Serpente Emplumada: FALA DE UM VIAJANTE DE TERCEIRA CLASSE

21-05-2011
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"Venho de longe. Meu nome?Meu nome é terra. Está escritoNa palma da minha mão.Meu tempo de não ter fomeFoi o tempo de eu mamar.Aos seis meses era um homem:Davam-me sopas de vinhoE eu ficava na canastraFicava quieto a dormir.Minha mãe não tinha tempoPara ter tempo comigo:Dava-me sopas de vinho.Talvez por isso este fogoQue sempre tive no peitoQue aos seis meses eu ficavaDormindo podre de bêbado.E assim cresci por acaso,Minha escola foram camposRibeiros árvores montes.Meus livros foram os ninhosLagartos cobras besouros.Aprendi tudo nas ervasAprendi tudo nos bichos.Meu professor foi o vento.Nunca soube ler meu nome.Para quê? Meu nome é terra.Está escrito na minha mão.Não perdi nada que nuncaTive nada que perder.Há quem diga que perdiSó o futuro. É possível.Mas eu creio que nasciCom tudo perdido antes.Adiante. Desde cedoTrabalhei por conta alheiaSachei a terra mondeiDei à terra o meu suorLavrei plantei. Não colhi.Em casa levei porradaComi boroa duraChorei lágrimas de raiva.Não que meu pai fosse mau.Era a terra que comiaSeu coração sua vida."Trabalhar de sol a sol?- queixava-se ele - para quêSe são os outros que comemtudo o que a gente semeia?Na colheita que nos roubamRoubam a vida de um homem.Meu nome meu filho é terra:Está escrito na minha mão".E às vezes dizia: "Não!Antes a morte ou a guerraDo que ser escravo da terraQue não é de quem trabalha".Um dia meu pai matou-se.Abriu os pulsos rasgou-oscom a ponta da navalha.E o sangue correu correu.Gravou na terra a vermelhoEsse nome que meu paiTrazia escrito na mão.Assim fiquei de repenteA ser o homem da casaCom minha mãe meus irmãosQue por essa altura andavamNa mesma escola em que andei.Foi num Domingo de RamosQue pela primeira vezEu soube o que era mulher.E foi meu leito de núpciasUm chão de pedra e carqueja.(porém com penas e rosasNo corpo da minha amada).E foi então que aprendiQue morrer deve ser isto:Uma vertigem uma quedaAté ao centro da terra.Assim cresci. Fiz um filho.Dei porrada na mulherQue meu amor era raiva.Não tinha beijos na bocaNão tinha festas nos dedos.Estava seco seco seco.A terra levava tudo.Primeiro foi minha mãeMais tarde minha madrastaMinha amante minha amada.Mas a terra é uma rameiraA terra sugou meu sangueA terra comeu meus dedosMeu coração minha vida.Fiquei seco seco seco.Cada ano fiz um filhoDei porrada na mulherE na taberna volteiA ter um fogo no peitoComo quando era menino.Porém já meu coraçãoNão voava como dantesQuando eu tinha no meu peitoUma estrela um vento um pássaro.Era raiva o que sentia.E não sei se era do vinhoSe da raiva que sentiaMas muitas vezes olhandoA palma da minha mãoVi a sombra duma estrelaVi o nome de meu paiEscrito com sangue vermelhoNas palmas da minha mão.Trinta e sete anos correramE em cada dia morriCada dia que vivi.Enchi celeiros adegas.Muitos comboios levavamO trigo das minhas mãos.Alguns dentes mastigavamA farinha do meu corpo.Algumas bocas bebiamO vinho que era meu sangue.Fiquei seco seco seco.Até que um dia me disse:"Trabalhar de sol a solQuando são outros que comemO pão que a gente semeia?Vou-me embora desta terra".Vinham notícias de França:"Cá a gente tem trabalhoTem sindicatos bièresVacances securité.Deixa a terra. Vem-te embora!"Então um dia leveiMinha mulher para a cama.Poucas palavras lhe disse.Apenas disse: "MulherEu quero um filho que sejaO homem que nunca fui.É meu sangue que te deixoMinha vida que te dou.Que ele cresça no teu corpoComo a flor cresce na terraPorque toda a minha vidaSe perdeu - mulher - na terra.Que seja eu próprio o teu filho".De novo na minha bocaNasceram beijos. De novoMeus dedos tiveram festas.E então de novo sentiEsse modo de morrer:Uma vertigem uma quedaAté ao centro da terra.Quando veio a madrugadaEu disse: "Mulher adeus.Vou-me embora para França".E quando o dia chegouJá estava longe de casa."Adeus prados e montanhasrios árvores adeus.Aqui fica minha vida.Eu por mim vou seco seco".E não sei se era saudadeSe eram lágrimas nos olhosMas de repente ao olharEu vi os campos em voltaCheios de espigas vermelhas:Era o meu sangue florindoGota a gota em cada espiga.Meu nome? Meu nome é terra.Está escrito na minha mão."Manuel Alegre. (Retirado de uma edição clandestina de "O Canto e as Armas". Início da década de 70).


"Venho de longe. Meu nome?Meu nome é terra. Está escritoNa palma da minha mão.Meu tempo de não ter fomeFoi o tempo de eu mamar.Aos seis meses era um homem:Davam-me sopas de vinhoE eu ficava na canastraFicava quieto a dormir.Minha mãe não tinha tempoPara ter tempo comigo:Dava-me sopas de vinho.Talvez por isso este fogoQue sempre tive no peitoQue aos seis meses eu ficavaDormindo podre de bêbado.E assim cresci por acaso,Minha escola foram camposRibeiros árvores montes.Meus livros foram os ninhosLagartos cobras besouros.Aprendi tudo nas ervasAprendi tudo nos bichos.Meu professor foi o vento.Nunca soube ler meu nome.Para quê? Meu nome é terra.Está escrito na minha mão.Não perdi nada que nuncaTive nada que perder.Há quem diga que perdiSó o futuro. É possível.Mas eu creio que nasciCom tudo perdido antes.Adiante. Desde cedoTrabalhei por conta alheiaSachei a terra mondeiDei à terra o meu suorLavrei plantei. Não colhi.Em casa levei porradaComi boroa duraChorei lágrimas de raiva.Não que meu pai fosse mau.Era a terra que comiaSeu coração sua vida."Trabalhar de sol a sol?- queixava-se ele - para quêSe são os outros que comemtudo o que a gente semeia?Na colheita que nos roubamRoubam a vida de um homem.Meu nome meu filho é terra:Está escrito na minha mão".E às vezes dizia: "Não!Antes a morte ou a guerraDo que ser escravo da terraQue não é de quem trabalha".Um dia meu pai matou-se.Abriu os pulsos rasgou-oscom a ponta da navalha.E o sangue correu correu.Gravou na terra a vermelhoEsse nome que meu paiTrazia escrito na mão.Assim fiquei de repenteA ser o homem da casaCom minha mãe meus irmãosQue por essa altura andavamNa mesma escola em que andei.Foi num Domingo de RamosQue pela primeira vezEu soube o que era mulher.E foi meu leito de núpciasUm chão de pedra e carqueja.(porém com penas e rosasNo corpo da minha amada).E foi então que aprendiQue morrer deve ser isto:Uma vertigem uma quedaAté ao centro da terra.Assim cresci. Fiz um filho.Dei porrada na mulherQue meu amor era raiva.Não tinha beijos na bocaNão tinha festas nos dedos.Estava seco seco seco.A terra levava tudo.Primeiro foi minha mãeMais tarde minha madrastaMinha amante minha amada.Mas a terra é uma rameiraA terra sugou meu sangueA terra comeu meus dedosMeu coração minha vida.Fiquei seco seco seco.Cada ano fiz um filhoDei porrada na mulherE na taberna volteiA ter um fogo no peitoComo quando era menino.Porém já meu coraçãoNão voava como dantesQuando eu tinha no meu peitoUma estrela um vento um pássaro.Era raiva o que sentia.E não sei se era do vinhoSe da raiva que sentiaMas muitas vezes olhandoA palma da minha mãoVi a sombra duma estrelaVi o nome de meu paiEscrito com sangue vermelhoNas palmas da minha mão.Trinta e sete anos correramE em cada dia morriCada dia que vivi.Enchi celeiros adegas.Muitos comboios levavamO trigo das minhas mãos.Alguns dentes mastigavamA farinha do meu corpo.Algumas bocas bebiamO vinho que era meu sangue.Fiquei seco seco seco.Até que um dia me disse:"Trabalhar de sol a solQuando são outros que comemO pão que a gente semeia?Vou-me embora desta terra".Vinham notícias de França:"Cá a gente tem trabalhoTem sindicatos bièresVacances securité.Deixa a terra. Vem-te embora!"Então um dia leveiMinha mulher para a cama.Poucas palavras lhe disse.Apenas disse: "MulherEu quero um filho que sejaO homem que nunca fui.É meu sangue que te deixoMinha vida que te dou.Que ele cresça no teu corpoComo a flor cresce na terraPorque toda a minha vidaSe perdeu - mulher - na terra.Que seja eu próprio o teu filho".De novo na minha bocaNasceram beijos. De novoMeus dedos tiveram festas.E então de novo sentiEsse modo de morrer:Uma vertigem uma quedaAté ao centro da terra.Quando veio a madrugadaEu disse: "Mulher adeus.Vou-me embora para França".E quando o dia chegouJá estava longe de casa."Adeus prados e montanhasrios árvores adeus.Aqui fica minha vida.Eu por mim vou seco seco".E não sei se era saudadeSe eram lágrimas nos olhosMas de repente ao olharEu vi os campos em voltaCheios de espigas vermelhas:Era o meu sangue florindoGota a gota em cada espiga.Meu nome? Meu nome é terra.Está escrito na minha mão."Manuel Alegre. (Retirado de uma edição clandestina de "O Canto e as Armas". Início da década de 70).

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