Funes, el memorioso: A derrota de Ferreira Leite explicada pela Lógica

28-05-2010
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Imagine-se que eu dava uma tareia à minha mulher, porque ela não me queria acompanhar a uma manifestação contra a violência doméstica. Imagine-se que ela, lavada em lágrimas, vestia o pijama e se enfiava na cama, gritando: "não fico nem mais um segundo nesta casa". O que se diria?Que nós éramos esquizofrénicos, que as nossas declarações, paradoxais em relação ao nosso comportamento, não eram declarações. Eram despropósitos carecidos de sentido. Com elas - como recordava o Professor João Baptista Machado - nós apenas nos afirmávamos como tolinhos, excluindo-nos da «comunidade comunicativa».Há, no entanto, um contexto em que as declarações pragamaticamente paradoxais possuem sentido (há outros, mas este é o que aqui me interessa referir). É o contexto da ironia. A ironia consiste precisamente na criação de um paradoxo pragmático, com uma aparente contradição irremediável entre o que se diz e o que se faz, mas em que a contradição se resolve, porque o receptor da mensagem compreende a aparência da contradição e sabe que o declarado só é declarado, justamente para salientar e destacar a oposição entre o dito e o feito.É pela ironia, não pela contradição, que se compreende, por exemplo, que um restaurante no Porto se chame "O Mal Cozinhado". O proprietrário sabe que o potencial cliente não o leva a sério, que não ignora que está a brincar, que quando diz que ali se cozinha mal é porque quer dizer que ali se cozinha bem. E os comensais percebem a natureza lúdica deste jogo de palavras e frequentam o restaurante. Evidentemente, ninguém entraria num restaurante "O Mal Cozinhado", se o respectivo nome fosse tomado como um protesto de honestidade do cozinheiro.Do mesmo modo, a minha hipotética tareia inicial passaria a fazer sentido, se eu fosse um violento machista empedernido, cuja presença na manifestação com a minha mulher se destinasse apenas a humilhá-la em público, exibindo-lhe o olho negro e o braço partido diante dos inimigos da violência de género, como prova do meu desprezo pelas suas teses.Analise-se agora, de forma isenta, a campanha de Manuela Ferreira Leite e verifique-se como ela, na sua essência, consistiu num assombroso conjunto de paradoxos pragmáticos, fora do contexto da ironia.A senhora apresentou-se ao eleitorado em nome da seriedade, da verdade e da competência. Alegadamente, em contraposição à desonestidade, à mentira e à incompetência, representadas pelo agente técnico José Sócrates.E o que fez?Tomemos só três exemplos:Antes de mais nada, nomeou como candidato - por escolha pessoal que impôs - António Preto, indíviduo consabidamente sem escrúpulos e com fama de vigarista, arguido e acusado pela prática de crimes desonrosos e variados.É um fait diver, um pormenor sem significado no contexto geral - diz (e pensa) Zekez e, de um modo geral, todos aqueles que, não louvando a escolha, não conseguem alcançar a essência deletéria da mesma.´Não é. E não é, sobretudo, pelo modo como Ferreira leite justificou a escolha. Ela podia ter sustentado que, apesar das suspeitas, António Preto possuía qualidades tais que impunham a sua candidatura, sobrepujando-se as vantagens de o ter como deputado às eventuais suspeitas que sobre ele impendem. Não foi esta a justificação dada. O que Ferreira Leite avançou foi que nunca se substituía aos tribunais e não julgava Preto antes de estes o fazerem.De uma assentada, confundiu Direito com Ética e passou para o eleitorado a ideia de que, não fossem razões de mera oportunidade eleitoral, gostaria de ter nas listas do PSD Dias Loureiro e Oliveira Costa, também eles nunca condenados pelos tribunais e com muito mais provas dadas de serviço ao partido do que António Preto.Talvez sem se aperceber, o que Manuela Leite ficou a dizer foi: "eu nomeio António Preto, porque, ao contrário de Sócrates, sou uma pessoa muito séria." Talvez sem se aperceber, colocou-se fora da comunidade comunicativa. E deixou transparecer que a sua proclamação de seriedade, mais do que uma declaração não séria, era uma declaração sem sentido.Pretender-se que isto é um pormenor, um fait diver, é como eu pretender que a tareia que dei à minha mulher não prejudica a minha candidatura à presidência da "APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima", porque foi só uma.Depois, passou dois dias inteiros a protestar a sua indignação contra uma figura menor do PS, porque esta a comparou a Salazar. "Gravíssimas", foi o adjectivo que usou para qualificar as declarações de José Junqueiro. À noite, os "Gato Fedorento" exibiram uma peça de humor patenteando a irrelevância absoluta da imputação de salazarismo, usada, sem excepção nenhuma, por todos os candidatos, a começar pela própria Ferreira Leite. E no ar ficou ela a jurar ao eleitorado: "chamar salazarista a alguém é uma acusação gravíssima, absolutamente inadmissível e intolerável e quem, como Junqueiro, a faz é porque é salazarista". E no ar ficou ela, outra vez, a orar sem nexo, saltando para fora da barreira da comunidade comunicativa. Feita tolinha.Mas que importância têm duas ou três afirmações gratuitas em acções de campanha? - Perguntará Zekez. Julga-se alguém por isso?O problema é que quem - sem estar a brincar, fora do contexto da ironia - passa uma vez por tolinho, nunca mais é levado a sério em circunstância nenhuma. Manuela Leite não é levada a sério.E por não ser levada a sério é que se tornou alvo da risota nacional com o caso das escutas. Sempre auto-reclamando a sua inexcedível competência política que o PSD tomou na campanha por um axioma cuja evidência dispensava demonstração, Ferreira Leite espalha-se ao comprido na primeira armadilhapolítica que se lhe atravessa à frente. E, de cada vez que tentou libertar-se, mais se enredou."Olhem como eu seu competetente! Vejam como eu me estatelei completamente quando tive que demonstrar algum senso na gestão deum dossier político! Confiem em mim, que, de futuro, à frente do governo, irei sempre revelar a mesma competência e falta de senso" - diz ela, já em delírio de exclusão comunicativa.Mas perante tanto absurdo, porque se propôs Manuela Ferreira Leite levar a cabo uma campanha assente no lema da verdade? Por desonestidade intelectual?Não. E o que é espantoso é que não, não foi por desonestidade intelectual.O caso é que a líder do PSD vive no mundo pequenino dos guarda-livros, que não vai para além do "razão" e das partidas dobradas do "deve" e "haver". Quando se proclamou da verdade, fê-lo porque decidiu anunciar em campanha que não iria baixar os impostos. Orgulhou-se muito deste anúncio, cuidando que ele a tornava um modelo de seriedade e honestidade que o povo distinguiria dos habituais trampolineiros das promessas eleitoralistas.Não lhe ocorreu que o povo sabe que, independentemente do que possam dizer em campanha, nenhum partido vai baixar os impostos impostos, não está a falar a sério e não pretende ser levado a sério. E que, por isso, a declaração expressa de que o não fará não acrescentada nada ao expectável.Reclamando-se da verdade e da seriedade, apenas porque afirmava expresamente que não iria baixar impostos, Manuela Ferreira Leite comportou-se como alguém que abrisse um restaurante em frente ao "Mal Cozinhado", colocando na porta uma tabuleta a dizer: "ao contrário dos da frente, nós falamos verdade. Aqui a comida é mesmo má".E se, por milagre, Manuela Ferreira Leite ganhar as eleições?Isso nada tira ou acrescenta ao que acima escrevi.Salvo erro, o meu primeiro post a dizer mal de Sócrates foi este, escrito em princípios de Julho de 2006. Por essa altura, o presidente que PBL e Zekez apoiavam (ainda apoiam?) incondicionalmente, andava encantado e fascinado com o primeiro-ministro. PBL e Zekez já não me recordo.


Imagine-se que eu dava uma tareia à minha mulher, porque ela não me queria acompanhar a uma manifestação contra a violência doméstica. Imagine-se que ela, lavada em lágrimas, vestia o pijama e se enfiava na cama, gritando: "não fico nem mais um segundo nesta casa". O que se diria?Que nós éramos esquizofrénicos, que as nossas declarações, paradoxais em relação ao nosso comportamento, não eram declarações. Eram despropósitos carecidos de sentido. Com elas - como recordava o Professor João Baptista Machado - nós apenas nos afirmávamos como tolinhos, excluindo-nos da «comunidade comunicativa».Há, no entanto, um contexto em que as declarações pragamaticamente paradoxais possuem sentido (há outros, mas este é o que aqui me interessa referir). É o contexto da ironia. A ironia consiste precisamente na criação de um paradoxo pragmático, com uma aparente contradição irremediável entre o que se diz e o que se faz, mas em que a contradição se resolve, porque o receptor da mensagem compreende a aparência da contradição e sabe que o declarado só é declarado, justamente para salientar e destacar a oposição entre o dito e o feito.É pela ironia, não pela contradição, que se compreende, por exemplo, que um restaurante no Porto se chame "O Mal Cozinhado". O proprietrário sabe que o potencial cliente não o leva a sério, que não ignora que está a brincar, que quando diz que ali se cozinha mal é porque quer dizer que ali se cozinha bem. E os comensais percebem a natureza lúdica deste jogo de palavras e frequentam o restaurante. Evidentemente, ninguém entraria num restaurante "O Mal Cozinhado", se o respectivo nome fosse tomado como um protesto de honestidade do cozinheiro.Do mesmo modo, a minha hipotética tareia inicial passaria a fazer sentido, se eu fosse um violento machista empedernido, cuja presença na manifestação com a minha mulher se destinasse apenas a humilhá-la em público, exibindo-lhe o olho negro e o braço partido diante dos inimigos da violência de género, como prova do meu desprezo pelas suas teses.Analise-se agora, de forma isenta, a campanha de Manuela Ferreira Leite e verifique-se como ela, na sua essência, consistiu num assombroso conjunto de paradoxos pragmáticos, fora do contexto da ironia.A senhora apresentou-se ao eleitorado em nome da seriedade, da verdade e da competência. Alegadamente, em contraposição à desonestidade, à mentira e à incompetência, representadas pelo agente técnico José Sócrates.E o que fez?Tomemos só três exemplos:Antes de mais nada, nomeou como candidato - por escolha pessoal que impôs - António Preto, indíviduo consabidamente sem escrúpulos e com fama de vigarista, arguido e acusado pela prática de crimes desonrosos e variados.É um fait diver, um pormenor sem significado no contexto geral - diz (e pensa) Zekez e, de um modo geral, todos aqueles que, não louvando a escolha, não conseguem alcançar a essência deletéria da mesma.´Não é. E não é, sobretudo, pelo modo como Ferreira leite justificou a escolha. Ela podia ter sustentado que, apesar das suspeitas, António Preto possuía qualidades tais que impunham a sua candidatura, sobrepujando-se as vantagens de o ter como deputado às eventuais suspeitas que sobre ele impendem. Não foi esta a justificação dada. O que Ferreira Leite avançou foi que nunca se substituía aos tribunais e não julgava Preto antes de estes o fazerem.De uma assentada, confundiu Direito com Ética e passou para o eleitorado a ideia de que, não fossem razões de mera oportunidade eleitoral, gostaria de ter nas listas do PSD Dias Loureiro e Oliveira Costa, também eles nunca condenados pelos tribunais e com muito mais provas dadas de serviço ao partido do que António Preto.Talvez sem se aperceber, o que Manuela Leite ficou a dizer foi: "eu nomeio António Preto, porque, ao contrário de Sócrates, sou uma pessoa muito séria." Talvez sem se aperceber, colocou-se fora da comunidade comunicativa. E deixou transparecer que a sua proclamação de seriedade, mais do que uma declaração não séria, era uma declaração sem sentido.Pretender-se que isto é um pormenor, um fait diver, é como eu pretender que a tareia que dei à minha mulher não prejudica a minha candidatura à presidência da "APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima", porque foi só uma.Depois, passou dois dias inteiros a protestar a sua indignação contra uma figura menor do PS, porque esta a comparou a Salazar. "Gravíssimas", foi o adjectivo que usou para qualificar as declarações de José Junqueiro. À noite, os "Gato Fedorento" exibiram uma peça de humor patenteando a irrelevância absoluta da imputação de salazarismo, usada, sem excepção nenhuma, por todos os candidatos, a começar pela própria Ferreira Leite. E no ar ficou ela a jurar ao eleitorado: "chamar salazarista a alguém é uma acusação gravíssima, absolutamente inadmissível e intolerável e quem, como Junqueiro, a faz é porque é salazarista". E no ar ficou ela, outra vez, a orar sem nexo, saltando para fora da barreira da comunidade comunicativa. Feita tolinha.Mas que importância têm duas ou três afirmações gratuitas em acções de campanha? - Perguntará Zekez. Julga-se alguém por isso?O problema é que quem - sem estar a brincar, fora do contexto da ironia - passa uma vez por tolinho, nunca mais é levado a sério em circunstância nenhuma. Manuela Leite não é levada a sério.E por não ser levada a sério é que se tornou alvo da risota nacional com o caso das escutas. Sempre auto-reclamando a sua inexcedível competência política que o PSD tomou na campanha por um axioma cuja evidência dispensava demonstração, Ferreira Leite espalha-se ao comprido na primeira armadilhapolítica que se lhe atravessa à frente. E, de cada vez que tentou libertar-se, mais se enredou."Olhem como eu seu competetente! Vejam como eu me estatelei completamente quando tive que demonstrar algum senso na gestão deum dossier político! Confiem em mim, que, de futuro, à frente do governo, irei sempre revelar a mesma competência e falta de senso" - diz ela, já em delírio de exclusão comunicativa.Mas perante tanto absurdo, porque se propôs Manuela Ferreira Leite levar a cabo uma campanha assente no lema da verdade? Por desonestidade intelectual?Não. E o que é espantoso é que não, não foi por desonestidade intelectual.O caso é que a líder do PSD vive no mundo pequenino dos guarda-livros, que não vai para além do "razão" e das partidas dobradas do "deve" e "haver". Quando se proclamou da verdade, fê-lo porque decidiu anunciar em campanha que não iria baixar os impostos. Orgulhou-se muito deste anúncio, cuidando que ele a tornava um modelo de seriedade e honestidade que o povo distinguiria dos habituais trampolineiros das promessas eleitoralistas.Não lhe ocorreu que o povo sabe que, independentemente do que possam dizer em campanha, nenhum partido vai baixar os impostos impostos, não está a falar a sério e não pretende ser levado a sério. E que, por isso, a declaração expressa de que o não fará não acrescentada nada ao expectável.Reclamando-se da verdade e da seriedade, apenas porque afirmava expresamente que não iria baixar impostos, Manuela Ferreira Leite comportou-se como alguém que abrisse um restaurante em frente ao "Mal Cozinhado", colocando na porta uma tabuleta a dizer: "ao contrário dos da frente, nós falamos verdade. Aqui a comida é mesmo má".E se, por milagre, Manuela Ferreira Leite ganhar as eleições?Isso nada tira ou acrescenta ao que acima escrevi.Salvo erro, o meu primeiro post a dizer mal de Sócrates foi este, escrito em princípios de Julho de 2006. Por essa altura, o presidente que PBL e Zekez apoiavam (ainda apoiam?) incondicionalmente, andava encantado e fascinado com o primeiro-ministro. PBL e Zekez já não me recordo.

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