O Cachimbo de Magritte: Zeca

29-05-2010
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Zeca. Zeca. Tem cinquenta anos, de certeza não menos, poucos mais terá. Ao longe, a silhueta é a mesma de há trinta anos, o corpo magro, o cabelo crescendo para cima, as mãos enfiadas fundo nos bolsos apertados das calças de ganga gastas, tão antigas como a juventude dele. Sempre viveu ali, em casa dos pais, sem ocupação conhecida, sempre ali, de um lado para o outro, de dia em dia, como um gato a esgueirar-se por portas entreabertas. O Zeca não é deste mundo. Não é de mundo nenhum. Costumava ajudar os pais na frutaria, uma barraca entre outras onde vendiam frutas e hortaliças. A mãe morreu, a frutaria fechou, o pai passa os dias à porta de casa ou sentado no carro. Uma vez discutiram, ele e o pai, o Zeca a dizer que o matava, depois silêncio, ele saiu, bateu com a porta, a vida continuou. A minha avó pede-lhe que faça algumas reparações lá em casa. Torneiras, prateleiras, gavetas que não fecham, portas que não abrem. E ele às vezes vai. Outras, não aparece. Quando aparece, faz as coisas como deve ser. A minha avó dá-lhe 5 ou 10 euros. Um prato de arroz doce. Ele agradece, todo curvado, todo gratidão, desce as escadas, volta uma hora depois, o arroz comido, o prato lavado. O Zeca teve um pombal. Lembro-me disso. Foi há muitos anos. Com umas ripas de madeira erguia-se uma garagem, com umas estacas, a vedação de uma horta. O primeiro a chegar reclamava o território e assim ficava, sem papéis, nem impostos, reconhecido por todos e por ninguém. O Zeca tinha o pombal. Um dia, o Zeca ficou sem o pombal, como outros ficaram sem as garagens e outros sem as hortas, mas permaneceu ali, nos baldios, sem nada para fazer, a descascar os dias, esse fruto que nas mãos do Zeca é só casca, uma interminável casca que se lhe enrola aos pés e que lhe vai amortalhando o corpo.


Zeca. Zeca. Tem cinquenta anos, de certeza não menos, poucos mais terá. Ao longe, a silhueta é a mesma de há trinta anos, o corpo magro, o cabelo crescendo para cima, as mãos enfiadas fundo nos bolsos apertados das calças de ganga gastas, tão antigas como a juventude dele. Sempre viveu ali, em casa dos pais, sem ocupação conhecida, sempre ali, de um lado para o outro, de dia em dia, como um gato a esgueirar-se por portas entreabertas. O Zeca não é deste mundo. Não é de mundo nenhum. Costumava ajudar os pais na frutaria, uma barraca entre outras onde vendiam frutas e hortaliças. A mãe morreu, a frutaria fechou, o pai passa os dias à porta de casa ou sentado no carro. Uma vez discutiram, ele e o pai, o Zeca a dizer que o matava, depois silêncio, ele saiu, bateu com a porta, a vida continuou. A minha avó pede-lhe que faça algumas reparações lá em casa. Torneiras, prateleiras, gavetas que não fecham, portas que não abrem. E ele às vezes vai. Outras, não aparece. Quando aparece, faz as coisas como deve ser. A minha avó dá-lhe 5 ou 10 euros. Um prato de arroz doce. Ele agradece, todo curvado, todo gratidão, desce as escadas, volta uma hora depois, o arroz comido, o prato lavado. O Zeca teve um pombal. Lembro-me disso. Foi há muitos anos. Com umas ripas de madeira erguia-se uma garagem, com umas estacas, a vedação de uma horta. O primeiro a chegar reclamava o território e assim ficava, sem papéis, nem impostos, reconhecido por todos e por ninguém. O Zeca tinha o pombal. Um dia, o Zeca ficou sem o pombal, como outros ficaram sem as garagens e outros sem as hortas, mas permaneceu ali, nos baldios, sem nada para fazer, a descascar os dias, esse fruto que nas mãos do Zeca é só casca, uma interminável casca que se lhe enrola aos pés e que lhe vai amortalhando o corpo.

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