Entre as brumas da memória: «Le Plat Pays»

03-08-2010
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Biblioteca da Universidade de Lovaina (Leuven)A Bélgica está sem governo há cerca de três meses e mantêm-se as dificuldades para formar o próximo. Uma vez mais, é a questão linguística que está no centro dos problemas. Fala-se, como sempre, da hipótese de desmembramento do país, mas as sondagens indicam que a maioria dos belgas não o deseja.Não vou entrar em pormenores sobre esta crise porque a informação está disponível, mas Le Plat Pays de Jacques Brel, geralmente considerado pouco interessante, é para mim uma referência importante. Andei por lá quase nove anos (e muitas outras curtas estadias), em duas fases – uma como estudante, outra a trabalhar na IBM. Na primeira, que teve início em 1957 (há 50 anos?...), vivi por dentro este verdadeiro drama linguístico dos belgas.A universidade onde estudei – Lovaina – fica na parte flamenga, mas era então bilingue, como tudo no país. Era uma cidade excepcionalmente cosmopolita, com estudantes de mais de sessenta países (tentem imaginar o que isso significou para mim, ida do Portugal salazarento). Como é óbvio, quase todos os estrangeiros frequentavam as aulas em francês (a excepção sendo apenas os indonésios e um ou outro holandês).De ano para ano, foram crescendo as hostilidades por parte dos flamengos contra o uso do francês: nomes de ruas arrancadas, montras partidas, uma monumental manifestação, à pedrada, contra Jacques Brel que insistiu em cantar Les Flamandes no cine-teatro de Lovaina, num espectáculo a que assisti (com letra bem pouca simpática para as ditas, há que reconhecê-lo) (*).Em 1962 foi fixada a fronteira linguística, mas a crise agudizou-se sobretudo na segunda metade da década de 60. A páginas tantas, os professores deixaram de poder dar aulas nas duas línguas, mas as instalações, as bibliotecas e tudo o resto era partilhado. Depois de manifestações gigantescas em 1967, por todo o país, foi decidido, em 1968, que a parte francófona saísse de Lovaina (Leuven) e se instalasse a menos de 30 km. Nasceria assim, do nada, uma nova cidade e uma nova universidade, Louvain-la-Neuve, que começou a funcionar em 1972. (É mais ou menos como se, por um qualquer motivo regionalista, a Universidade de Coimbra fosse obrigada a «duplicar-se» na Anadia...)Custos? Desperdícios? Incalculáveis. Um único e grande exemplo. O conteúdo da magnífica Biblioteca da Universidade, onde passei anos da minha juventude, teve de ser dividida ao meio. Embora parcialmente destruída durante as duas Grandes Guerras, o seu espólio tinha um valor inestimável e foram longamente discutidos, durante anos, os critérios a adoptar para a distribuição de livros e documentos. O mesmo aconteceu com as bibliotecas das faculdades, laboratórios, hospital universitário, etc., etc.(O meu cartão de acesso à Biblioteca)---------------------------------Uma última observação neste texto que já vai demasiadamente longo. Por ironia do destino, é neste pequeno país que não consegue governar-se unido que a está a sede da... União Europeia. Nos meus momentos pessimistas sobre o que o futuro nos reserva – e não são poucos –, penso sempre nisto.(*) Vídeo aqui no fim deste post. Les Flamandes (Jacques Brel, 1959)


Biblioteca da Universidade de Lovaina (Leuven)A Bélgica está sem governo há cerca de três meses e mantêm-se as dificuldades para formar o próximo. Uma vez mais, é a questão linguística que está no centro dos problemas. Fala-se, como sempre, da hipótese de desmembramento do país, mas as sondagens indicam que a maioria dos belgas não o deseja.Não vou entrar em pormenores sobre esta crise porque a informação está disponível, mas Le Plat Pays de Jacques Brel, geralmente considerado pouco interessante, é para mim uma referência importante. Andei por lá quase nove anos (e muitas outras curtas estadias), em duas fases – uma como estudante, outra a trabalhar na IBM. Na primeira, que teve início em 1957 (há 50 anos?...), vivi por dentro este verdadeiro drama linguístico dos belgas.A universidade onde estudei – Lovaina – fica na parte flamenga, mas era então bilingue, como tudo no país. Era uma cidade excepcionalmente cosmopolita, com estudantes de mais de sessenta países (tentem imaginar o que isso significou para mim, ida do Portugal salazarento). Como é óbvio, quase todos os estrangeiros frequentavam as aulas em francês (a excepção sendo apenas os indonésios e um ou outro holandês).De ano para ano, foram crescendo as hostilidades por parte dos flamengos contra o uso do francês: nomes de ruas arrancadas, montras partidas, uma monumental manifestação, à pedrada, contra Jacques Brel que insistiu em cantar Les Flamandes no cine-teatro de Lovaina, num espectáculo a que assisti (com letra bem pouca simpática para as ditas, há que reconhecê-lo) (*).Em 1962 foi fixada a fronteira linguística, mas a crise agudizou-se sobretudo na segunda metade da década de 60. A páginas tantas, os professores deixaram de poder dar aulas nas duas línguas, mas as instalações, as bibliotecas e tudo o resto era partilhado. Depois de manifestações gigantescas em 1967, por todo o país, foi decidido, em 1968, que a parte francófona saísse de Lovaina (Leuven) e se instalasse a menos de 30 km. Nasceria assim, do nada, uma nova cidade e uma nova universidade, Louvain-la-Neuve, que começou a funcionar em 1972. (É mais ou menos como se, por um qualquer motivo regionalista, a Universidade de Coimbra fosse obrigada a «duplicar-se» na Anadia...)Custos? Desperdícios? Incalculáveis. Um único e grande exemplo. O conteúdo da magnífica Biblioteca da Universidade, onde passei anos da minha juventude, teve de ser dividida ao meio. Embora parcialmente destruída durante as duas Grandes Guerras, o seu espólio tinha um valor inestimável e foram longamente discutidos, durante anos, os critérios a adoptar para a distribuição de livros e documentos. O mesmo aconteceu com as bibliotecas das faculdades, laboratórios, hospital universitário, etc., etc.(O meu cartão de acesso à Biblioteca)---------------------------------Uma última observação neste texto que já vai demasiadamente longo. Por ironia do destino, é neste pequeno país que não consegue governar-se unido que a está a sede da... União Europeia. Nos meus momentos pessimistas sobre o que o futuro nos reserva – e não são poucos –, penso sempre nisto.(*) Vídeo aqui no fim deste post. Les Flamandes (Jacques Brel, 1959)

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