Os novos trilhos da música passam por aqui

01-10-2010
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Festival de música contemporânea de 10 a 25 de Setembro, Lisboa Mosteiro dos Jerónimos Fundação Calouste Gulbenkian Centro Cultural de Belém Instituto Franco-Português

O festival Música Viva 2010 (a 16.ª edição) apresenta-se como um "ponto de convergência da música com a tecnologia". Insiste na divulgação de músicas electrónicas de estéticas bem diferentes, no cruzamento e na tensão - nem sempre o casamento é pacífico - de instrumentos e computadores, de sons gravados e sons directos, ou de sons produzidos e transformados ali, ao mesmo tempo, por máquinas e por músicos. Com consciência histórica (não por acaso também passaram pelo festival obras de Varèse, Webern, Xenakis e até um quarteto de cordas de Luís de Freitas Branco magnificamente interpretado pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos) e um apelo sempre renovado à criação actual (11 estreias absolutas, mais de 100 participantes no concurso de composição, várias obras de alunos da Escola Superior de Música, 40 peças para o projecto Soundwalk no átrio do Centro Cultural de Belém).

Este projecto não se cansa, há que dizê-lo, porque Miguel Azguime e Paula Azguime, directores do festival, persistem no estímulo à experimentação musical contemporânea e ajudam a renovar, com um entusiasmo raro, a aventura da música todos os dias.

A Miso Music fez 25 anos e o festival deste ano teve ressonâncias desse aniversário: incluiu dois "cadavre exquis" (um instrumental e um electroacústico) feitos por mais de trinta compositores diferentes - e que já tinham sido feitos antes, a pensar no aniversário da Miso Music. Tempo para um balanço? Sim, mas rápido, que a criação contemporânea não pára e está sempre à frente.

O Música Viva começou no dia 10, numa noite quente no claustro dos Jerónimos (um belo cenário) ao ar livre e "sob as estrelas" (e logo um avião nos abre os ouvidos). Uma alucinação electroacústica de Jimi Hendrix (... And the gods made love) deu o sinal de abertura do festival. Abertura também a caminhos musicais bem diversos, de que podemos dar apenas uma pequena ideia, destacando algumas das peças mais interessantes.

Nesse primeiro concerto brilhou o clarinete de Nuno Pinto nas obras de Azguime e de Steve Reich e a voz de Frances Lynch sobretudo na bela peça de Isabel Soveral para voz e electrónica (since brass nor stone) com um pequeno toque de encenação aproveitando o claustro.

Folclore contemporâneo

No dia seguinte foi a desilusão da ópera de John Adams (na Fundação Calouste Gulbenkian) que também fazia parte do programa do Música Viva e de que já aqui falámos (na edição de dia 13). Mas no dia 16 o Quarteto de Cordas de Matosinhos deu um concerto muito bom no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), incluindo peças de Miguel Azguime (ou seja, "prata da casa"): destaquem-se Moment à l"extrêmement, com Marco Pereira brilhando no violoncelo numa peça difícil, com electrónica, e a mais recente, de 2010, uma peça poética (com o mesmo título de um livro de poemas em francês de Mário Dionísio, Le Feu qui Dort), pessoal, rija e enigmática, sem qualquer texto e sem electrónica, mas com ela "subentendida": a electrónica também serve para levar os instrumentos tradicionais a outros sons.

No dia 17, o Sond"arte Electric Ensemble foi dirigido por Petter Sundkvist e fez a estreia absoluta da curiosa peça A Double Fiber of Resonance, do compositor japonês Masataka Matsuo. Sundkvist conduziu também nessa noite o seu Norrbotten Neo Ensemble, um colectivo sueco formado em 2007 com excelentes músicos dedicado à música contemporânea.

Foram concertos sempre com a sala bem composta e com públicos novos, caras diferentes, curiosos, estudantes, gente de outras artes, o que é de assinalar. Mas, no sábado à tarde, outra sala do CCB encheu mesmo com crianças e adultos para os "Contos contados com som", que poderiam talvez trabalhar melhor o lado "teatral". Destaque-se aqui a excelente peça para electrónica e instrumentos acústicos de João Madureira a partir de um conto de Hélia Correia (Toc, toc, toc, de 2009), muito bem lido por Rosinda Costa.

No dia 18 (e no dia seguinte acompanhados pelo Coro Infantil da Universidade de Lisboa), nova enchente para uma ocasião especial, ouvir o coro juvenil finlandês Tapiola Choir, que levou ao rubro o público no CCB. O repertório baseia-se em mitologias finlandesas, procurando inventar uma espécie de "folclore contemporâneo". Mas este coro de crianças e adolescentes (e poucos adultos), rigorosamente ensaiado, tem uma enorme força. Muito comunicativo e por vezes coreografado, apresentou-nos uma belíssima peça com textos de Federico García Lorca (Lorca Suite, de Rautavaara) e uma composição de uma grande compositora finlandesa (Kaija Saariaho), entre outras pequenas maravilhas, como uma canção de José Afonso (Canção de embalar), uma prenda-encore para os portugueses que deixou os espectadores emocionados.

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O programa continuou no Instituto Franco-Português, com música electrónica e surpresas agradáveis de jovens compositores portugueses como, por exemplo, Duarte Dinis Silva, Nuno Peixoto de Pinho ou Sara Carvalho e, no dia 23, uma das mais interessantes participações no festival, de Leigh Landy, que trouxe a Lisboa peças suas com textos, desmontando sons e palavras, com elementos que alguma música "séria" às vezes esquece: o humor e a capacidade de agarrar o espectador (de maneiras novas).

Destaquem-se ainda os espectaculares intérpretes Monika Streitová (flauta) e Pedro Rodrigues (guitarra), que mostraram (ela sobretudo na peça de Pierre Jodlowsky e ele na de José Luís Ferreira, no dia 24) que a música contemporânea tem hoje em Portugal soberbos intérpretes à disposição. A maior parte das peças não parece corresponder a grandes rompimentos estéticos, mas a diversidade é enorme: diversidade de atitudes, de formas de fugir, contornar ou enfrentar o presente, de pensar os ruídos e os silêncios de hoje.

Passam por aqui os novos trilhos da música: pela experimentação com os sons e com as máquinas, certamente, mas também por novas formas de compor, tocar e escutar. Pedro Boléo, crítico de música

Festival de música contemporânea de 10 a 25 de Setembro, Lisboa Mosteiro dos Jerónimos Fundação Calouste Gulbenkian Centro Cultural de Belém Instituto Franco-Português

O festival Música Viva 2010 (a 16.ª edição) apresenta-se como um "ponto de convergência da música com a tecnologia". Insiste na divulgação de músicas electrónicas de estéticas bem diferentes, no cruzamento e na tensão - nem sempre o casamento é pacífico - de instrumentos e computadores, de sons gravados e sons directos, ou de sons produzidos e transformados ali, ao mesmo tempo, por máquinas e por músicos. Com consciência histórica (não por acaso também passaram pelo festival obras de Varèse, Webern, Xenakis e até um quarteto de cordas de Luís de Freitas Branco magnificamente interpretado pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos) e um apelo sempre renovado à criação actual (11 estreias absolutas, mais de 100 participantes no concurso de composição, várias obras de alunos da Escola Superior de Música, 40 peças para o projecto Soundwalk no átrio do Centro Cultural de Belém).

Este projecto não se cansa, há que dizê-lo, porque Miguel Azguime e Paula Azguime, directores do festival, persistem no estímulo à experimentação musical contemporânea e ajudam a renovar, com um entusiasmo raro, a aventura da música todos os dias.

A Miso Music fez 25 anos e o festival deste ano teve ressonâncias desse aniversário: incluiu dois "cadavre exquis" (um instrumental e um electroacústico) feitos por mais de trinta compositores diferentes - e que já tinham sido feitos antes, a pensar no aniversário da Miso Music. Tempo para um balanço? Sim, mas rápido, que a criação contemporânea não pára e está sempre à frente.

O Música Viva começou no dia 10, numa noite quente no claustro dos Jerónimos (um belo cenário) ao ar livre e "sob as estrelas" (e logo um avião nos abre os ouvidos). Uma alucinação electroacústica de Jimi Hendrix (... And the gods made love) deu o sinal de abertura do festival. Abertura também a caminhos musicais bem diversos, de que podemos dar apenas uma pequena ideia, destacando algumas das peças mais interessantes.

Nesse primeiro concerto brilhou o clarinete de Nuno Pinto nas obras de Azguime e de Steve Reich e a voz de Frances Lynch sobretudo na bela peça de Isabel Soveral para voz e electrónica (since brass nor stone) com um pequeno toque de encenação aproveitando o claustro.

Folclore contemporâneo

No dia seguinte foi a desilusão da ópera de John Adams (na Fundação Calouste Gulbenkian) que também fazia parte do programa do Música Viva e de que já aqui falámos (na edição de dia 13). Mas no dia 16 o Quarteto de Cordas de Matosinhos deu um concerto muito bom no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), incluindo peças de Miguel Azguime (ou seja, "prata da casa"): destaquem-se Moment à l"extrêmement, com Marco Pereira brilhando no violoncelo numa peça difícil, com electrónica, e a mais recente, de 2010, uma peça poética (com o mesmo título de um livro de poemas em francês de Mário Dionísio, Le Feu qui Dort), pessoal, rija e enigmática, sem qualquer texto e sem electrónica, mas com ela "subentendida": a electrónica também serve para levar os instrumentos tradicionais a outros sons.

No dia 17, o Sond"arte Electric Ensemble foi dirigido por Petter Sundkvist e fez a estreia absoluta da curiosa peça A Double Fiber of Resonance, do compositor japonês Masataka Matsuo. Sundkvist conduziu também nessa noite o seu Norrbotten Neo Ensemble, um colectivo sueco formado em 2007 com excelentes músicos dedicado à música contemporânea.

Foram concertos sempre com a sala bem composta e com públicos novos, caras diferentes, curiosos, estudantes, gente de outras artes, o que é de assinalar. Mas, no sábado à tarde, outra sala do CCB encheu mesmo com crianças e adultos para os "Contos contados com som", que poderiam talvez trabalhar melhor o lado "teatral". Destaque-se aqui a excelente peça para electrónica e instrumentos acústicos de João Madureira a partir de um conto de Hélia Correia (Toc, toc, toc, de 2009), muito bem lido por Rosinda Costa.

No dia 18 (e no dia seguinte acompanhados pelo Coro Infantil da Universidade de Lisboa), nova enchente para uma ocasião especial, ouvir o coro juvenil finlandês Tapiola Choir, que levou ao rubro o público no CCB. O repertório baseia-se em mitologias finlandesas, procurando inventar uma espécie de "folclore contemporâneo". Mas este coro de crianças e adolescentes (e poucos adultos), rigorosamente ensaiado, tem uma enorme força. Muito comunicativo e por vezes coreografado, apresentou-nos uma belíssima peça com textos de Federico García Lorca (Lorca Suite, de Rautavaara) e uma composição de uma grande compositora finlandesa (Kaija Saariaho), entre outras pequenas maravilhas, como uma canção de José Afonso (Canção de embalar), uma prenda-encore para os portugueses que deixou os espectadores emocionados.

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O programa continuou no Instituto Franco-Português, com música electrónica e surpresas agradáveis de jovens compositores portugueses como, por exemplo, Duarte Dinis Silva, Nuno Peixoto de Pinho ou Sara Carvalho e, no dia 23, uma das mais interessantes participações no festival, de Leigh Landy, que trouxe a Lisboa peças suas com textos, desmontando sons e palavras, com elementos que alguma música "séria" às vezes esquece: o humor e a capacidade de agarrar o espectador (de maneiras novas).

Destaquem-se ainda os espectaculares intérpretes Monika Streitová (flauta) e Pedro Rodrigues (guitarra), que mostraram (ela sobretudo na peça de Pierre Jodlowsky e ele na de José Luís Ferreira, no dia 24) que a música contemporânea tem hoje em Portugal soberbos intérpretes à disposição. A maior parte das peças não parece corresponder a grandes rompimentos estéticos, mas a diversidade é enorme: diversidade de atitudes, de formas de fugir, contornar ou enfrentar o presente, de pensar os ruídos e os silêncios de hoje.

Passam por aqui os novos trilhos da música: pela experimentação com os sons e com as máquinas, certamente, mas também por novas formas de compor, tocar e escutar. Pedro Boléo, crítico de música

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