NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: “Ser humano vale a pena”

31-05-2010
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Profissão: leitor Privilégio é a palavra que melhor defineo exercício de desembrulhar as frasesuma a uma, letra a letra, constatando-lheso gosto, o peso, o conteúdo, o continente. Adivinhar em cada uma os mil silêncioslapidados, os gritos que jamaisserão escritos, os sorrisos navegantesà espera do milagre que os amarreno porto de algum peito marinheiro. Despojar cada sentença da placenta que a recobree no fundo descobrir o esconderijo da esperança,camuflado no ritmo sem compasso da verdade nua e crua,oculto no alarido arrítmico do mutismo trepidante,ausente na cerimônia fúnebre dos amores fracassadose prima-dona no acontecer do encontro tão sonhado. Depois de saciada a sede de metáforasé chegada a hora de acariciar o eco das estrofesdegustando o significado vital de sua essênciacheirando a sonoridade mágica da mensagembebendo a consistência semântica dos dizerese agradecendo a vivência codificada que nos legam. Decifrar e entender as entrelinhas— sejam da vida ou do poema —é prerrogativa de duendes encantados,de gênios, de fadas, e também de feiticeiras;nós outros, apenas o tentamose o tentamos e insistimos e tentamosainda que nem sempre o consigamos,mas claro que nem por isso desistimospois ler poesia é ser poetae ser poeta é declarar de viva vozpara todos os ouvidose perante todas as audiênciasque ler poesia, assim como escrevê-la,é buscar palavras que sejam degrausda mesma escada, e descobri-las;é procurar agulhas nos palheiros, e encontrá-las;é entender que ser pensante gratificae finalmente constatar que ser humano vale a pena. Por tudo isso e outro tanto que ora fica no tinteiroa resposta que merece pergunta tão freqüentedeve ser, sem titubeio, em voz alta e com orgulho:profissão?... leitor! com muita honra!Bruno Campel _________________ Vale a pena ser humano. Valerá a pena querer ser isso? Não vale a pena querê-lo porque todos os humanos o são. Mas há muitos seres humanos adiados. Que desesperam na espera.A espera, se for aquilo que se guarda com mais fervor na palavra esperança, é a entrega ao inferno. E não há nada mais versátil e fecundo do que os círculos infernais. Cada homem pode encerrar-se dentro de um, emparedar-se no medo e no egotismo. E aí o fogo lento que não consome a carne quando devora a gordura mais gelatinosa de sermos nós a que geralmente chamamos alma, torna-nos a vida insuportável.E emparedados na cela translúcida do impossível, exilamo-nos da vida, do palpitar que anima tudo e tudo une no amplexo de fogo que nos atinge, explosão irremissível, desde o âmago do que, por excesso de vocabulário, chamamos mundo.Mas vemos e julgamos. Quase sempre julgamos que vemos. Raramente vemos o que julgamos ver.O acto de julgar, se impedir que queiramos calar-nos de dentro, esfacela tudo. Tal como ao açougueiro é impossível remontar as peças que desmanchou, assim as mentes demasiado judiciosas ficam a braços com um massacre, quando desejariam apenas compreender. A poesia é o oposto disto. Deixa intacta a realeza que há nos seres e nos que deles se abeiram.A realeza de não terem que ser o que a mente judiciosa procura para se aquietar. Insaciável, nunca encontra a quietude.Por isso há mais, muito mais, nas palavras do que imaginamos. E a própria imaginação tem modos que transfiguram as palavras e o mundo, largado e alargado nelas e por elas.Por isso as Línguas não têm fronteiras, embora a fala possa ter margens, entre as quais jorra o silêncio e a impermanência, o outro do tempo, essa fluidez da permanência. O tempo é o que não passa, a sua fluidez é a presentificação do esquecimento.A eternidade é impermanente, o reflexo do que não se atém, não se agarra a um mesmo. E só o que é eterno é identitário, a fugacidade do amor, a tenacidade da dor, a vacuidade da saudade, a autenticidade da vida humana. Que, no fundo, não é autêntica ou inautêntica. Mas há que embarcar nela, daí poder falar-se dum viver na autenticidade, um viver embarcadiço.Só assim estaremos bem firmados na vida, teremos um viver afirmativo, assente na aceitação do que há de próprio e sem a necessidade de negar o que em nós e nos outros é inegável, o facto quase absurdo, na sua verdade, de nós seremos nós e os outros serem outros, embora não sejam os outros de nós. O espírito negador, luciferino, nega-se afirmando-se. Ataca, desatacando-se. E ninguém consegue correr bem e ir longe sem apertar os atacadores. Os seus. Os dos outros devem ser-nos indiferentes. Até por vezes nos dá jeito que estejam desatacados.Sodade - Cesaria Evora (ft. Eleftheria Arvanitaki)


Profissão: leitor Privilégio é a palavra que melhor defineo exercício de desembrulhar as frasesuma a uma, letra a letra, constatando-lheso gosto, o peso, o conteúdo, o continente. Adivinhar em cada uma os mil silêncioslapidados, os gritos que jamaisserão escritos, os sorrisos navegantesà espera do milagre que os amarreno porto de algum peito marinheiro. Despojar cada sentença da placenta que a recobree no fundo descobrir o esconderijo da esperança,camuflado no ritmo sem compasso da verdade nua e crua,oculto no alarido arrítmico do mutismo trepidante,ausente na cerimônia fúnebre dos amores fracassadose prima-dona no acontecer do encontro tão sonhado. Depois de saciada a sede de metáforasé chegada a hora de acariciar o eco das estrofesdegustando o significado vital de sua essênciacheirando a sonoridade mágica da mensagembebendo a consistência semântica dos dizerese agradecendo a vivência codificada que nos legam. Decifrar e entender as entrelinhas— sejam da vida ou do poema —é prerrogativa de duendes encantados,de gênios, de fadas, e também de feiticeiras;nós outros, apenas o tentamose o tentamos e insistimos e tentamosainda que nem sempre o consigamos,mas claro que nem por isso desistimospois ler poesia é ser poetae ser poeta é declarar de viva vozpara todos os ouvidose perante todas as audiênciasque ler poesia, assim como escrevê-la,é buscar palavras que sejam degrausda mesma escada, e descobri-las;é procurar agulhas nos palheiros, e encontrá-las;é entender que ser pensante gratificae finalmente constatar que ser humano vale a pena. Por tudo isso e outro tanto que ora fica no tinteiroa resposta que merece pergunta tão freqüentedeve ser, sem titubeio, em voz alta e com orgulho:profissão?... leitor! com muita honra!Bruno Campel _________________ Vale a pena ser humano. Valerá a pena querer ser isso? Não vale a pena querê-lo porque todos os humanos o são. Mas há muitos seres humanos adiados. Que desesperam na espera.A espera, se for aquilo que se guarda com mais fervor na palavra esperança, é a entrega ao inferno. E não há nada mais versátil e fecundo do que os círculos infernais. Cada homem pode encerrar-se dentro de um, emparedar-se no medo e no egotismo. E aí o fogo lento que não consome a carne quando devora a gordura mais gelatinosa de sermos nós a que geralmente chamamos alma, torna-nos a vida insuportável.E emparedados na cela translúcida do impossível, exilamo-nos da vida, do palpitar que anima tudo e tudo une no amplexo de fogo que nos atinge, explosão irremissível, desde o âmago do que, por excesso de vocabulário, chamamos mundo.Mas vemos e julgamos. Quase sempre julgamos que vemos. Raramente vemos o que julgamos ver.O acto de julgar, se impedir que queiramos calar-nos de dentro, esfacela tudo. Tal como ao açougueiro é impossível remontar as peças que desmanchou, assim as mentes demasiado judiciosas ficam a braços com um massacre, quando desejariam apenas compreender. A poesia é o oposto disto. Deixa intacta a realeza que há nos seres e nos que deles se abeiram.A realeza de não terem que ser o que a mente judiciosa procura para se aquietar. Insaciável, nunca encontra a quietude.Por isso há mais, muito mais, nas palavras do que imaginamos. E a própria imaginação tem modos que transfiguram as palavras e o mundo, largado e alargado nelas e por elas.Por isso as Línguas não têm fronteiras, embora a fala possa ter margens, entre as quais jorra o silêncio e a impermanência, o outro do tempo, essa fluidez da permanência. O tempo é o que não passa, a sua fluidez é a presentificação do esquecimento.A eternidade é impermanente, o reflexo do que não se atém, não se agarra a um mesmo. E só o que é eterno é identitário, a fugacidade do amor, a tenacidade da dor, a vacuidade da saudade, a autenticidade da vida humana. Que, no fundo, não é autêntica ou inautêntica. Mas há que embarcar nela, daí poder falar-se dum viver na autenticidade, um viver embarcadiço.Só assim estaremos bem firmados na vida, teremos um viver afirmativo, assente na aceitação do que há de próprio e sem a necessidade de negar o que em nós e nos outros é inegável, o facto quase absurdo, na sua verdade, de nós seremos nós e os outros serem outros, embora não sejam os outros de nós. O espírito negador, luciferino, nega-se afirmando-se. Ataca, desatacando-se. E ninguém consegue correr bem e ir longe sem apertar os atacadores. Os seus. Os dos outros devem ser-nos indiferentes. Até por vezes nos dá jeito que estejam desatacados.Sodade - Cesaria Evora (ft. Eleftheria Arvanitaki)

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