As memórias. Nem sempre sabemos que fazer com elas. Há vinte anos comecei mais uma vez a escrever um diário. Todos os dias. Quase todos os dias. Não eram bem memórias, era o que me acontecia dia após dia. Hoje são já memórias. Agora tenho pena de não me ter dedicado mais a descrever-me mais cedo. Abro um caderno, procuro Novembro. Encontro:Sexta, 10 de Novembro [1989]Este dia ficará marcado na história do mundo. O muro de Berlim, edificado em 61, foi hoje transposto por milhares de alemães de leste. Fronteira aberta, livre circulação. A curiosidade estampada nos rostos. O que está para lá do arame farpado. Pisar o ocidente. Estar com a outra metade da família, gozar a noite. Estaline morreu, Lenine passa agruras e Marx deve estar abaladíssimo. 1989 é, com toda a certeza, o ano do descalabro do império comunista. Toda uma utopia que se dissolve em – estranha ironia – liberdade. Por todo o leste se sente a mudança ou talvez ainda só a vontade absoluta de mudar. Ainda há dias, salvo erro na Terça [7 de Novembro] o contraste era notório. Antes quando desfilavam na Praça Vermelha, toda a URSS estancava imóvel e em sentido, compenetrada naquele teatrinho de soldados de chumbo. Agora, enquanto desfilavam botas e mais botas, carros blindados e mísseis pontiagudos na Praça Vermelha, ali bem perto sucedia o antes impensável, o inadmissível nunca permitido ou mostrado. Uma outra manifestação, não em uníssono com esta, mas antes dissonantes, não por mais um aniversário da revolução bolchevique, mas contra a carestia de vida [são imagens de homens e mulheres de roupas grossas envoltos em bafos gélidos e sempre de carrinho na mão, sempre de sacos grandes e carrinhos nas mãos. Ninguém sai de casa sem levar um saco, um saco grande de nylon, um carro de rodas. Nunca se sabe o que se poderá encontrar. É necessário andar sempre prevenido. Falta tudo.]Hoje a União Soviética está na moda. Tudo vermelho, revistas, noticiários, roupa. A Perestroika é mudança e não só a leste. A ocidente o comunismo olha-se de frente. De homem para homem, olhos nos olhos [acertemos contas então]. A primavera de Praga foi chinesa em Tienamen e por todo lado a mudança. É o abolir das restrições, juntamente com os muros.Enviei por fax para a China um falso “Diário do Povo”. Um exemplar em chinês que foi distribuído com o Independente. É a opinião pública mundial, alguns depoimentos e muitas notícias censuradas, a que os chineses não estão a ter acesso. Sob a forma do jornal diário e regular do aparelho comunista chinês [para enganar à primeira vista quem nele reparasse] ia toda a informação negada pela censura chinesa nestes dias. Arrepiei-me das três vezes que o fax me comunicou o Ok da transmissão. Apenas parei com receio da conta no fim do mês. Apercebo-me de como o mundo é uma aldeia e de como este simples gesto de enviar um fax, como este gesto poderá fazer diferença algures na China.Levanta-se o problema da unificação da Alemanha e da geo-estratégia. A Alemanha reconstrói o sonho de Bismark com Gorby por Messias. Na Bulgária demite-se o coiro impronunciável que por lá andava há 35 (!) anos.E continuava a escrever nesse 10 de Novembro de 1989, agora virado para o meu umbigo, para projectos, à data de hoje, não realizados.Ideias para BD:A) Autocarro cheio. Fim de tarde de Inverno. Hora de ponta. Gente enfastiada. Uma senhora de cabelinho branco a entornar para o rosa, com ar de avozinha Donalda, abre passagem para a saída, para a porta da retaguarda em «se faz favores» sussurrados. Um trolha de bigode e barba de dois dias, a cheirar a cimento e a sabão macaco, afasta-se para a senhora passar enquanto deixa sair por entre o palito um condescendente:- Vá lá tiazinha, passe lá!A velhota passou mas ainda a ouvimos distintamente, embora no mesmo tom de sussurro:- A puta da tua mãe!B) Hospital de Sta. Maria. Elevador de macas, elevador de carga. Entram dois estudantes de medicina. Um médico perfumado de batinha branca engomada e estetoscópio reluzente. Duas enfermeiras entradotas e aos cochichos. Uma mãe com uma criança pela mão. Por fim uma maca com um moribundo ligado ao soro, que a enfermeira segura como se fosse um balão de Sto. António. O elevador começa a subir, lento. Sobe, sobe mas de repente pára! Mesmo entre dois pisos. Fez-se silêncio. Uns momentos passam e ainda mais silêncio. Nada a não ser o calor que se instala e o silêncio, um silêncio denso como o que acontece logo após uma tragédia. Espera-se o novo impulso do elevador. Olha-se para o tecto, para as paredes, para os avisos. Um suspiro anónimo. E a criancinha que levanta então a cabeça e diz, rompendo convicta mas suavemente aquele silêncio:- A minha mãe bate no meu pai!* Pormenor do n.º 262 da revista Photo, Julho de 1989 e;Ossip Brik em montagem fotográfica por Alexander Rodchenko para a capa da revista de arte avant-garde ЛЕФ, Levyi Front Iskusstv - Frente Esquerda das Artes, 1924
As memórias. Nem sempre sabemos que fazer com elas. Há vinte anos comecei mais uma vez a escrever um diário. Todos os dias. Quase todos os dias. Não eram bem memórias, era o que me acontecia dia após dia. Hoje são já memórias. Agora tenho pena de não me ter dedicado mais a descrever-me mais cedo. Abro um caderno, procuro Novembro. Encontro:Sexta, 10 de Novembro [1989]Este dia ficará marcado na história do mundo. O muro de Berlim, edificado em 61, foi hoje transposto por milhares de alemães de leste. Fronteira aberta, livre circulação. A curiosidade estampada nos rostos. O que está para lá do arame farpado. Pisar o ocidente. Estar com a outra metade da família, gozar a noite. Estaline morreu, Lenine passa agruras e Marx deve estar abaladíssimo. 1989 é, com toda a certeza, o ano do descalabro do império comunista. Toda uma utopia que se dissolve em – estranha ironia – liberdade. Por todo o leste se sente a mudança ou talvez ainda só a vontade absoluta de mudar. Ainda há dias, salvo erro na Terça [7 de Novembro] o contraste era notório. Antes quando desfilavam na Praça Vermelha, toda a URSS estancava imóvel e em sentido, compenetrada naquele teatrinho de soldados de chumbo. Agora, enquanto desfilavam botas e mais botas, carros blindados e mísseis pontiagudos na Praça Vermelha, ali bem perto sucedia o antes impensável, o inadmissível nunca permitido ou mostrado. Uma outra manifestação, não em uníssono com esta, mas antes dissonantes, não por mais um aniversário da revolução bolchevique, mas contra a carestia de vida [são imagens de homens e mulheres de roupas grossas envoltos em bafos gélidos e sempre de carrinho na mão, sempre de sacos grandes e carrinhos nas mãos. Ninguém sai de casa sem levar um saco, um saco grande de nylon, um carro de rodas. Nunca se sabe o que se poderá encontrar. É necessário andar sempre prevenido. Falta tudo.]Hoje a União Soviética está na moda. Tudo vermelho, revistas, noticiários, roupa. A Perestroika é mudança e não só a leste. A ocidente o comunismo olha-se de frente. De homem para homem, olhos nos olhos [acertemos contas então]. A primavera de Praga foi chinesa em Tienamen e por todo lado a mudança. É o abolir das restrições, juntamente com os muros.Enviei por fax para a China um falso “Diário do Povo”. Um exemplar em chinês que foi distribuído com o Independente. É a opinião pública mundial, alguns depoimentos e muitas notícias censuradas, a que os chineses não estão a ter acesso. Sob a forma do jornal diário e regular do aparelho comunista chinês [para enganar à primeira vista quem nele reparasse] ia toda a informação negada pela censura chinesa nestes dias. Arrepiei-me das três vezes que o fax me comunicou o Ok da transmissão. Apenas parei com receio da conta no fim do mês. Apercebo-me de como o mundo é uma aldeia e de como este simples gesto de enviar um fax, como este gesto poderá fazer diferença algures na China.Levanta-se o problema da unificação da Alemanha e da geo-estratégia. A Alemanha reconstrói o sonho de Bismark com Gorby por Messias. Na Bulgária demite-se o coiro impronunciável que por lá andava há 35 (!) anos.E continuava a escrever nesse 10 de Novembro de 1989, agora virado para o meu umbigo, para projectos, à data de hoje, não realizados.Ideias para BD:A) Autocarro cheio. Fim de tarde de Inverno. Hora de ponta. Gente enfastiada. Uma senhora de cabelinho branco a entornar para o rosa, com ar de avozinha Donalda, abre passagem para a saída, para a porta da retaguarda em «se faz favores» sussurrados. Um trolha de bigode e barba de dois dias, a cheirar a cimento e a sabão macaco, afasta-se para a senhora passar enquanto deixa sair por entre o palito um condescendente:- Vá lá tiazinha, passe lá!A velhota passou mas ainda a ouvimos distintamente, embora no mesmo tom de sussurro:- A puta da tua mãe!B) Hospital de Sta. Maria. Elevador de macas, elevador de carga. Entram dois estudantes de medicina. Um médico perfumado de batinha branca engomada e estetoscópio reluzente. Duas enfermeiras entradotas e aos cochichos. Uma mãe com uma criança pela mão. Por fim uma maca com um moribundo ligado ao soro, que a enfermeira segura como se fosse um balão de Sto. António. O elevador começa a subir, lento. Sobe, sobe mas de repente pára! Mesmo entre dois pisos. Fez-se silêncio. Uns momentos passam e ainda mais silêncio. Nada a não ser o calor que se instala e o silêncio, um silêncio denso como o que acontece logo após uma tragédia. Espera-se o novo impulso do elevador. Olha-se para o tecto, para as paredes, para os avisos. Um suspiro anónimo. E a criancinha que levanta então a cabeça e diz, rompendo convicta mas suavemente aquele silêncio:- A minha mãe bate no meu pai!* Pormenor do n.º 262 da revista Photo, Julho de 1989 e;Ossip Brik em montagem fotográfica por Alexander Rodchenko para a capa da revista de arte avant-garde ЛЕФ, Levyi Front Iskusstv - Frente Esquerda das Artes, 1924