AO VOLANTE DO PODER: DEUS PINHEIRO VERSUS DURÃO BARROSO

23-12-2009
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EXCERTO"Nesse tempo, existia um verdadeiro clima de tensão política e mesmopessoal entre o então secretário de Estado da cooperação, DurãoBarroso e João de Deus Pinheiro. Realizei diversas visitas paralelasdos dois políticos e pude sentir o clima distante e pouco amigável.De uma das vezes, o semanário Expresso publicou uma pequena notícia,em jeito de gozo na secção «Gente»: «Pedro Faria, empresário dosector dos transportes, encontra o seu amigo e ex-colega do MRP ediz-lhe: “Eh pá, então, deixaste o partido?”»A brincadeira partira, penso eu, do fotógrafo do Expresso, RuiOchôa. Deus Pinheiro gozou com aquilo que se fartou. Durão Barroso,esse, não achou muita piada...Apesar de embrenhado horas e horas nas assembleias-gerais daONU, Deus Pinheiro já nutria uma paixão assolapada pelo golfe. Saíamosapressadamente entre reuniões, para ele poder comprar tacos ebolas. Era um político que sabia descontrair-se. Fazia questão de dizer:«Pedro, entregue a chave ao porteiro que você vem comer connosco.»Eu ia, sentava-me na mesa dele juntamente com Sequeira Nunes, peranteos olhares de alguns dos diplomatas e assessores, sentados namesa ao lado e roídos de inveja.Noutra ocasião, João de Deus Pinheiro encontrava-se em Washingtone, antes de seguir para Lisboa, quis apresentar cumprimentosao novo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Os voospara Nova Iorque tinham sido cancelados devido à intensa queda deneve. Decidiu-se trazer a comitiva por estrada em várias viaturas.O ministro e uma assessora vieram no meu carro. Para descontrair,Deus Pinheiro trouxera amendoins e umas garrafinhas de whisky dasala VIP do aeroporto de Washington. Veio o caminho todo a cantardesde fado a ópera. Eu tinha o rádio de comunicação na viatura. Coloquei-o debaixo do banco e disse aos outros motoristas para escutaremnos auriculares. Nevava e a condução tinha de ser cautelosa, mas aomenos íamos divertidos.Na época, a causa de Timor-Leste circulava pelos corredores daONU mas era francamente embaraçosa para a governação portuguesa.Lembro-me de ver mais de uma vez Ramos-Horta e o seu inseparávellacinho num corredor e os portugueses (assessores, ministros, chefesde gabinete) correndo na direcção contrária, a fazerem tudo para seafastar dele: «Lá está o chato do Ramos-Horta, vamos por aqui...»Muitas vezes quem se sentava com ele e outros dirigentes timorensesa conversar era eu. Ambos tínhamos de esperar. Eu esperava pelagovernação portuguesa e eles pelo destino de Timor-Leste.Contrastando com a capacidade de descontrair de Deus Pinheiro,era visível a olho nu a irritabilidade e o nervosismo que sustentava aambição de Durão Barroso. Cedo lhe detectei a ambição do políticopuro e duro, que vive 24 horas para a política. Uma vez ouviu-o passarum raspanete a um diplomata: «Sabe o que significa ser-se diplomata?Significa ser-se simpático, agradável com os outros». Aquele diplomatacom quem falava ao telefone queixava-se de outro colega embaixador.«Venha embora», dizia-lhe Durão Barroso, «vocês gastam umdinheirão ao telefone...»Durão vivia obcecado, excessivamente até, com as reuniões políticase a sua pontualidade nas mesmas. A mulher, Margarida Sousa Uva,por seu lado, não só vivia para a família, como pedia insistentes vezesao marido que lhe dedicasse mais atenção. Quando viajavam juntosem Nova Iorque, eram frequentes as discussões sobre o tema.Uma das questões que irritava e chegava a embaraçar Durão Barrosoera a constante propensão da esposa para se atrasar nas comprase chegar atrasada a almoços com esposas de ministros e outros eventosprotocolares. Ajudei-a em diversas situações. Uma vez inventei umincêndio no Soho para justificar o atraso. De outra vez, Durão Barroso e Margarida Sousa Uva tinham marcado um espectáculo de Óperano Lincoln Center e ela atrasou-se de novo nas compras. À sua espera,além do marido, furioso, estava o representante permanente de Portugaljunto da ONU embaixador Pedro Catarino. Encontrava-me nohall juntamente com Durão Barroso e ligava de dez em dez minutosao meu motorista para ver se se despachavam. Quando a senhora chegou,não se livrou de um valente raspanete do marido. Noutra ocasião,tive de ligar para o chefe de escala da TAP no aeroporto de Newark,José Maurício, pedindo que atrasassem o avião porque Margarida SousaUva estava mais uma vez atrasada de uma ida às compras.Ainda hoje penso que se atrasava propositadamente para irritar omarido e lhe fazer ver que devia dedicar mais tempo à família.Numa visita do então ministro do Comércio e Turismo, Faria deOliveira, uma assessora, Matilde Ochôa, decidiu comprar um par deténis em Canal Street, poucas horas antes do voo de regresso. Estacioneia viatura junto da loja e estava ao telefone com o Carlos Braga,o falecido irmão do fadista João Braga, quando me vejo cercado porpolícias.O carro tinha uma série de multas por pagar. Por vezes, os motoristasque trabalhavam para mim não me comunicavam as multas. Ossherifs pediram-me para sair do carro para o poderem levar para o depósito.Matilde Ochôa tinha-me pedido para tomar todo o cuidado com ocasaco de vison e a mala de cosméticos. Lá consegui retirar essas coisasà senhora e vi a viatura, carregada de malas de um grupo de pessoas dacomitiva, ser rebocada em direcção ao depósito da polícia.Levaram-me o carro e eu especado, em plena rua, entre Chinatowne Canal Street, com a mala de cosméticos e o casaco de vison de MatildeOchôa no braço. Por sorte, o local onde se pagava as multas eraali perto. Paguei 200 ou 300 dólares e trouxe um documento comigopara poder levantar o carro. Quando desci, já Matilde estava à minhaespera onde a tinha deixado. Qual não foi o seu espanto quando meviu chegar com o vison e a mala na mão e sem o carro.Metemo-mos os dois num táxi para a garagem da polícia, no Portode Brooklyn. O taxista não queria lá ir porque era um sítio inseguro emuito mal frequentado. Fui contando a história à assessora pedindo--lhe que não contasse ao ministro. Ria-se, divertida.Chegámos a Brooklyn, o carro ainda não estava lá. Telefonámosa Faria de Oliveira, contando que a viatura tinha caído num buracoe estava a ser assistida no local. Fomos esperar para um bar de marinheiros,eu com o casaco de vison ao colo, os clientes, olheirentos emal-encarados, um braço encostado ao balcão e outro no casaco. Jáestava a deitar contas à vida e o carro que nunca mais chegava...Faria de Oliveira ia telefonando e eu sempre a dizer: «Senhor ministro,falta só mais um bocadinho para os mecânicos arranjarem ocarro e vamos já para aí...»A polícia lá libertou o carro e eu, ala para o aeroporto de Newarkque se faz tarde. Conseguimos chegar a horas mas não nos livrámosdos olhares desconfiados do ministro e de alguns membros da comitiva".


EXCERTO"Nesse tempo, existia um verdadeiro clima de tensão política e mesmopessoal entre o então secretário de Estado da cooperação, DurãoBarroso e João de Deus Pinheiro. Realizei diversas visitas paralelasdos dois políticos e pude sentir o clima distante e pouco amigável.De uma das vezes, o semanário Expresso publicou uma pequena notícia,em jeito de gozo na secção «Gente»: «Pedro Faria, empresário dosector dos transportes, encontra o seu amigo e ex-colega do MRP ediz-lhe: “Eh pá, então, deixaste o partido?”»A brincadeira partira, penso eu, do fotógrafo do Expresso, RuiOchôa. Deus Pinheiro gozou com aquilo que se fartou. Durão Barroso,esse, não achou muita piada...Apesar de embrenhado horas e horas nas assembleias-gerais daONU, Deus Pinheiro já nutria uma paixão assolapada pelo golfe. Saíamosapressadamente entre reuniões, para ele poder comprar tacos ebolas. Era um político que sabia descontrair-se. Fazia questão de dizer:«Pedro, entregue a chave ao porteiro que você vem comer connosco.»Eu ia, sentava-me na mesa dele juntamente com Sequeira Nunes, peranteos olhares de alguns dos diplomatas e assessores, sentados namesa ao lado e roídos de inveja.Noutra ocasião, João de Deus Pinheiro encontrava-se em Washingtone, antes de seguir para Lisboa, quis apresentar cumprimentosao novo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Os voospara Nova Iorque tinham sido cancelados devido à intensa queda deneve. Decidiu-se trazer a comitiva por estrada em várias viaturas.O ministro e uma assessora vieram no meu carro. Para descontrair,Deus Pinheiro trouxera amendoins e umas garrafinhas de whisky dasala VIP do aeroporto de Washington. Veio o caminho todo a cantardesde fado a ópera. Eu tinha o rádio de comunicação na viatura. Coloquei-o debaixo do banco e disse aos outros motoristas para escutaremnos auriculares. Nevava e a condução tinha de ser cautelosa, mas aomenos íamos divertidos.Na época, a causa de Timor-Leste circulava pelos corredores daONU mas era francamente embaraçosa para a governação portuguesa.Lembro-me de ver mais de uma vez Ramos-Horta e o seu inseparávellacinho num corredor e os portugueses (assessores, ministros, chefesde gabinete) correndo na direcção contrária, a fazerem tudo para seafastar dele: «Lá está o chato do Ramos-Horta, vamos por aqui...»Muitas vezes quem se sentava com ele e outros dirigentes timorensesa conversar era eu. Ambos tínhamos de esperar. Eu esperava pelagovernação portuguesa e eles pelo destino de Timor-Leste.Contrastando com a capacidade de descontrair de Deus Pinheiro,era visível a olho nu a irritabilidade e o nervosismo que sustentava aambição de Durão Barroso. Cedo lhe detectei a ambição do políticopuro e duro, que vive 24 horas para a política. Uma vez ouviu-o passarum raspanete a um diplomata: «Sabe o que significa ser-se diplomata?Significa ser-se simpático, agradável com os outros». Aquele diplomatacom quem falava ao telefone queixava-se de outro colega embaixador.«Venha embora», dizia-lhe Durão Barroso, «vocês gastam umdinheirão ao telefone...»Durão vivia obcecado, excessivamente até, com as reuniões políticase a sua pontualidade nas mesmas. A mulher, Margarida Sousa Uva,por seu lado, não só vivia para a família, como pedia insistentes vezesao marido que lhe dedicasse mais atenção. Quando viajavam juntosem Nova Iorque, eram frequentes as discussões sobre o tema.Uma das questões que irritava e chegava a embaraçar Durão Barrosoera a constante propensão da esposa para se atrasar nas comprase chegar atrasada a almoços com esposas de ministros e outros eventosprotocolares. Ajudei-a em diversas situações. Uma vez inventei umincêndio no Soho para justificar o atraso. De outra vez, Durão Barroso e Margarida Sousa Uva tinham marcado um espectáculo de Óperano Lincoln Center e ela atrasou-se de novo nas compras. À sua espera,além do marido, furioso, estava o representante permanente de Portugaljunto da ONU embaixador Pedro Catarino. Encontrava-me nohall juntamente com Durão Barroso e ligava de dez em dez minutosao meu motorista para ver se se despachavam. Quando a senhora chegou,não se livrou de um valente raspanete do marido. Noutra ocasião,tive de ligar para o chefe de escala da TAP no aeroporto de Newark,José Maurício, pedindo que atrasassem o avião porque Margarida SousaUva estava mais uma vez atrasada de uma ida às compras.Ainda hoje penso que se atrasava propositadamente para irritar omarido e lhe fazer ver que devia dedicar mais tempo à família.Numa visita do então ministro do Comércio e Turismo, Faria deOliveira, uma assessora, Matilde Ochôa, decidiu comprar um par deténis em Canal Street, poucas horas antes do voo de regresso. Estacioneia viatura junto da loja e estava ao telefone com o Carlos Braga,o falecido irmão do fadista João Braga, quando me vejo cercado porpolícias.O carro tinha uma série de multas por pagar. Por vezes, os motoristasque trabalhavam para mim não me comunicavam as multas. Ossherifs pediram-me para sair do carro para o poderem levar para o depósito.Matilde Ochôa tinha-me pedido para tomar todo o cuidado com ocasaco de vison e a mala de cosméticos. Lá consegui retirar essas coisasà senhora e vi a viatura, carregada de malas de um grupo de pessoas dacomitiva, ser rebocada em direcção ao depósito da polícia.Levaram-me o carro e eu especado, em plena rua, entre Chinatowne Canal Street, com a mala de cosméticos e o casaco de vison de MatildeOchôa no braço. Por sorte, o local onde se pagava as multas eraali perto. Paguei 200 ou 300 dólares e trouxe um documento comigopara poder levantar o carro. Quando desci, já Matilde estava à minhaespera onde a tinha deixado. Qual não foi o seu espanto quando meviu chegar com o vison e a mala na mão e sem o carro.Metemo-mos os dois num táxi para a garagem da polícia, no Portode Brooklyn. O taxista não queria lá ir porque era um sítio inseguro emuito mal frequentado. Fui contando a história à assessora pedindo--lhe que não contasse ao ministro. Ria-se, divertida.Chegámos a Brooklyn, o carro ainda não estava lá. Telefonámosa Faria de Oliveira, contando que a viatura tinha caído num buracoe estava a ser assistida no local. Fomos esperar para um bar de marinheiros,eu com o casaco de vison ao colo, os clientes, olheirentos emal-encarados, um braço encostado ao balcão e outro no casaco. Jáestava a deitar contas à vida e o carro que nunca mais chegava...Faria de Oliveira ia telefonando e eu sempre a dizer: «Senhor ministro,falta só mais um bocadinho para os mecânicos arranjarem ocarro e vamos já para aí...»A polícia lá libertou o carro e eu, ala para o aeroporto de Newarkque se faz tarde. Conseguimos chegar a horas mas não nos livrámosdos olhares desconfiados do ministro e de alguns membros da comitiva".

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