O Cachimbo de Magritte: Obviamente demito-me

30-05-2010
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A extraordinária coincidência do convite do governo para gerir assuntos da esfera pública municipal ao mandatário do candidato do partido que governa à presidência da mesma câmara municipal ilustra o problema mais profundo da vida política portuguesa: o corporativismo. Já o referi noutras ocasiões e de diferentes formas: o socialismo republicano é a encarnação mais recente do corporativismo. O corporativismo é na essência uma lógica de proteccionismo, que produz e assegura a manutenção de privilégios políticos. A prática política corporativa é burocrática (logo, arbitrária), autocrática, autárquica. A natureza autocrática do corporativismo manifesta-se num paternalismo utilitarista que elimina todas as barreiras à interferência política, transformando espaços privados em zonas cinzentas susceptíveis de regulação pública e criando uma série de "pseudo-mercados" de interesses.Mas o corporativismo tem também uma lógica intrinsecamente conservadora: é, aliás, a marca distintiva da disposição conservadora portuguesa e está inscrito no carácter histórico do estado contemporâneo. Sem se compreender a natureza do conservadorismo português não se pode compreender o equívoco intelectual da “nova” direita portuguesa. Uma parte dessa nova direita é declaradamente “conservadora”, mas do ponto de vista da praxis política vive numa inquietude permanente, argumentando que o poder político ultrapassou os limites impostos à sua acção por um hipotético consentimento e que por isso cessou a obrigação de obediência política: é a ilusão da “gloriosa restauração” do que nunca existiu, ou a influência intelectual de um conservadorismo anglófono desligado da realidade portuguesa. Outra parte acredita que um programa político de reformas graduais poderá introduzir um módico de liberalismo no carácter do estado português: não percebem que o corporativismo esbate as fronteiras entre o público e o privado. Uma sociedade corporativa é uma sociedade hierarquizada, onde o topo da pirâmide é ocupada por uma coligação estável de interesses, que não é reformável e cuja dinâmica de renovação é a cooptação: sobe-se na cadeia alimentar do corporativismo aceitando e agindo de acordo com a tradição corporativa. O Dr. Costa e o Dr. Júdice são apenas uma ilustração possível do topo da pirâmide corporativa actual.O corporativismo é uma manifestação de conservadorismo, mas é também um conservadorismo que se opõe frontalmente a tudo o que defendo politicamente. Não os posso vencer, mas também não me junto a eles. Sucede que “eles” são os portugueses e o que recuso é o ethos político nacional. Portanto, obviamente demito-me.


A extraordinária coincidência do convite do governo para gerir assuntos da esfera pública municipal ao mandatário do candidato do partido que governa à presidência da mesma câmara municipal ilustra o problema mais profundo da vida política portuguesa: o corporativismo. Já o referi noutras ocasiões e de diferentes formas: o socialismo republicano é a encarnação mais recente do corporativismo. O corporativismo é na essência uma lógica de proteccionismo, que produz e assegura a manutenção de privilégios políticos. A prática política corporativa é burocrática (logo, arbitrária), autocrática, autárquica. A natureza autocrática do corporativismo manifesta-se num paternalismo utilitarista que elimina todas as barreiras à interferência política, transformando espaços privados em zonas cinzentas susceptíveis de regulação pública e criando uma série de "pseudo-mercados" de interesses.Mas o corporativismo tem também uma lógica intrinsecamente conservadora: é, aliás, a marca distintiva da disposição conservadora portuguesa e está inscrito no carácter histórico do estado contemporâneo. Sem se compreender a natureza do conservadorismo português não se pode compreender o equívoco intelectual da “nova” direita portuguesa. Uma parte dessa nova direita é declaradamente “conservadora”, mas do ponto de vista da praxis política vive numa inquietude permanente, argumentando que o poder político ultrapassou os limites impostos à sua acção por um hipotético consentimento e que por isso cessou a obrigação de obediência política: é a ilusão da “gloriosa restauração” do que nunca existiu, ou a influência intelectual de um conservadorismo anglófono desligado da realidade portuguesa. Outra parte acredita que um programa político de reformas graduais poderá introduzir um módico de liberalismo no carácter do estado português: não percebem que o corporativismo esbate as fronteiras entre o público e o privado. Uma sociedade corporativa é uma sociedade hierarquizada, onde o topo da pirâmide é ocupada por uma coligação estável de interesses, que não é reformável e cuja dinâmica de renovação é a cooptação: sobe-se na cadeia alimentar do corporativismo aceitando e agindo de acordo com a tradição corporativa. O Dr. Costa e o Dr. Júdice são apenas uma ilustração possível do topo da pirâmide corporativa actual.O corporativismo é uma manifestação de conservadorismo, mas é também um conservadorismo que se opõe frontalmente a tudo o que defendo politicamente. Não os posso vencer, mas também não me junto a eles. Sucede que “eles” são os portugueses e o que recuso é o ethos político nacional. Portanto, obviamente demito-me.

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