Memória da Caparica em risco de desaparecer Património

02-11-2010
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O prazo dado para a remoção das 45 "barracas" que testemunham como tudo ali começou já expirou. Câmara de Almada não dá sinais de partilhar a preocupação dos estudiosos. Costapolis deixa uma porta entreaberta. Por José António Cerejo (texto) Enric Vives-Rubio (fotografia)

a A palavra "barracas" está entre aspas. E há fortes razões para isso. Ao contrário do seu significado corrente de construção provisória, sem valor, aqui o termo tem ressonâncias de preciosidade a vários títulos. Um tesouro feito de quase meia centena de edificações surpreendentes, de origem palafítica, que resistem a ventos e marés. Alinhadas ao longo de uma frente de dois quilómetros do areal das praias da Saúde e da Mata, entre a Costa de Caparica e a Fonte da Telha, elas evocam tempos primordiais, vidas que já não existem, raízes do que somos, vestígios do que fomos. Mas é como barracas, sem aspas nem complexos, que ali e noutros lugares são conhecidas e nomeadas.

Amorosamente conservadas algumas, fortemente descaracterizadas e marcadas pelo selo do abandono outras, as barracas de madeira que escaparam à invasão do betão capariquense não deixam dúvidas do que representam. Estudiosos e investigadores de várias áreas reconhecem-nas há muito e valorizam-nas como peças marcantes de uma herança cultural e de uma tradição piscatória com origem, dois séculos atrás, nas costas de Mira e Ílhavo até Ovar.

Mas os turistas que têm olhos para lá do óbvio, os publicitários, a gente da moda e do design também sabem o que ali está. Confirmam-no os postais ilustrados que exibem as barracas - por vezes chamadas "palheiros" e "palhotas", por referência às primitivas coberturas de colmo deste género de construções - como ex-líbris das praias da Caparica. Juram-no a pés juntos as revistas de moda e decoração (Vogue brasileira de Maio deste ano, Caras Decoração de Agosto de 1998, Atitude do mês passado e outras), que as usam como cenário das suas produções. Atestam-no os autores da novela Mar de Paixão, que a TVI está a passar e que ali têm rodado muitas cenas.

Só autoridades, da administração central à Câmara de Almada e à Costapolis, a sociedade de capitais públicos que ali gere a renovação da frente marítima, parecem não entender, não conhecer, não sentir. "O que aqui está faz parte de um património riquíssimo que temos vindo a destruir paulatinamente ao longo de toda a costa. Tudo isto está estudado e documentado desde Raul Brandão, Ernesto Veiga de Oliveira, Leite de Vasconcelos ou José Saramago. E, no entanto, avançam estas ofensivas destruidoras de paisagens humanizadas e únicas." Ricardo Salomão, investigador da Universidade Aberta e activista da candidatura da cultura avieira a património nacional, não tem dúvidas de que as barracas da praia da Saúde pertencem ao mesmo universo das dos antigos pescadores avieiros do Tejo. Para ele, que aponta, indignado, as modernas construções, entre as quais um grande hotel, autorizadas ali mesmo por trás, no topo da área protegida da monumental arriba fóssil da Caparica, uma das chaves explicativas do desprezo a que são votadas as casas da praia é muito simples. "A história dos pobres é sempre negligenciada!"

A ordem de remoção

Catarina Manalvo, 35 anos, neta do proprietário de uma das barracas agora em risco, exibe a notificação da Costapolis que a traz revoltada, a ela e aos vizinhos, há mais de um mês. Datado de 14 de Setembro, o documento, igual a outros que foram enviados aos restantes proprietários, ordena a "remoção no prazo de 30 dias" da construção adquirida pelo seu avô há 55 anos. A explicação dada na carta fica-se praticamente pela alusão a um decreto de 2000 que "extinguiu todos os direitos de uso privativo constituídos sobre os bens imóveis" situados no domínio público marítimo das zonas de intervenção da empresa.

"Nunca nos tinham dito nada. Fomos apanhados de surpresa com esta maldade que nos querem fazer", conta Catarina, no interior de uma autêntica casa de bonecas, toda em madeira, assente em grossos troncos, onde nada falta, nem a água que vem do poço. Os sinais da incompreensão de que "isto é que faz a diferença e a orignalidade da Costa" vinham porém de há muito, do tempo em que as barracas começaram a ser rotuladas de "clandestinas". Foi assim que a correnteza de antigas casas de pescadores, que vinha desde o centro da Caparica, acabou quase toda nas lixeiras durante as últimas décadas do século passado.

Sobraram as 45 que aqui estão e que ostentam uma estranha numeração, saltando do 50 para o 139, ou do 23 para o 87. A razão está no facto de todas elas (há fotos e testemunhos que o comprovam) terem sido para ali transportadas em cima de rolos de madeira, puxados por bois pela beira-mar, quando o oceano tragou grande parte do areal da Cova do Vapor, do outro lado da Caparica, onde se encontravam até perto de 1954. Algumas terão mesmo sido levadas, ainda antes, da praia do Dafundo, em Lisboa, para a Cova do Vapor.

Confrontado recentemente com este núcleo de barracas, que desconhecia até então, João Serrano, o animador do movimento de defesa da cultura avieira do Tejo, "emocionou-se" e mostrou a sua surpresa. "Aquela parece a igreja de Mira", relata Catarina Manalvo.

Feitas as contas, afirma, em 45, só umas dez é que estão abandonadas ou ocupadas sem autorização dos donos. "Desde 1991 que as autoridades deixaram de renovar as licenças anuais que até aí eram emitidas e pagas. Isso levou algumas pessoas ao desalento." No total, só duas é que servem de habitação permanente, sendo as restantes usadas como locais de veraneio pelos proprietários, muitos dos quais as compraram, há dezenas de anos, aos pescadores realojados no tempo da ditadura. Os pescadores foram-se embora, mas o património ficou e tem de ser preservado, nota Ricardo Salomão.

Agora, diz João Pinheiro, marido de Catarina, parece que há quem queira trazer a uniformidade da frente oceânica da Costa até aqui. "Se eu estiver a pregar um prego, aparece logo a Polícia Marítima a perguntar pela licença que ninguém dá e a ameaçar com coimas." Outro exemplo: no início do Verão, quando as máquinas desimpedem os carris do minicomboio, que passa mesmo por trás das casas, a areia é despejada "às toneladas" para cima delas. "Temos de a tirar à pazada, porque se trazemos uma máquina somos logo multados."

Perante a ordem de remoção das barracas, os proprietários responderam à Costapolis a mais de 30 vozes iguais. Declararam-se prontos a requalificar, a reagrupar algumas casas, se necessário, a assumir compromissos, mas recusaram-se a enterrar o tesouro.

Em resposta às perguntas do PÚBLICO, a empresa deixou uma porta entreaberta: "Face às questões suscitadas por alguns proprietários, nomeadamente aquelas que mencionam o eventual interesse patrimonial de algumas dessas construções, reserva-se esta sociedade à necessária ponderação, pelo que oportunamente prestará esclarecimentos adicionais."

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A Câmara de Almada, por seu lado, respondeu com o silêncio.

Preocupada mesmo está Edite Silveira, nascida em Alfama há 85 anos. É dona de uma das duas únicas barracas habitadas permantemente e é nela que vive com o Bolinhas e o Flash, os cães que não a largam. "Eu nem quero pensar que deitam isto abaixo. É uma doença para mim."Ricardo Salomão,

docente universitário

O prazo dado para a remoção das 45 "barracas" que testemunham como tudo ali começou já expirou. Câmara de Almada não dá sinais de partilhar a preocupação dos estudiosos. Costapolis deixa uma porta entreaberta. Por José António Cerejo (texto) Enric Vives-Rubio (fotografia)

a A palavra "barracas" está entre aspas. E há fortes razões para isso. Ao contrário do seu significado corrente de construção provisória, sem valor, aqui o termo tem ressonâncias de preciosidade a vários títulos. Um tesouro feito de quase meia centena de edificações surpreendentes, de origem palafítica, que resistem a ventos e marés. Alinhadas ao longo de uma frente de dois quilómetros do areal das praias da Saúde e da Mata, entre a Costa de Caparica e a Fonte da Telha, elas evocam tempos primordiais, vidas que já não existem, raízes do que somos, vestígios do que fomos. Mas é como barracas, sem aspas nem complexos, que ali e noutros lugares são conhecidas e nomeadas.

Amorosamente conservadas algumas, fortemente descaracterizadas e marcadas pelo selo do abandono outras, as barracas de madeira que escaparam à invasão do betão capariquense não deixam dúvidas do que representam. Estudiosos e investigadores de várias áreas reconhecem-nas há muito e valorizam-nas como peças marcantes de uma herança cultural e de uma tradição piscatória com origem, dois séculos atrás, nas costas de Mira e Ílhavo até Ovar.

Mas os turistas que têm olhos para lá do óbvio, os publicitários, a gente da moda e do design também sabem o que ali está. Confirmam-no os postais ilustrados que exibem as barracas - por vezes chamadas "palheiros" e "palhotas", por referência às primitivas coberturas de colmo deste género de construções - como ex-líbris das praias da Caparica. Juram-no a pés juntos as revistas de moda e decoração (Vogue brasileira de Maio deste ano, Caras Decoração de Agosto de 1998, Atitude do mês passado e outras), que as usam como cenário das suas produções. Atestam-no os autores da novela Mar de Paixão, que a TVI está a passar e que ali têm rodado muitas cenas.

Só autoridades, da administração central à Câmara de Almada e à Costapolis, a sociedade de capitais públicos que ali gere a renovação da frente marítima, parecem não entender, não conhecer, não sentir. "O que aqui está faz parte de um património riquíssimo que temos vindo a destruir paulatinamente ao longo de toda a costa. Tudo isto está estudado e documentado desde Raul Brandão, Ernesto Veiga de Oliveira, Leite de Vasconcelos ou José Saramago. E, no entanto, avançam estas ofensivas destruidoras de paisagens humanizadas e únicas." Ricardo Salomão, investigador da Universidade Aberta e activista da candidatura da cultura avieira a património nacional, não tem dúvidas de que as barracas da praia da Saúde pertencem ao mesmo universo das dos antigos pescadores avieiros do Tejo. Para ele, que aponta, indignado, as modernas construções, entre as quais um grande hotel, autorizadas ali mesmo por trás, no topo da área protegida da monumental arriba fóssil da Caparica, uma das chaves explicativas do desprezo a que são votadas as casas da praia é muito simples. "A história dos pobres é sempre negligenciada!"

A ordem de remoção

Catarina Manalvo, 35 anos, neta do proprietário de uma das barracas agora em risco, exibe a notificação da Costapolis que a traz revoltada, a ela e aos vizinhos, há mais de um mês. Datado de 14 de Setembro, o documento, igual a outros que foram enviados aos restantes proprietários, ordena a "remoção no prazo de 30 dias" da construção adquirida pelo seu avô há 55 anos. A explicação dada na carta fica-se praticamente pela alusão a um decreto de 2000 que "extinguiu todos os direitos de uso privativo constituídos sobre os bens imóveis" situados no domínio público marítimo das zonas de intervenção da empresa.

"Nunca nos tinham dito nada. Fomos apanhados de surpresa com esta maldade que nos querem fazer", conta Catarina, no interior de uma autêntica casa de bonecas, toda em madeira, assente em grossos troncos, onde nada falta, nem a água que vem do poço. Os sinais da incompreensão de que "isto é que faz a diferença e a orignalidade da Costa" vinham porém de há muito, do tempo em que as barracas começaram a ser rotuladas de "clandestinas". Foi assim que a correnteza de antigas casas de pescadores, que vinha desde o centro da Caparica, acabou quase toda nas lixeiras durante as últimas décadas do século passado.

Sobraram as 45 que aqui estão e que ostentam uma estranha numeração, saltando do 50 para o 139, ou do 23 para o 87. A razão está no facto de todas elas (há fotos e testemunhos que o comprovam) terem sido para ali transportadas em cima de rolos de madeira, puxados por bois pela beira-mar, quando o oceano tragou grande parte do areal da Cova do Vapor, do outro lado da Caparica, onde se encontravam até perto de 1954. Algumas terão mesmo sido levadas, ainda antes, da praia do Dafundo, em Lisboa, para a Cova do Vapor.

Confrontado recentemente com este núcleo de barracas, que desconhecia até então, João Serrano, o animador do movimento de defesa da cultura avieira do Tejo, "emocionou-se" e mostrou a sua surpresa. "Aquela parece a igreja de Mira", relata Catarina Manalvo.

Feitas as contas, afirma, em 45, só umas dez é que estão abandonadas ou ocupadas sem autorização dos donos. "Desde 1991 que as autoridades deixaram de renovar as licenças anuais que até aí eram emitidas e pagas. Isso levou algumas pessoas ao desalento." No total, só duas é que servem de habitação permanente, sendo as restantes usadas como locais de veraneio pelos proprietários, muitos dos quais as compraram, há dezenas de anos, aos pescadores realojados no tempo da ditadura. Os pescadores foram-se embora, mas o património ficou e tem de ser preservado, nota Ricardo Salomão.

Agora, diz João Pinheiro, marido de Catarina, parece que há quem queira trazer a uniformidade da frente oceânica da Costa até aqui. "Se eu estiver a pregar um prego, aparece logo a Polícia Marítima a perguntar pela licença que ninguém dá e a ameaçar com coimas." Outro exemplo: no início do Verão, quando as máquinas desimpedem os carris do minicomboio, que passa mesmo por trás das casas, a areia é despejada "às toneladas" para cima delas. "Temos de a tirar à pazada, porque se trazemos uma máquina somos logo multados."

Perante a ordem de remoção das barracas, os proprietários responderam à Costapolis a mais de 30 vozes iguais. Declararam-se prontos a requalificar, a reagrupar algumas casas, se necessário, a assumir compromissos, mas recusaram-se a enterrar o tesouro.

Em resposta às perguntas do PÚBLICO, a empresa deixou uma porta entreaberta: "Face às questões suscitadas por alguns proprietários, nomeadamente aquelas que mencionam o eventual interesse patrimonial de algumas dessas construções, reserva-se esta sociedade à necessária ponderação, pelo que oportunamente prestará esclarecimentos adicionais."

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A Câmara de Almada, por seu lado, respondeu com o silêncio.

Preocupada mesmo está Edite Silveira, nascida em Alfama há 85 anos. É dona de uma das duas únicas barracas habitadas permantemente e é nela que vive com o Bolinhas e o Flash, os cães que não a largam. "Eu nem quero pensar que deitam isto abaixo. É uma doença para mim."Ricardo Salomão,

docente universitário

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