a peida é um regalo ... do nariz a gente trata: PEDRO IVO CARVALHO

23-05-2011
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Os fiscaisUm país de futebolistas, um país de marinheiros e, agora, um país de fiscais. O paradigma da identidade nacional correu, durante quase um dia inteiro, o sério risco de ser adulterado graças à proposta de três vice-presidentes da bancada parlamentar do PS. Gabe-se a fleuma: publicar, na Internet, os rendimentos declarados de todos os cidadãos do país, para serem consultados livremente por todos os cidadãos do país, tem tanto de revolucionário como de inventivo. Quase um dia inteiro foi o tempo que o líder da bancada socialista, Francisco Assis, demorou até decidir abandonar a ideia peregrina, ideia essa de que tomou conhecimento não pelos seus vice-parlamentares, mas depois de cumprida a leitura matinal dos jornais. Compreende-se a atrapalhação: afinal, são todos do mesmo partido e trabalham juntos quase todos os dias no mesmo Parlamento.Mas voltemos à proposta. O primeiro impulso, ao lermos tamanha ousadia, é esfregar os olhos. Confirmada a clareza ocular, passamos ao segundo impulso: qual o objectivo deste projecto de lei? Pelo que se percebe, combater a corrupção. E só pelo pouco que se percebe me arrisco a concluir que a estratégia que subjaz ao espírito da missão visa diminuir as responsabilidades do Estado enquanto agente fiscalizador, imputando aos cidadãos essa tarefa ingrata de "chibar" o próximo. E que prazer nos daria, a nós, zelosos pagadores de impostos, denunciar aquele vizinho maltrapilho que, para grande espanto nosso, declara um salário miserável, mas guarda na garagem um cabriolet de jantes vistosas. Ao ouvir, numa das televisões, Jorge Strecht Ribeiro, um dos três proponentes, desfiz as dúvidas: "O facto de cada um de nós saber que a comunidade tem sobre nós o direito de olhar torna-nos mais contidos". Ou seja, o deputado socialista está convencido de que a exposição pública dos rendimentos dos cidadãos conduzirá a uma evolução comportamental. A fé não se discute. Ou se tem ou não se tem.Parece que estou a ver a cena. Através do número azul que o Governo criaria para os denunciantes, escutar-se-iam pérolas como esta: "Boa tarde, é só para dizer que o cidadão detentor do seguinte número de contribuinte construiu uma moradia em granito, veste roupas Armani, chega a casa todas as semanas com sacas da Fnac e só declara um rendimento bruto anual de 7500 euros". E, do outro lado do telefone, uma zelosa funcionária da Administração Fiscal responderia: "Vamos enviar já um homem para essa morada".A proposta caiu. E ainda bem que caiu. A missão de fiscalizar não compete aos cidadãos. A estes compete apenas a obrigação de pagar impostos, contribuir com a sua parte. O Estado não pode demitir-se da sua vocação. E se é verdade que o Estado somos todos nós, o contrário já é mais difícil de aceitar. Nós todos não podemos ser o Estado.in "JORNAL DE NOTÍCIAS" em 05/02/10


Os fiscaisUm país de futebolistas, um país de marinheiros e, agora, um país de fiscais. O paradigma da identidade nacional correu, durante quase um dia inteiro, o sério risco de ser adulterado graças à proposta de três vice-presidentes da bancada parlamentar do PS. Gabe-se a fleuma: publicar, na Internet, os rendimentos declarados de todos os cidadãos do país, para serem consultados livremente por todos os cidadãos do país, tem tanto de revolucionário como de inventivo. Quase um dia inteiro foi o tempo que o líder da bancada socialista, Francisco Assis, demorou até decidir abandonar a ideia peregrina, ideia essa de que tomou conhecimento não pelos seus vice-parlamentares, mas depois de cumprida a leitura matinal dos jornais. Compreende-se a atrapalhação: afinal, são todos do mesmo partido e trabalham juntos quase todos os dias no mesmo Parlamento.Mas voltemos à proposta. O primeiro impulso, ao lermos tamanha ousadia, é esfregar os olhos. Confirmada a clareza ocular, passamos ao segundo impulso: qual o objectivo deste projecto de lei? Pelo que se percebe, combater a corrupção. E só pelo pouco que se percebe me arrisco a concluir que a estratégia que subjaz ao espírito da missão visa diminuir as responsabilidades do Estado enquanto agente fiscalizador, imputando aos cidadãos essa tarefa ingrata de "chibar" o próximo. E que prazer nos daria, a nós, zelosos pagadores de impostos, denunciar aquele vizinho maltrapilho que, para grande espanto nosso, declara um salário miserável, mas guarda na garagem um cabriolet de jantes vistosas. Ao ouvir, numa das televisões, Jorge Strecht Ribeiro, um dos três proponentes, desfiz as dúvidas: "O facto de cada um de nós saber que a comunidade tem sobre nós o direito de olhar torna-nos mais contidos". Ou seja, o deputado socialista está convencido de que a exposição pública dos rendimentos dos cidadãos conduzirá a uma evolução comportamental. A fé não se discute. Ou se tem ou não se tem.Parece que estou a ver a cena. Através do número azul que o Governo criaria para os denunciantes, escutar-se-iam pérolas como esta: "Boa tarde, é só para dizer que o cidadão detentor do seguinte número de contribuinte construiu uma moradia em granito, veste roupas Armani, chega a casa todas as semanas com sacas da Fnac e só declara um rendimento bruto anual de 7500 euros". E, do outro lado do telefone, uma zelosa funcionária da Administração Fiscal responderia: "Vamos enviar já um homem para essa morada".A proposta caiu. E ainda bem que caiu. A missão de fiscalizar não compete aos cidadãos. A estes compete apenas a obrigação de pagar impostos, contribuir com a sua parte. O Estado não pode demitir-se da sua vocação. E se é verdade que o Estado somos todos nós, o contrário já é mais difícil de aceitar. Nós todos não podemos ser o Estado.in "JORNAL DE NOTÍCIAS" em 05/02/10

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