da Balança; E, num gesto quimérico e sublime, Feito do seu divino e heróico esforço, Arremessou-os ao busto enevoado, Crespuscular do sol! E, de repente, O véu sombrio que o velava em fumo Se dissolveu, na abóboda infinita. E um dilúvio de virgem claridade, Mais profundo que o bíblico Dilúvio, Alastrando, cobriu a Terra inteira!” Teixeira de Pascoaes, Idem, p. 162. ____ A bússola e a balança, dois símbolos aproximáveis e sujeitos à anamorfose logométrica resultante da apropriação metafísica do sentido, por parte duma Razão alucinada, submetida à sublimação do desejo, instaurando-se como poder-ser, assumindo a realidade como foco objectal de investimento reificante e enclausurante. Trata-se aqui de dois símbolos associados às dicotomias e à territorialização da fruição do mundo. Símbolos que, se não forem transcendidos, usando a excessividade inerente ao seu funcionamento que pressupõe um terceiro elemento, inapreensível, instaurador da possibilidade de relação entre opostos, acabam por estabelecer a dualidade como critério de apropriação da realidade. É o que nós encontramos nestas passagens do Regresso ao Paraíso: a balança, usada para pesar os pecados, no fundo, todos eles imponderáveis, é arremessada contra o sol, esse símbolo-Rei da metafísica ocidental, heliotrópica e submetida a uma espacialidade ontológica disjuntiva, possibilitadora do que Heidegger pensou sob o signo da diferença ontológica: a desapropriação do ser nos entes e a sua impossível, sempre reiterada, reapropriação, posto que há a excessividade que não é ferida pela hybris (da) metafísica. Esse o campo do que não se deixa pensar por meio da apropriação judicativa da Ratio calculadora, que se instaura a si própria como tribunal, encarnação desencarnada da Justiça. E essa Razão teodiceica, assume-se, a partir da modernidade, como centro de orientação do pensar, fonte, afinal, da mais radical desorientação, uma vez que deixa nas margens da sua afirmação zonas de sombra que formam ilhas de ultra-sentido, impensáveis e inapropriáveis. E quanto mais o campo do pensável se restringe por via da castração onto-teológica a que a Razão a si própria se submete, mais o domínio da apropriação noética do real se assemelha a um arquipélago abismado num vasto oceano insondável. Assim, a Metáfora que anima, pelo menos desde Parménides e Platão, o esforço de apropriação logóica do pensável e, a partir daí, da delimitação do impensável e do impossível, transforma-se em Metástase1. A distinção ricoueuriana entre metáfora viva e metáfora morta, recorrendo, ainda aí à metaforicidade do discurso filosófico, não anula os entre-espelhamentos entre textos que, mesmo com orientações distintas, recorrem às mesmas metáforas e subscrevem, muitas vezes recalcando-os, os mesmos complexos simbólicos. E tendo em conta que a apropriação da vida e das vivências se faz a partir da metaforicidade do textual, os sentidos desvirtuados pelo esforço de higienização judicativa invadem a esfera do experienciável, a todos os níveis em que se situe a experiência humana do mundo. O que chamamos, talvez impropriamente, Metafísica Ocidental, é hoje um complexo civilizacional em implosão, num colapso semântico resultante duma imposição totalitária duma experiência do sentido geradora de cisão e de diversão em relação ao centro incircunscriptível que torna vãs todas as tentativas de orientação que se queiram imunes à errância e à mais absoluta perdição. Talvez se possa compreender a partir daqui José Marinho quando afirma que os pensadores portugueses são contemporâneos dos pré-socráticos. Ora, um dos afloramentos do Impensado, precisamente por ser manifestação, paradoxal, do que não de deixa apropriar metafisicamente, é o imotivado do amor e do crime. Estas duas experiências-limite não nascem duma intencionalidade, são sem razão. A práxis do bem e a práxis do mal equi-valem-se. São auto-referênciais e concomitantes, instauram, assim, uma poética da mera fruição, insulada da sua radicação numa instância absolutiva na qual não há bem nem mal, apenas desorientação de duas dinamicidades que divergem a partir do mesmo foco de legitimação e que, vistas a partir daí, desse ponto de vista impossível, são co-vertentes e, talvez, convergentes. E é esta anamorfose da Razão que acaba por erudir o fundamento impossível dum pensamento que, desde o início se quer orientado. Slavoj Zizek cita, a este propósito, Edgar Allan Poe: «... é na realidade, um móbil sem motivo, um motivo não motivado. So os seus incitamentos agimos sem um fim compreensível, ou, se se considerar tal uma contradição nos termos, poderemos modificar a proposição e dizer que, sob os seus incitamentos, agimos pela razão de que não deveríamos agir. Em teoria, nenhuma razão pode ser mais insensata; mas, com efeito, nenhuma outra há mais forte... Tão certamente como que respiro, sei que é na certeza do equívoco ou do erro de uma qualquer acção que reside amiúde a força irresistível, a única a impelir-nos à sua prossecução. Esta inclinação invencível a fazer o mal pelo próprio mal não se deixará analisar ou resolver em elementos posteriores. É um impulso radical, primitivo, elementar.”2 Este jogo, já que é disso que se trata, uma vez que a lógica do jogo remete para o imotivado e é auto-referencial, explica a razão pela qual a moral, ao proibir, acaba por ser uma causa de transgressão. Por essa razão a justiça, encarada como exercício da Razão ponderada, não pode reparar o mal, antes o perpetua, ao reactualizar, e ritualizar, a sua dinamicidade atópica comparando-o com o bem, sua contraparte legitimadora. A justiça, encarada deste modo, se bem que se queira orientada, é, em si própria imotivada e a sua eficácia sai do campo da ética para entrar no campo, igualmente patológico, da líbido “desinteressada”, esse buraco negro que alimenta as pulsões narcísicas do homem ocidental, do homem verdadeiramente ocidental, por mais contraditório que isso seja, que se encara a si próprio como a encarnação duma Razão universal e orientada para o bem e que encara a moral como uma jaula translúcida que cerceia a manifestação dos instintos animalescos que põem em causa a ordem social. Contrariamente à visão freudiana, talvez seja profícuo encarar as dinamicidades eróticas, tal como são vividas nas sociedades ocidentais (do norte ou do sul do Mediterrânio, posto que as culturas islâmicas são ocidentais, fazem parte da Civilização Ocidental, pelo que a Turquia talvez seja o país mais ocidentalizado do mundo) como emanações do Desejo, instância só pensável a partir do entorno civilizacional, ou cultural, isto porque o Desejo não será uma afirmação da vida, da vida sem determinações noéticas e axiológicas (se a pensarmos a partir da dicotomia Nomos/Physis), da vida pura e simples da mais “inocente” animalidade, que apareceria como a sobrevivência, dentro do tecido sócio-cultural, do outro inapreensível, “selvagem” na sua espontaneidade imotivada se vista em comparação com a intencionalidade do comportamento racional, ou racionalizado. O Desejo é, já e sempre, uma instância moral e onde não houver moral não haverá Desejo. Por isso o Amor de Inês aparece, na sua atopia libidinal como o que tem em si o próprio da soberania, o não depender de nada que lhe seja superior, ou de depender do Nada como sua razão de ser e como sua causalidade intrínseca, daí o surgir como uma ameaça à ordem política estabelecida, por estar para além do desejo e por desmascarar as instâncias representativas do Bem Soberano, visto a partir de agora como um simulacro e um arremedo. A morte de Inês é um dos primeiros actos de manifestação alética do poder político como Impotência: ao procurar aniquilar o outro, investindo-o do estatuto de encarnação do mal radical, acaba por ser o veículo de consumação desse mal radical, tão a fim do Bem fruído como perdição anipotética: «Amei, amei, amei, perdidamente». Perdição para além da possibilidade de redenção ou de orientação. E é importante notar que o Amor de Inês, é o amor de Inês, que surge aqui como o indivíduo absoluto, para além da economia narcísica e das suas metástases eróticas. Inês não é identificável à Dama do Amor Cortês que assumia o papel objectal de alvo legitimador da eroticidade masculina, exacerbada pela castração simbólica e pela submissão masoquista aos jogos de dominação que transformavam a Dama na encarnação do mal absoluto, ao proporcionar ao seu amante a possibilidade de viver o desejo para lá das constrições sociais e biológicas das pulsões e da consumação física do amor: “O paradoxo da Dama no amor cortês equivale em última instância ao paradoxo do desvio: o nosso desejo «oficial» é queremos deitar-nos com a Dama, quando, na verdade, nada há que temamos mais do que uma Dama que pudesse generosamente ceder a esse desejo nosso – o que deveras esperamos da Dama é um anova ordália, um adiamento mais. <...> A Dama funciona, então, como um curto-circuíto único, em que o Objecto de desejo coincide com a força que o impede de o alcançar: de certa maneira, o objecto «é» a sua própria retirada, o seu próprio retrair-se.”3 Esta retracção, compaginável com a tematização teológica em torno do Deos absconditus, funda a possibilidade de erecção de identidades metafísicas que funcionam dentro da economia da castração, entre as quais podemos incluir certas hipostasiações como a ideia de Pátria fascista e até o culto da personalidade do líder, comum nas sociedades de matriz fascista ou comunista. O líder aparece como encarnação do indivíduo absoluto, mas sempre como uma sua mistificação, enquanto máscara omnipresente, cerceadora da possibilidade de endeusamento narcísico dos indivíduos na sua relação egótica com a colectividade. O amor de Inês desmascara por revelar a individualidade não subjugável pela ordem política da Heliópolis dominadora, de carácter masculino e assente numa economia da suspensão da vida fruível no Desejo assente na da repressão da diacosmese feminina, úbere de possibilidades de desvelamento e de afirmação da Intimidade caótica e disseminadora, absolutiva e irredutível a uma Fala logocêntrica ou a uma práxis despossuída de âmago, precisamente a abertura, a partir dum punctus que escapa a todas as geometrias e cronometrias, ao que aos olhos escancaradamente fechados, namoro aqui Kubric, do Sujeito cartesiano aparece como vacuidade, pura e simples, mas que aos olhos absortos da diacosmese do Amor-só-Isso, só-Tudo, se assume como a patência da co-pertença de tudo em tudo, a co-determinação de tudo por tudo, o Nada que é Tudo e que em Tudo advém, aquém e para além dum “Si” vivenciável como subjectividade-objectivante. Por sua vez é o olhar do criminoso que desvela a inocência da sua vítima, a partir da impecabilidade de Tanathos, essa fundura que permite traçar, como que em decalque a carvão, a arqueologia do Desejo, apresentado como um palimpsesto da Fala divina, irregular, impossível de abranger pelas pautas rectilíneas das metafísicas solares. É essa troca de olhares, sob o fundo duma estética difusa que prepara a economia do voyeurismo do circo mediático actual, que faz adivinhar a transbordância dum outro olhar, instante e insubmisso, que se afunda no abismo da sua paradoxal vigência enquanto Rosto invertido, a “terceira pessoa”, puro excesso que vertiginosamente se rasga e tudo solta de si, fazendo que as rodas do carro alado de Hélios saltem dos trilhos da Necessidade instando o ser e o pensar à desorientação seminal.________Notas: 1Sigo aqui de forma muito livre o projecto de Slavoj Zizek, As Metástases do Gozo, Seis ensaios sobre a mulher e a Causalidade, Trad. de Miguel Serras Pereira, Relógio D'água, Lisboa, 2006. 2Edgar Allan poe, “O Demómio da Perversidade”, cit. In Slavoj Zizec, Op. Cit., p. 29. 3Slavoj Zizec, Op. Cit., p. 26. É irresistível citar a continuação desta passagem: “Este contexto permite-nos compreender o muito mencionado, e não menos mal interpretado, valor «fálico» da mulher, segundo Lacan – a sua equação Mulher=Falo. O mesmo é dizer que precisamente o mesmo paradoxo caracteriza o significante fálico enquanto significante da castração. «A castração significa que o gozo deve ser rejeitado, de maneira a poder ser alcançado na escala invertida da Lei do desejo». Como se torna exequível este «paradoxo económico», como pode a mecânica do desejo ser «posta em andamento», quer dizer: como pode o sujeito ser levado a renunciar ao gozo não por uma outra Causa, mais elevada, mas tendo simplesmente o fim de a ele aceder? Ou – citando agora a formulação hegeliana do mesmo paradoxo -, como é que, só perdendo-a, podemos alcançar a identidade? Não há senão uma solução para este problema: o falo, o significante do gozo, tinha de ser simultaneamente o significante da «castração» - ou seja, um único e mesmo significante tinha de significar tanto o gozo como a sua perda. Deste modo , torna-se possível que a única instância que nos persuade a buscar o gozo nos induza a renunciar a ele.”


Kabissi Remos, " No Horizonte ", areia s/ tela E outra mulher chamando o Deus Infante: «- Quem és ti? Quem és tu?» «-Inês, eis o meu nome de baptismo; Amor, eis o meu nome de natura. «Amei, amei, amei, perdidamente! Mas – ai – a Sombra negra, enfurecida, Apanhou-me de súbito, e arrastou-me Pelos soltos cabelos para a cova!» E Inês, olhando a Turba, Tornou-se branca e trémula, gritando! E Deus lhe perguntou: « - quem é que viste?» «- Quem me feriu de morte...» E Deus chamou esse homem, que lhe diz: «- Matei-a, sim! Fui eu! Fui eu, Senhor! (As palavras saíam-lhe da boca, Turvadas, como vinho que referve) Matei-a, sim! Matei-a! O meu punhal Tocou-lhe o coração, no mesmo sítio Em que é gerado o amor! Matei-a, sim, Pelo desejo apenas de matar! «A alegria feroz do sangue vivo, Manando duma viva chaga aberta! Oh prazer de matar!... E todavia Vê tu como sou triste! Ah, se eu pudesse Libertar-me de mim?! Ficar sozinho Com a alegria doida que em meus olhos Punha a imagem do sangue... a flor vermelha?! «Vê tu a palidez da minha face! Meu negro olhar tombando em linha recta, Asa amaldiçoada e fulminada! «E repara depois na minha vítima! Nos seus olhos azuis! Como eles são Azuis! E transparentes de inocência!...» E o novo Deus, confuso: «- A letra de meu Pai é indecifrável... Suas divinas mãos já lhe tremiam Quando escreveu outrora a alma humana. «Vai: põe o teu pecado na Balança.» |Teixeira de Pascoaes, Regresso ao Paraíso, Assírio e Alvim, Lisboa, 1986, pp.158-160. _____ “A Obra é o eterno, o perfeito, o único Drama. A vida é liberdade; é, por isso, mal e bem; é, por isso, eterna mobilidade da exaltação divina. O criminoso tem terceira pessoa; Deus é também a trindade, pois Deus é a condição do Drama. Essa terceira pessoa excede o criminoso, essa terceira pessoa excede Deus em Deus.” Leonardo Coimbra, “Teixeira de Pascoais”, in Dispersos – I, Poesia Portuguesa, Editorial Verbo, 1984, p. 79. _____“Finda a estranha Audiência, o novo Deus Tomou na mão direita e luminosa Os transbordantes pratos da Balança; E, num gesto quimérico e sublime, Feito do seu divino e heróico esforço, Arremessou-os ao busto enevoado, Crespuscular do sol! E, de repente, O véu sombrio que o velava em fumo Se dissolveu, na abóboda infinita. E um dilúvio de virgem claridade, Mais profundo que o bíblico Dilúvio, Alastrando, cobriu a Terra inteira!” Teixeira de Pascoaes, Idem, p. 162. ____ A bússola e a balança, dois símbolos aproximáveis e sujeitos à anamorfose logométrica resultante da apropriação metafísica do sentido, por parte duma Razão alucinada, submetida à sublimação do desejo, instaurando-se como poder-ser, assumindo a realidade como foco objectal de investimento reificante e enclausurante. Trata-se aqui de dois símbolos associados às dicotomias e à territorialização da fruição do mundo. Símbolos que, se não forem transcendidos, usando a excessividade inerente ao seu funcionamento que pressupõe um terceiro elemento, inapreensível, instaurador da possibilidade de relação entre opostos, acabam por estabelecer a dualidade como critério de apropriação da realidade. É o que nós encontramos nestas passagens do Regresso ao Paraíso: a balança, usada para pesar os pecados, no fundo, todos eles imponderáveis, é arremessada contra o sol, esse símbolo-Rei da metafísica ocidental, heliotrópica e submetida a uma espacialidade ontológica disjuntiva, possibilitadora do que Heidegger pensou sob o signo da diferença ontológica: a desapropriação do ser nos entes e a sua impossível, sempre reiterada, reapropriação, posto que há a excessividade que não é ferida pela hybris (da) metafísica. Esse o campo do que não se deixa pensar por meio da apropriação judicativa da Ratio calculadora, que se instaura a si própria como tribunal, encarnação desencarnada da Justiça. E essa Razão teodiceica, assume-se, a partir da modernidade, como centro de orientação do pensar, fonte, afinal, da mais radical desorientação, uma vez que deixa nas margens da sua afirmação zonas de sombra que formam ilhas de ultra-sentido, impensáveis e inapropriáveis. E quanto mais o campo do pensável se restringe por via da castração onto-teológica a que a Razão a si própria se submete, mais o domínio da apropriação noética do real se assemelha a um arquipélago abismado num vasto oceano insondável. Assim, a Metáfora que anima, pelo menos desde Parménides e Platão, o esforço de apropriação logóica do pensável e, a partir daí, da delimitação do impensável e do impossível, transforma-se em Metástase1. A distinção ricoueuriana entre metáfora viva e metáfora morta, recorrendo, ainda aí à metaforicidade do discurso filosófico, não anula os entre-espelhamentos entre textos que, mesmo com orientações distintas, recorrem às mesmas metáforas e subscrevem, muitas vezes recalcando-os, os mesmos complexos simbólicos. E tendo em conta que a apropriação da vida e das vivências se faz a partir da metaforicidade do textual, os sentidos desvirtuados pelo esforço de higienização judicativa invadem a esfera do experienciável, a todos os níveis em que se situe a experiência humana do mundo. O que chamamos, talvez impropriamente, Metafísica Ocidental, é hoje um complexo civilizacional em implosão, num colapso semântico resultante duma imposição totalitária duma experiência do sentido geradora de cisão e de diversão em relação ao centro incircunscriptível que torna vãs todas as tentativas de orientação que se queiram imunes à errância e à mais absoluta perdição. Talvez se possa compreender a partir daqui José Marinho quando afirma que os pensadores portugueses são contemporâneos dos pré-socráticos. Ora, um dos afloramentos do Impensado, precisamente por ser manifestação, paradoxal, do que não de deixa apropriar metafisicamente, é o imotivado do amor e do crime. Estas duas experiências-limite não nascem duma intencionalidade, são sem razão. A práxis do bem e a práxis do mal equi-valem-se. São auto-referênciais e concomitantes, instauram, assim, uma poética da mera fruição, insulada da sua radicação numa instância absolutiva na qual não há bem nem mal, apenas desorientação de duas dinamicidades que divergem a partir do mesmo foco de legitimação e que, vistas a partir daí, desse ponto de vista impossível, são co-vertentes e, talvez, convergentes. E é esta anamorfose da Razão que acaba por erudir o fundamento impossível dum pensamento que, desde o início se quer orientado. Slavoj Zizek cita, a este propósito, Edgar Allan Poe: «... é na realidade, um móbil sem motivo, um motivo não motivado. So os seus incitamentos agimos sem um fim compreensível, ou, se se considerar tal uma contradição nos termos, poderemos modificar a proposição e dizer que, sob os seus incitamentos, agimos pela razão de que não deveríamos agir. Em teoria, nenhuma razão pode ser mais insensata; mas, com efeito, nenhuma outra há mais forte... Tão certamente como que respiro, sei que é na certeza do equívoco ou do erro de uma qualquer acção que reside amiúde a força irresistível, a única a impelir-nos à sua prossecução. Esta inclinação invencível a fazer o mal pelo próprio mal não se deixará analisar ou resolver em elementos posteriores. É um impulso radical, primitivo, elementar.”2 Este jogo, já que é disso que se trata, uma vez que a lógica do jogo remete para o imotivado e é auto-referencial, explica a razão pela qual a moral, ao proibir, acaba por ser uma causa de transgressão. Por essa razão a justiça, encarada como exercício da Razão ponderada, não pode reparar o mal, antes o perpetua, ao reactualizar, e ritualizar, a sua dinamicidade atópica comparando-o com o bem, sua contraparte legitimadora. A justiça, encarada deste modo, se bem que se queira orientada, é, em si própria imotivada e a sua eficácia sai do campo da ética para entrar no campo, igualmente patológico, da líbido “desinteressada”, esse buraco negro que alimenta as pulsões narcísicas do homem ocidental, do homem verdadeiramente ocidental, por mais contraditório que isso seja, que se encara a si próprio como a encarnação duma Razão universal e orientada para o bem e que encara a moral como uma jaula translúcida que cerceia a manifestação dos instintos animalescos que põem em causa a ordem social. Contrariamente à visão freudiana, talvez seja profícuo encarar as dinamicidades eróticas, tal como são vividas nas sociedades ocidentais (do norte ou do sul do Mediterrânio, posto que as culturas islâmicas são ocidentais, fazem parte da Civilização Ocidental, pelo que a Turquia talvez seja o país mais ocidentalizado do mundo) como emanações do Desejo, instância só pensável a partir do entorno civilizacional, ou cultural, isto porque o Desejo não será uma afirmação da vida, da vida sem determinações noéticas e axiológicas (se a pensarmos a partir da dicotomia Nomos/Physis), da vida pura e simples da mais “inocente” animalidade, que apareceria como a sobrevivência, dentro do tecido sócio-cultural, do outro inapreensível, “selvagem” na sua espontaneidade imotivada se vista em comparação com a intencionalidade do comportamento racional, ou racionalizado. O Desejo é, já e sempre, uma instância moral e onde não houver moral não haverá Desejo. Por isso o Amor de Inês aparece, na sua atopia libidinal como o que tem em si o próprio da soberania, o não depender de nada que lhe seja superior, ou de depender do Nada como sua razão de ser e como sua causalidade intrínseca, daí o surgir como uma ameaça à ordem política estabelecida, por estar para além do desejo e por desmascarar as instâncias representativas do Bem Soberano, visto a partir de agora como um simulacro e um arremedo. A morte de Inês é um dos primeiros actos de manifestação alética do poder político como Impotência: ao procurar aniquilar o outro, investindo-o do estatuto de encarnação do mal radical, acaba por ser o veículo de consumação desse mal radical, tão a fim do Bem fruído como perdição anipotética: «Amei, amei, amei, perdidamente». Perdição para além da possibilidade de redenção ou de orientação. E é importante notar que o Amor de Inês, é o amor de Inês, que surge aqui como o indivíduo absoluto, para além da economia narcísica e das suas metástases eróticas. Inês não é identificável à Dama do Amor Cortês que assumia o papel objectal de alvo legitimador da eroticidade masculina, exacerbada pela castração simbólica e pela submissão masoquista aos jogos de dominação que transformavam a Dama na encarnação do mal absoluto, ao proporcionar ao seu amante a possibilidade de viver o desejo para lá das constrições sociais e biológicas das pulsões e da consumação física do amor: “O paradoxo da Dama no amor cortês equivale em última instância ao paradoxo do desvio: o nosso desejo «oficial» é queremos deitar-nos com a Dama, quando, na verdade, nada há que temamos mais do que uma Dama que pudesse generosamente ceder a esse desejo nosso – o que deveras esperamos da Dama é um anova ordália, um adiamento mais. <...> A Dama funciona, então, como um curto-circuíto único, em que o Objecto de desejo coincide com a força que o impede de o alcançar: de certa maneira, o objecto «é» a sua própria retirada, o seu próprio retrair-se.”3 Esta retracção, compaginável com a tematização teológica em torno do Deos absconditus, funda a possibilidade de erecção de identidades metafísicas que funcionam dentro da economia da castração, entre as quais podemos incluir certas hipostasiações como a ideia de Pátria fascista e até o culto da personalidade do líder, comum nas sociedades de matriz fascista ou comunista. O líder aparece como encarnação do indivíduo absoluto, mas sempre como uma sua mistificação, enquanto máscara omnipresente, cerceadora da possibilidade de endeusamento narcísico dos indivíduos na sua relação egótica com a colectividade. O amor de Inês desmascara por revelar a individualidade não subjugável pela ordem política da Heliópolis dominadora, de carácter masculino e assente numa economia da suspensão da vida fruível no Desejo assente na da repressão da diacosmese feminina, úbere de possibilidades de desvelamento e de afirmação da Intimidade caótica e disseminadora, absolutiva e irredutível a uma Fala logocêntrica ou a uma práxis despossuída de âmago, precisamente a abertura, a partir dum punctus que escapa a todas as geometrias e cronometrias, ao que aos olhos escancaradamente fechados, namoro aqui Kubric, do Sujeito cartesiano aparece como vacuidade, pura e simples, mas que aos olhos absortos da diacosmese do Amor-só-Isso, só-Tudo, se assume como a patência da co-pertença de tudo em tudo, a co-determinação de tudo por tudo, o Nada que é Tudo e que em Tudo advém, aquém e para além dum “Si” vivenciável como subjectividade-objectivante. Por sua vez é o olhar do criminoso que desvela a inocência da sua vítima, a partir da impecabilidade de Tanathos, essa fundura que permite traçar, como que em decalque a carvão, a arqueologia do Desejo, apresentado como um palimpsesto da Fala divina, irregular, impossível de abranger pelas pautas rectilíneas das metafísicas solares. É essa troca de olhares, sob o fundo duma estética difusa que prepara a economia do voyeurismo do circo mediático actual, que faz adivinhar a transbordância dum outro olhar, instante e insubmisso, que se afunda no abismo da sua paradoxal vigência enquanto Rosto invertido, a “terceira pessoa”, puro excesso que vertiginosamente se rasga e tudo solta de si, fazendo que as rodas do carro alado de Hélios saltem dos trilhos da Necessidade instando o ser e o pensar à desorientação seminal.________Notas: 1Sigo aqui de forma muito livre o projecto de Slavoj Zizek, As Metástases do Gozo, Seis ensaios sobre a mulher e a Causalidade, Trad. de Miguel Serras Pereira, Relógio D'água, Lisboa, 2006. 2Edgar Allan poe, “O Demómio da Perversidade”, cit. In Slavoj Zizec, Op. Cit., p. 29. 3Slavoj Zizec, Op. Cit., p. 26. É irresistível citar a continuação desta passagem: “Este contexto permite-nos compreender o muito mencionado, e não menos mal interpretado, valor «fálico» da mulher, segundo Lacan – a sua equação Mulher=Falo. O mesmo é dizer que precisamente o mesmo paradoxo caracteriza o significante fálico enquanto significante da castração. «A castração significa que o gozo deve ser rejeitado, de maneira a poder ser alcançado na escala invertida da Lei do desejo». Como se torna exequível este «paradoxo económico», como pode a mecânica do desejo ser «posta em andamento», quer dizer: como pode o sujeito ser levado a renunciar ao gozo não por uma outra Causa, mais elevada, mas tendo simplesmente o fim de a ele aceder? Ou – citando agora a formulação hegeliana do mesmo paradoxo -, como é que, só perdendo-a, podemos alcançar a identidade? Não há senão uma solução para este problema: o falo, o significante do gozo, tinha de ser simultaneamente o significante da «castração» - ou seja, um único e mesmo significante tinha de significar tanto o gozo como a sua perda. Deste modo , torna-se possível que a única instância que nos persuade a buscar o gozo nos induza a renunciar a ele.”

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