Da Literatura: CLOSE READING

24-12-2009
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O Público publica hoje um longo artigo de Manuel Alegre, Contra o medo, liberdade. O destaque dado pelo jornal (com a foto do autor a ocupar mais de metade da primeira página) gera uma expectativa gorada. Vai-se à procura de um pronunciamento... e dá-se com um discurso de sessão solene no parlamento. Alguns extractos:«Nasci e cresci num Portugal onde vigorava o medo. Contra eles lutei a vida inteira. Não posso ficar calado perante alguns casos ultimamente vindos a público.»[Nenhum exemplo concreto é citado.]«Não vivemos em ditadura, nem sequer é legítimo falar de deriva autoritária. As instituições democráticas funcionam. Então porquê a sensação de que nem sempre convém dizer o que se pensa? Porquê o medo? De quem e de quê? Talvez os fantasmas estejam na própria sociedade e sejam fruto da inexistência de uma cultura de liberdade individual.»[Elementar.]«Quem se cala perante a delação e o abuso está a inculcar o medo. Está a mutilar a sua liberdade e a ameaçar a liberdade dos outros. Ora isso é o que nunca pode acontecer em democracia.»[Carapuça para Sócrates? Para Cavaco? Para ambos?]«E muito menos num partido como o PS, que sempre foi um partido de homens e mulheres livres, “o partido sem medo”, como era designado em 1975. Um partido que nasceu na luta contra a ditadura e que, depois do 25 de Abril, não permitiu que os perseguidos se transformassem em perseguidores, mostrando ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair noutra ditadura de sinal contrário.»[Elementar.]«No PS sempre houve sensibilidades, contestatários, críticos, pessoas que não tinham medo de dizer o que pensam e de ser contra quando entendiam que deviam ser contra. Aliás, os debates desse congresso, entre Sócrates, eu próprio e João Soares, projectaram o PS para fora de si mesmo e contribuíram em parte para a vitória alcançada nas legislativas. Mas parece que foram o canto do cisne.»[Canto do cisne que o não impediu de concorrer às presidenciais ao arrepio da escolha do partido.]«O Governo é condicionado a aplicar medidas decorrentes de uma Constituição económica europeia não escrita, que obriga os governos a atacar o seu próprio modelo social, reduzindo os serviços públicos, sobrecarregando os trabalhadores e as classes médias, que são pilares da democracia, impondo a desregulação e a flexigurança e agravando o desemprego, a precariedade e as desigualdades. Não necessariamente por maldade do Governo. Mas porque a isso obriga o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) conjugado com as Grandes Orientações de Política Económica. Sugeri, em tempos, que se deveria aproveitar a presidência da União Europeia para lançar o debate sobre a necessidade de rever o PEC. O Presidente Sarkozy tomou a iniciativa de o fazer.»[Les beaux esprits se rencontrent.]«Gostei de ouvir Sócrates a manifestar-se contra o pensamento único.»[Então já somos dois.]«Não vou demorar-me sobre a progressiva destruição do Serviço Nacional de Saúde, com, entre outras coisas, as taxas moderadoras sobre cirurgias e internamentos. Nem sobre o encerramento de serviços que agrava a desertificação do interior e a qualidade de vida das pessoas. Nem sobre a proposta de lei relativa ao regime do vínculo da Administração Pública, que reduz as funções do Estado à segurança, à autoridade e às relações internacionais, incluindo missões militares, secundarizando a dimensão administrativa dos direitos sociais. Nem sobre controversas alterações ao estatuto dos jornalistas em que têm sido especialmente contestadas a crescente desprotecção das fontes, com o que tal representa de risco para a liberdade de imprensa, assim como a intromissão indevida de personalidades e entidades na respectiva esfera deontológica. Nem sobre o cruzamento de dados relativos aos funcionários públicos, precedente grave que pode estender-se a outros sectores da sociedade. Nem ainda sobre a tendência privatizadora que, ao contrário do Tratado de Roma, onde se prevê a coexistência entre o público, o privado e o social, está a atingir todos os sectores estratégicos, incluindo a Rede Eléctrica Nacional, as Águas de Portugal e o próprio ensino superior, cujo novo regime jurídico, apesar das alterações introduzidas no Parlamento, suscita muitas dúvidas, nomeadamente no que respeita ao princípio da autonomia universitária.»[Isto é sobre o medo ou é um programa alternativo de governo?]«Todas estas questões, como muitas outras, são susceptíveis de ser discutidas e abordadas de diferentes pontos de vista. Não pretendo ser detentor da verdade. Mas penso que falta uma estratégia que dê um sentido de futuro e de esperança a medidas, algumas das quais tão polémicas, que estão a afectar tanta gente ao mesmo tempo.»[É a quadratura do círculo.]«Há também o álibi da presidência da União Europeia. Até agora, concordo com a acção do Governo.»[Et pour cause.]«O que não merece palmas é um certo estilo parecido com o que o PS criticou noutras maiorias. Nem a capacidade de decisão erigida num fim em si mesma, quase como uma ideologia. A tradição governamentalista continua a imperar em Portugal. Quando um partido vai para o Governo, este passa a mandar no partido, que, pouco a pouco, deixa de ter e manifestar opiniões próprias. A crítica é olhada com suspeita, o seguidismo transformado em virtude. Admito que a porta é estreita e que, nas circunstâncias actuais, as alternativas não são fáceis.»[A chamada idiossincrasia tuga.]«Mas há uma questão em relação à qual o PS jamais poderá tergiversar: essa questão é a liberdade. E quem diz liberdade diz liberdades. Liberdade de informação, liberdade de expressão, liberdade de crítica, liberdade que, segundo um clássico, é sempre a liberdade de pensar de maneira diferente. Qualquer deriva nesta matéria seria para o PS um verdadeiro suicídio.»[Elementar.]«Tenho por vezes a impressão de que certos políticos e certos jornalistas vivem num país virtual, sem povo, sem história nem memória.»[Políticos, jornalistas e... bloggers.]«Não tenho qualquer questão pessoal com José Sócrates, de quem muitas vezes discordo mas em quem aprecio o gosto pela intervenção política. O que ponho em causa é a redução da política à sua pessoa. Responsabilidade dele? A verdade é que não se perfilam, por enquanto, nenhumas alternativas à sua liderança. Nem dentro do PS nem, muito menos, no PSD. Ora isto não é bom para o próprio Sócrates, para o PS e para a democracia.»[Elementar.]«Há mais vida para além das lógicas de aparelho.»[E então...?]«Se os principais partidos não vão ao encontro da vida, pode muito bem acontecer que a recomposição do sistema se faça pelo voto dos cidadãos. Tanto no sentido positivo como negativo, se tal ocorrer em torno de uma qualquer deriva populista. Há sempre esse risco. Os principais inimigos dos partidos políticos são aqueles que, dentro deles, promovem o seu fechamento e impedem a mudança e a abertura. Por isso, como em tempo de outros temores escreveu Mário Cesariny: “Entre nós e as palavras, o nosso dever falar.” Agora e sempre contra o medo, pela liberdade.»[Elementar.] Etiquetas: Liberdades, Política nacional

O Público publica hoje um longo artigo de Manuel Alegre, Contra o medo, liberdade. O destaque dado pelo jornal (com a foto do autor a ocupar mais de metade da primeira página) gera uma expectativa gorada. Vai-se à procura de um pronunciamento... e dá-se com um discurso de sessão solene no parlamento. Alguns extractos:«Nasci e cresci num Portugal onde vigorava o medo. Contra eles lutei a vida inteira. Não posso ficar calado perante alguns casos ultimamente vindos a público.»[Nenhum exemplo concreto é citado.]«Não vivemos em ditadura, nem sequer é legítimo falar de deriva autoritária. As instituições democráticas funcionam. Então porquê a sensação de que nem sempre convém dizer o que se pensa? Porquê o medo? De quem e de quê? Talvez os fantasmas estejam na própria sociedade e sejam fruto da inexistência de uma cultura de liberdade individual.»[Elementar.]«Quem se cala perante a delação e o abuso está a inculcar o medo. Está a mutilar a sua liberdade e a ameaçar a liberdade dos outros. Ora isso é o que nunca pode acontecer em democracia.»[Carapuça para Sócrates? Para Cavaco? Para ambos?]«E muito menos num partido como o PS, que sempre foi um partido de homens e mulheres livres, “o partido sem medo”, como era designado em 1975. Um partido que nasceu na luta contra a ditadura e que, depois do 25 de Abril, não permitiu que os perseguidos se transformassem em perseguidores, mostrando ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair noutra ditadura de sinal contrário.»[Elementar.]«No PS sempre houve sensibilidades, contestatários, críticos, pessoas que não tinham medo de dizer o que pensam e de ser contra quando entendiam que deviam ser contra. Aliás, os debates desse congresso, entre Sócrates, eu próprio e João Soares, projectaram o PS para fora de si mesmo e contribuíram em parte para a vitória alcançada nas legislativas. Mas parece que foram o canto do cisne.»[Canto do cisne que o não impediu de concorrer às presidenciais ao arrepio da escolha do partido.]«O Governo é condicionado a aplicar medidas decorrentes de uma Constituição económica europeia não escrita, que obriga os governos a atacar o seu próprio modelo social, reduzindo os serviços públicos, sobrecarregando os trabalhadores e as classes médias, que são pilares da democracia, impondo a desregulação e a flexigurança e agravando o desemprego, a precariedade e as desigualdades. Não necessariamente por maldade do Governo. Mas porque a isso obriga o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) conjugado com as Grandes Orientações de Política Económica. Sugeri, em tempos, que se deveria aproveitar a presidência da União Europeia para lançar o debate sobre a necessidade de rever o PEC. O Presidente Sarkozy tomou a iniciativa de o fazer.»[Les beaux esprits se rencontrent.]«Gostei de ouvir Sócrates a manifestar-se contra o pensamento único.»[Então já somos dois.]«Não vou demorar-me sobre a progressiva destruição do Serviço Nacional de Saúde, com, entre outras coisas, as taxas moderadoras sobre cirurgias e internamentos. Nem sobre o encerramento de serviços que agrava a desertificação do interior e a qualidade de vida das pessoas. Nem sobre a proposta de lei relativa ao regime do vínculo da Administração Pública, que reduz as funções do Estado à segurança, à autoridade e às relações internacionais, incluindo missões militares, secundarizando a dimensão administrativa dos direitos sociais. Nem sobre controversas alterações ao estatuto dos jornalistas em que têm sido especialmente contestadas a crescente desprotecção das fontes, com o que tal representa de risco para a liberdade de imprensa, assim como a intromissão indevida de personalidades e entidades na respectiva esfera deontológica. Nem sobre o cruzamento de dados relativos aos funcionários públicos, precedente grave que pode estender-se a outros sectores da sociedade. Nem ainda sobre a tendência privatizadora que, ao contrário do Tratado de Roma, onde se prevê a coexistência entre o público, o privado e o social, está a atingir todos os sectores estratégicos, incluindo a Rede Eléctrica Nacional, as Águas de Portugal e o próprio ensino superior, cujo novo regime jurídico, apesar das alterações introduzidas no Parlamento, suscita muitas dúvidas, nomeadamente no que respeita ao princípio da autonomia universitária.»[Isto é sobre o medo ou é um programa alternativo de governo?]«Todas estas questões, como muitas outras, são susceptíveis de ser discutidas e abordadas de diferentes pontos de vista. Não pretendo ser detentor da verdade. Mas penso que falta uma estratégia que dê um sentido de futuro e de esperança a medidas, algumas das quais tão polémicas, que estão a afectar tanta gente ao mesmo tempo.»[É a quadratura do círculo.]«Há também o álibi da presidência da União Europeia. Até agora, concordo com a acção do Governo.»[Et pour cause.]«O que não merece palmas é um certo estilo parecido com o que o PS criticou noutras maiorias. Nem a capacidade de decisão erigida num fim em si mesma, quase como uma ideologia. A tradição governamentalista continua a imperar em Portugal. Quando um partido vai para o Governo, este passa a mandar no partido, que, pouco a pouco, deixa de ter e manifestar opiniões próprias. A crítica é olhada com suspeita, o seguidismo transformado em virtude. Admito que a porta é estreita e que, nas circunstâncias actuais, as alternativas não são fáceis.»[A chamada idiossincrasia tuga.]«Mas há uma questão em relação à qual o PS jamais poderá tergiversar: essa questão é a liberdade. E quem diz liberdade diz liberdades. Liberdade de informação, liberdade de expressão, liberdade de crítica, liberdade que, segundo um clássico, é sempre a liberdade de pensar de maneira diferente. Qualquer deriva nesta matéria seria para o PS um verdadeiro suicídio.»[Elementar.]«Tenho por vezes a impressão de que certos políticos e certos jornalistas vivem num país virtual, sem povo, sem história nem memória.»[Políticos, jornalistas e... bloggers.]«Não tenho qualquer questão pessoal com José Sócrates, de quem muitas vezes discordo mas em quem aprecio o gosto pela intervenção política. O que ponho em causa é a redução da política à sua pessoa. Responsabilidade dele? A verdade é que não se perfilam, por enquanto, nenhumas alternativas à sua liderança. Nem dentro do PS nem, muito menos, no PSD. Ora isto não é bom para o próprio Sócrates, para o PS e para a democracia.»[Elementar.]«Há mais vida para além das lógicas de aparelho.»[E então...?]«Se os principais partidos não vão ao encontro da vida, pode muito bem acontecer que a recomposição do sistema se faça pelo voto dos cidadãos. Tanto no sentido positivo como negativo, se tal ocorrer em torno de uma qualquer deriva populista. Há sempre esse risco. Os principais inimigos dos partidos políticos são aqueles que, dentro deles, promovem o seu fechamento e impedem a mudança e a abertura. Por isso, como em tempo de outros temores escreveu Mário Cesariny: “Entre nós e as palavras, o nosso dever falar.” Agora e sempre contra o medo, pela liberdade.»[Elementar.] Etiquetas: Liberdades, Política nacional

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