Terá o plano actual o mesmo desfecho do pacote de 1983?

20-06-2010
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Actores parecidos. Um mesmo discurso da inevitabilidade, sem falar das causas. Uma mesma terapia de cura. E um futuro por apurar

De repente, surgem os rostos crispados, os olhos mal dormidos, os acordos de emergência em nome de "um esforço nacional". Pela segunda vez em cinco anos, o primeiro-ministro desceu da sala do Conselho de Ministros para uma "conferência de imprensa" só autorizada às televisões, para anunciar um pacote de "medidas indispensáveis e imprescindíveis", o início de um estado de calamidade económica.

Este toque a rebate não é novo em Portugal. Ouvir José Sócrates, tolhido, falar da necessidade de "reforçar a nossa credibilidade junto dos mercados internacionais", ressoa como um eco das declarações de 1983 quando o primeiro-ministro de então, Mário Soares, defendeu o acordo draconiano com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que levou Portugal à recessão.

"Estávamos na ameaça de uma ruptura financeira, de bancarrota", alegou. "Em consequência desta crise financeira, estávamos perante a ameaça de paralisação da vida económica, com tudo o que isso representa de sacrifícios, esses sim, inenarráveis para a população, se tal ruptura viesse a acontecer (...). O que seria grave e uma escravidão para o país era que Portugal não tivesse crédito." A solução negociada era "a única possível, a única patriótica".

O ministro das Finanças, Ernâni Lopes, repisou o argumento. "É preciso definir e cumprir prioridades. E a estabilização financeira, não sendo condição suficiente, é um passo estritamente indispensável." "Não irei aqui discutir se havia ou há alternativas", continuava. "Manifestarei, apenas, uma vez mais, a convicção de que o Governo escolheu o caminho com menores custos globais." Algo que Sócrates repetiu para as televisões: "Estas medidas foram pensadas para ter o menor efeito recessivo."

Mas as similitudes são também nas questões de fundo. Na sua base, está um desequilíbrio estrutural do tecido produtivo e das contas externas que não foi resolvido, apesar do tempo passado (ver texto). As contas orçamentais foram empurradas para políticas expansionistas. Ler os documentos de 1983 é perceber porque nos doem hoje os ossos.

Com o tempo, perdeu-se a qualidade e a elegância do debate parlamentar. Mas os actores de ontem foram guindados aos lugares cimeiros da democracia nacional. Mário Soares, Cavaco Silva, Ernâni Lopes, Vitor Constâncio, João Salgueiro, Francisco Balsemão, entre outros. O discurso é ainda o de estado de necessidade, na proporção da terapia, brutal e sempre déjà vu: um forte aperto nos rendimentos, como forma de conter os gastos.

Sempre, porém, com a promessa de que o aperto "temporário" se fará em nome de melhores dias. Seja em prol do "desenvolvimento", da "diversificação do sector industrial", como se dizia na década de 80, ou actualmente do "crescimento económico", da "recuperação da economia".

FMI com terapia pesada

O pano de fundo da crise é um contexto adverso. A subida dos preços do petróleo em 1973, somado à explosão social pós-25 de Abril, levou Portugal ao primeiro acordo com o FMI , em 1978. Mas tudo se complicou com o segundo "choque petrolífero" de 1979, que forçou as economias da OCDE a contraírem-se. Em contraciclo, as políticas seguidas em 1980 pelo Governo, era Cavaco Silva ministro das Finanças, foram, no entender do ex-governador do Banco de Portugal Silva Lopes, "claramente expansionistas", com o fito de "promover a vitória eleitoral do PSD/CDS (Aliança Democrática)", então no poder.

A AD ganhou as eleições, mas com consequências. O défice das transacções correntes subiu de 5 por cento do PIB em 1980 para 11,5 por cento em 1981 e 13,2 por cento em 1982. Para pagá-los, a dívida externa subiu de 467 milhões de contos em 1980 para 723 milhões em 1981 e para 1199 milhões em 1982. Os mercados financeiros estavam à beira de fechar a torneira.

Estas dificuldades rebentaram com o governo AD e surgiu o bloco central (PS/PSD), de Mário Soares e Mota Pinto. O Governo optou por recorrer ao FMI, não sem suscitar críticas. "Evidentemente que havia alternativas", defendia João Salgueiro, uma das figuras fortes do PSD. "Nós temos reservas substanciais que podíamos mobilizar, só que em termos de conveniência, é muito mais custoso mobilizar recursos do que fazer um acordo com o FMI."

As negociações iniciaram-se a 18 de Julho de 1983. A delegação do FMI era chefiada pela italiana Teresa Ter-Minassian, conhecida pela sua elegância e simpatia, mas pela dureza a negociar. A carta de intenções foi assinada a 9 de Agosto e o Fundo desbloqueou os apoios necessários - 300 milhões de dólares para financiamento da dívida e 100 milhões para quebras de exportações. Mas a terapia foi pesada. Redução do défice de transacções correntes de 9,3 por cento em 1983 para 6 por cento em 1984. O défice orçamental deveria passar de 11,7 por cento em 1982 para menos de 10 por cento em 1983 e 7,3 por cento em 1984. Para reduzir as importações, era preciso cortar nas despesas dos portugueses e do Estado. Foi decidido, como descreve o relatório do Banco de Portugal de 1983, um "forte aumento da tributação directa e indirecta, a redução de despesas do sector público administrativo e o congelamento de parte das despesas de investimento" das empresas públicas. Despediu-se pessoal.

O mais simbólico entre eles foi o imposto extraordinário sobre rendimentos prediais, capitais e profissionais - um corte de 28 por cento no subsídio de Natal. O Tribunal Constitucional ratificou-o, com dois votos contra - um deles de Vital Moreira.

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A vitória de Cavaco Silva

A redução rápida do défice não passou incólume. "As contrapartidas dos resultados (...) foram a queda do nível da actividade económica, a redução sensível do emprego e do rendimento real disponível e a aceleração da inflação", conclui o Banco de Portugal. E pior: "A necessidade de reduzir drasticamente o défice da BTC levou a que a economia portuguesa não pudesse acompanhar a recuperação iniciada pelas economias dos seus principais parceiros."

Mas a crise teve mais consequências. O PS meteu o marxismo na gaveta (congresso de Outubro), para protesto de Manuel Alegre. Soares preparava o seu caminho para Belém. E no PSD, após a forte contestação interna, Mota Pinto demitiu-se em Fevereiro de 1985. Cavaco Silva ganhou o congresso da Figueira da Foz em Abril, rompeu o "bloco central" e ganhou as eleições de Outubro.

Actores parecidos. Um mesmo discurso da inevitabilidade, sem falar das causas. Uma mesma terapia de cura. E um futuro por apurar

De repente, surgem os rostos crispados, os olhos mal dormidos, os acordos de emergência em nome de "um esforço nacional". Pela segunda vez em cinco anos, o primeiro-ministro desceu da sala do Conselho de Ministros para uma "conferência de imprensa" só autorizada às televisões, para anunciar um pacote de "medidas indispensáveis e imprescindíveis", o início de um estado de calamidade económica.

Este toque a rebate não é novo em Portugal. Ouvir José Sócrates, tolhido, falar da necessidade de "reforçar a nossa credibilidade junto dos mercados internacionais", ressoa como um eco das declarações de 1983 quando o primeiro-ministro de então, Mário Soares, defendeu o acordo draconiano com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que levou Portugal à recessão.

"Estávamos na ameaça de uma ruptura financeira, de bancarrota", alegou. "Em consequência desta crise financeira, estávamos perante a ameaça de paralisação da vida económica, com tudo o que isso representa de sacrifícios, esses sim, inenarráveis para a população, se tal ruptura viesse a acontecer (...). O que seria grave e uma escravidão para o país era que Portugal não tivesse crédito." A solução negociada era "a única possível, a única patriótica".

O ministro das Finanças, Ernâni Lopes, repisou o argumento. "É preciso definir e cumprir prioridades. E a estabilização financeira, não sendo condição suficiente, é um passo estritamente indispensável." "Não irei aqui discutir se havia ou há alternativas", continuava. "Manifestarei, apenas, uma vez mais, a convicção de que o Governo escolheu o caminho com menores custos globais." Algo que Sócrates repetiu para as televisões: "Estas medidas foram pensadas para ter o menor efeito recessivo."

Mas as similitudes são também nas questões de fundo. Na sua base, está um desequilíbrio estrutural do tecido produtivo e das contas externas que não foi resolvido, apesar do tempo passado (ver texto). As contas orçamentais foram empurradas para políticas expansionistas. Ler os documentos de 1983 é perceber porque nos doem hoje os ossos.

Com o tempo, perdeu-se a qualidade e a elegância do debate parlamentar. Mas os actores de ontem foram guindados aos lugares cimeiros da democracia nacional. Mário Soares, Cavaco Silva, Ernâni Lopes, Vitor Constâncio, João Salgueiro, Francisco Balsemão, entre outros. O discurso é ainda o de estado de necessidade, na proporção da terapia, brutal e sempre déjà vu: um forte aperto nos rendimentos, como forma de conter os gastos.

Sempre, porém, com a promessa de que o aperto "temporário" se fará em nome de melhores dias. Seja em prol do "desenvolvimento", da "diversificação do sector industrial", como se dizia na década de 80, ou actualmente do "crescimento económico", da "recuperação da economia".

FMI com terapia pesada

O pano de fundo da crise é um contexto adverso. A subida dos preços do petróleo em 1973, somado à explosão social pós-25 de Abril, levou Portugal ao primeiro acordo com o FMI , em 1978. Mas tudo se complicou com o segundo "choque petrolífero" de 1979, que forçou as economias da OCDE a contraírem-se. Em contraciclo, as políticas seguidas em 1980 pelo Governo, era Cavaco Silva ministro das Finanças, foram, no entender do ex-governador do Banco de Portugal Silva Lopes, "claramente expansionistas", com o fito de "promover a vitória eleitoral do PSD/CDS (Aliança Democrática)", então no poder.

A AD ganhou as eleições, mas com consequências. O défice das transacções correntes subiu de 5 por cento do PIB em 1980 para 11,5 por cento em 1981 e 13,2 por cento em 1982. Para pagá-los, a dívida externa subiu de 467 milhões de contos em 1980 para 723 milhões em 1981 e para 1199 milhões em 1982. Os mercados financeiros estavam à beira de fechar a torneira.

Estas dificuldades rebentaram com o governo AD e surgiu o bloco central (PS/PSD), de Mário Soares e Mota Pinto. O Governo optou por recorrer ao FMI, não sem suscitar críticas. "Evidentemente que havia alternativas", defendia João Salgueiro, uma das figuras fortes do PSD. "Nós temos reservas substanciais que podíamos mobilizar, só que em termos de conveniência, é muito mais custoso mobilizar recursos do que fazer um acordo com o FMI."

As negociações iniciaram-se a 18 de Julho de 1983. A delegação do FMI era chefiada pela italiana Teresa Ter-Minassian, conhecida pela sua elegância e simpatia, mas pela dureza a negociar. A carta de intenções foi assinada a 9 de Agosto e o Fundo desbloqueou os apoios necessários - 300 milhões de dólares para financiamento da dívida e 100 milhões para quebras de exportações. Mas a terapia foi pesada. Redução do défice de transacções correntes de 9,3 por cento em 1983 para 6 por cento em 1984. O défice orçamental deveria passar de 11,7 por cento em 1982 para menos de 10 por cento em 1983 e 7,3 por cento em 1984. Para reduzir as importações, era preciso cortar nas despesas dos portugueses e do Estado. Foi decidido, como descreve o relatório do Banco de Portugal de 1983, um "forte aumento da tributação directa e indirecta, a redução de despesas do sector público administrativo e o congelamento de parte das despesas de investimento" das empresas públicas. Despediu-se pessoal.

O mais simbólico entre eles foi o imposto extraordinário sobre rendimentos prediais, capitais e profissionais - um corte de 28 por cento no subsídio de Natal. O Tribunal Constitucional ratificou-o, com dois votos contra - um deles de Vital Moreira.

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A vitória de Cavaco Silva

A redução rápida do défice não passou incólume. "As contrapartidas dos resultados (...) foram a queda do nível da actividade económica, a redução sensível do emprego e do rendimento real disponível e a aceleração da inflação", conclui o Banco de Portugal. E pior: "A necessidade de reduzir drasticamente o défice da BTC levou a que a economia portuguesa não pudesse acompanhar a recuperação iniciada pelas economias dos seus principais parceiros."

Mas a crise teve mais consequências. O PS meteu o marxismo na gaveta (congresso de Outubro), para protesto de Manuel Alegre. Soares preparava o seu caminho para Belém. E no PSD, após a forte contestação interna, Mota Pinto demitiu-se em Fevereiro de 1985. Cavaco Silva ganhou o congresso da Figueira da Foz em Abril, rompeu o "bloco central" e ganhou as eleições de Outubro.

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