O mar...
De colo, já o ouvira bramir, a açoitar as rochas e a muralha da Fortaleza. E as vagas lambiam a areia, deixando, no regresso, castelinhos de espuma. As mulheres da vila sabiam-no leviano e temiam-no como a boi tresmalhado. Ao menor receio, afluíam à praia, desaustinadas, de mãos enclavinhadas, a dobar orações...
- Deus nos ampare! Ele tá mau, vizinha Alice! Hoje, rebenta grande desgraça!
Minha mãe, nascida e criada entre peixe e lágrimas, compartilhava da inquietação. E até nas casas burguesas, sem a vida dos seus a perigar na voragem das ondas, acendiam velas e lamparinas, lembrando clemência à Virgem.
Duma vez, um barco naufragara já a curta distância da vila. Impotentes, o horror estampado nos rostos, as famílias dos tripulantes gritavam pelos entes queridos - pontos aflitivos, teimosos de vida, a encimar as cristas das ondas. A rebentação quebrara-lhes os remos, o casco do barco furara-se na queda de uma vaga - e daí à submersão fora o tartamudear de uma reza. Só um milagre do Senhor podia amparar os náufragos. E não tardou um clamor de mil bocas:
- Vão buscar o santinho à igreja!
- Não demorem, ó gente! Corram! Corram à igreja!
Num assomo de fé, uma avalanche humana escancarou as portas do templo, e em breve o Senhor das Chagas desceu à praia, ali à nossa beira.
Joelhos na areia, braços erguidos ao andor, dedos cruzados nas mãos unidas, o sal das lágrimas babava as bocas, gementes:
- Tem piedade de nós, Filho de Maria! Piedade! Salva-os, plas tuas Cinco Chagas!
O céu era todo uma negridão de nuvens. Vento inclemente, irado, fustigava os cabelos, o mísero corpo do Senhor... Caiu a noite e, com ela, as nossas esperanças, mas ainda todos pediam, esperavam. Vieram archotes para a praia, de chamas sanguíneas, sinistras, quando uma vaga arremessou um cadáver à areia; depois outro, e outro, e outro...
E, nessa noite, o Senhor das Chagas ficou mais junto do meu coração: de tão humilde, tão pobrezinho, nada pudera contra a fúria do mar!
Nos dias seguintes, lá vi os homens na faina da pesca - perdoar era a palavra que o pessoal das companhas decorava desde meninos. O mar, que desobedecera ao Senhor, tisnando de luto mulheres e crianças, tinha também o privilégio de alegrar a praia com pescarias avultadas. E, quando alguém, enfurecido, lhe praguejava rancores, logo inquietava ouvidos próximos:
- Cala-te, alma do diabo! Ele pode castigar! É ele quem dá o pãozinho à gente!...
Bem cedo compreendi que estava escrito no mar o destino dos habitantes da vila! Dolorosas tardes, quando as armações aportavam vazias e um peso de fome curvava os homens e as companheiras! Corria, então, como que um jeito de desprezo pelas artes, que, agoiradas, nada tinham podido arrancar às entranhas do avarento. E o peixe miúdo, lixo das redes, petinga rejeitada por vagabundo, lá apodrecia, esquecido na areia - despojo inútil de canseiras perdidas.
Com a chegada do estio vêm também os banhistas, trajando à fresca, molengões, ciosos de banhas perdidas no sedentarismo citadino. Enchem pensões, alugam quartos e partes de casa a particulares. A vila, então, desempenha-se e repousa de martírios. E, nas águas serenas, mar chão, coalhado de maillots multicores, poucos reconhecem a besta traiçoeira, assassina - arrependida talvez das grandes faltas cometidas.
Sim, no mar está escrito o destino das raparigas da vila!...
Casar com pescador é amarrar corda ao pescoço, é viver eternamente com a borda debaixo de água. E bem poucas têm o condão de fugir a tal sina... Conseguir noivo no Comércio, nos Serviços Públicos ou nas casas de teres - é meter lança em África. Sobram os pescadores...
Romeu Correia
"Trapo Azul" (1948)
O mar...
De colo, já o ouvira bramir, a açoitar as rochas e a muralha da Fortaleza. E as vagas lambiam a areia, deixando, no regresso, castelinhos de espuma. As mulheres da vila sabiam-no leviano e temiam-no como a boi tresmalhado. Ao menor receio, afluíam à praia, desaustinadas, de mãos enclavinhadas, a dobar orações...
- Deus nos ampare! Ele tá mau, vizinha Alice! Hoje, rebenta grande desgraça!
Minha mãe, nascida e criada entre peixe e lágrimas, compartilhava da inquietação. E até nas casas burguesas, sem a vida dos seus a perigar na voragem das ondas, acendiam velas e lamparinas, lembrando clemência à Virgem.
Duma vez, um barco naufragara já a curta distância da vila. Impotentes, o horror estampado nos rostos, as famílias dos tripulantes gritavam pelos entes queridos - pontos aflitivos, teimosos de vida, a encimar as cristas das ondas. A rebentação quebrara-lhes os remos, o casco do barco furara-se na queda de uma vaga - e daí à submersão fora o tartamudear de uma reza. Só um milagre do Senhor podia amparar os náufragos. E não tardou um clamor de mil bocas:
- Vão buscar o santinho à igreja!
- Não demorem, ó gente! Corram! Corram à igreja!
Num assomo de fé, uma avalanche humana escancarou as portas do templo, e em breve o Senhor das Chagas desceu à praia, ali à nossa beira.
Joelhos na areia, braços erguidos ao andor, dedos cruzados nas mãos unidas, o sal das lágrimas babava as bocas, gementes:
- Tem piedade de nós, Filho de Maria! Piedade! Salva-os, plas tuas Cinco Chagas!
O céu era todo uma negridão de nuvens. Vento inclemente, irado, fustigava os cabelos, o mísero corpo do Senhor... Caiu a noite e, com ela, as nossas esperanças, mas ainda todos pediam, esperavam. Vieram archotes para a praia, de chamas sanguíneas, sinistras, quando uma vaga arremessou um cadáver à areia; depois outro, e outro, e outro...
E, nessa noite, o Senhor das Chagas ficou mais junto do meu coração: de tão humilde, tão pobrezinho, nada pudera contra a fúria do mar!
Nos dias seguintes, lá vi os homens na faina da pesca - perdoar era a palavra que o pessoal das companhas decorava desde meninos. O mar, que desobedecera ao Senhor, tisnando de luto mulheres e crianças, tinha também o privilégio de alegrar a praia com pescarias avultadas. E, quando alguém, enfurecido, lhe praguejava rancores, logo inquietava ouvidos próximos:
- Cala-te, alma do diabo! Ele pode castigar! É ele quem dá o pãozinho à gente!...
Bem cedo compreendi que estava escrito no mar o destino dos habitantes da vila! Dolorosas tardes, quando as armações aportavam vazias e um peso de fome curvava os homens e as companheiras! Corria, então, como que um jeito de desprezo pelas artes, que, agoiradas, nada tinham podido arrancar às entranhas do avarento. E o peixe miúdo, lixo das redes, petinga rejeitada por vagabundo, lá apodrecia, esquecido na areia - despojo inútil de canseiras perdidas.
Com a chegada do estio vêm também os banhistas, trajando à fresca, molengões, ciosos de banhas perdidas no sedentarismo citadino. Enchem pensões, alugam quartos e partes de casa a particulares. A vila, então, desempenha-se e repousa de martírios. E, nas águas serenas, mar chão, coalhado de maillots multicores, poucos reconhecem a besta traiçoeira, assassina - arrependida talvez das grandes faltas cometidas.
Sim, no mar está escrito o destino das raparigas da vila!...
Casar com pescador é amarrar corda ao pescoço, é viver eternamente com a borda debaixo de água. E bem poucas têm o condão de fugir a tal sina... Conseguir noivo no Comércio, nos Serviços Públicos ou nas casas de teres - é meter lança em África. Sobram os pescadores...
Romeu Correia
"Trapo Azul" (1948)