De Rerum Natura: Ciência e banha da cobra

19-12-2009
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No livro Pensar Outra Vez afirmei, meio a brincar, que a palavra "ciência" devia ser banida do vocabulário por causa da confusão conceptual que provoca. A ideia é que a palavra está infelizmente demasiado associada a uma concepção positivista e errada da ciência, que desnorteia o pensamento.A ideia é que tanto faz se estamos a fazer ciência, história, arqueologia ou filosofia ou matemática — o que faz a diferença é a abertura à discussão pública. Mill viu isso com uma clareza assombrosa, mas infelizmente o positivismo de Comte foi muito mais influente, tal como os neo-positivistas. A ideia de todos os positivismos é que podemos eliminar o factor humano, podemos inventar métodos automáticos de produção de Ciência (com maiúscula, claro): de um lado entram os dados (experiência), acrescentam-se uns pós de raciocínio lógico e matemático, e do outro lado sai a Ciência, objectiva e indisputável, a Verdade verdadinha mais verdadeira que há, sem que nos tenhamos de dar ao trabalho de discutir, duvidar, errar.Acontece que isto é uma fantasia. Fazer ciência é como fazer qualquer outra coisa intelectualmente séria: temos de avaliar as coisas cuidadosamente, tenhamos ou não metodologias pré-determinadas, navegando muitas vezes à vista e sem bússola. Porque queremos descobrir verdades, procuramos também descobrir metodologias apropriadas ao que estamos a estudar. Mas para nenhum estudo é a leitura de livros sagrados e o respeito reverente pela autoridade um bom método, e para todos os estudos a base de qualquer método sério é a análise crítica das provas e da argumentação.Nada há de especial na ciência que a diferencie da filosofia ou da matemática ou até da teologia. Todas estas actividades ou se fazem com pés e cabeça — abrindo-se à crítica, à correcção de erros, apoiando-se em provas e na argumentação — ou são fantasias semelhantes à bruxaria. É tão simples como isto. Tanto faz se estamos a discutir a existência de Deus, do calórico ou dos quarks, da Arca de Noé ou do Pai Natal, tanto faz se estamos a tentar descobrir a cura da tuberculose ou a natureza do tempo ou os benefícios do reiki. Em todos estes casos ou se trabalha seriamente — e fazer isso é fazê-lo com abertura crítica, como Mill tão claramente percebeu — ou é uma farsa.Popper, não sendo positivista lógico, acabou por contribuir para mentalidade positivista actual por causa do seu simples e provavelmente errado critério de falsificabilidade. Entre outras coisas, Popper usa a falsificabilidade para distinguir a ciência de pseudociências como a psicanálise ou o marxismo (os exemplos são de Popper). Só que tem o defeito terrível de dar às pessoas a sensação de que uma coisa pode não ser ciência, por não ser falsificável, mas ser respeitável enquanto actividade intelectual. Mas mesmo que Popper tenha razão — e eu penso que não tinha porque em muitos casos a ciência não é falsificável — o que não é ciência não é coisa alguma de intelectualmente respeitável: é lixo intelectual. O grão de verdade no critério de falsificabilidade é apenas a abertura à crítica e a procura activa de alternativas credíveis. Mas se uma dada actividade intelectual não faz isto, não se pode dizer que é respeitável, apesar de não ser ciência; não é nem ciência nem qualquer outra coisa séria, é uma mera fantasia. É como o leite; se estiver estragado, está estragado, ponto final — não é queijo nem manteiga, nem água-pé. É apenas leite estragado.


No livro Pensar Outra Vez afirmei, meio a brincar, que a palavra "ciência" devia ser banida do vocabulário por causa da confusão conceptual que provoca. A ideia é que a palavra está infelizmente demasiado associada a uma concepção positivista e errada da ciência, que desnorteia o pensamento.A ideia é que tanto faz se estamos a fazer ciência, história, arqueologia ou filosofia ou matemática — o que faz a diferença é a abertura à discussão pública. Mill viu isso com uma clareza assombrosa, mas infelizmente o positivismo de Comte foi muito mais influente, tal como os neo-positivistas. A ideia de todos os positivismos é que podemos eliminar o factor humano, podemos inventar métodos automáticos de produção de Ciência (com maiúscula, claro): de um lado entram os dados (experiência), acrescentam-se uns pós de raciocínio lógico e matemático, e do outro lado sai a Ciência, objectiva e indisputável, a Verdade verdadinha mais verdadeira que há, sem que nos tenhamos de dar ao trabalho de discutir, duvidar, errar.Acontece que isto é uma fantasia. Fazer ciência é como fazer qualquer outra coisa intelectualmente séria: temos de avaliar as coisas cuidadosamente, tenhamos ou não metodologias pré-determinadas, navegando muitas vezes à vista e sem bússola. Porque queremos descobrir verdades, procuramos também descobrir metodologias apropriadas ao que estamos a estudar. Mas para nenhum estudo é a leitura de livros sagrados e o respeito reverente pela autoridade um bom método, e para todos os estudos a base de qualquer método sério é a análise crítica das provas e da argumentação.Nada há de especial na ciência que a diferencie da filosofia ou da matemática ou até da teologia. Todas estas actividades ou se fazem com pés e cabeça — abrindo-se à crítica, à correcção de erros, apoiando-se em provas e na argumentação — ou são fantasias semelhantes à bruxaria. É tão simples como isto. Tanto faz se estamos a discutir a existência de Deus, do calórico ou dos quarks, da Arca de Noé ou do Pai Natal, tanto faz se estamos a tentar descobrir a cura da tuberculose ou a natureza do tempo ou os benefícios do reiki. Em todos estes casos ou se trabalha seriamente — e fazer isso é fazê-lo com abertura crítica, como Mill tão claramente percebeu — ou é uma farsa.Popper, não sendo positivista lógico, acabou por contribuir para mentalidade positivista actual por causa do seu simples e provavelmente errado critério de falsificabilidade. Entre outras coisas, Popper usa a falsificabilidade para distinguir a ciência de pseudociências como a psicanálise ou o marxismo (os exemplos são de Popper). Só que tem o defeito terrível de dar às pessoas a sensação de que uma coisa pode não ser ciência, por não ser falsificável, mas ser respeitável enquanto actividade intelectual. Mas mesmo que Popper tenha razão — e eu penso que não tinha porque em muitos casos a ciência não é falsificável — o que não é ciência não é coisa alguma de intelectualmente respeitável: é lixo intelectual. O grão de verdade no critério de falsificabilidade é apenas a abertura à crítica e a procura activa de alternativas credíveis. Mas se uma dada actividade intelectual não faz isto, não se pode dizer que é respeitável, apesar de não ser ciência; não é nem ciência nem qualquer outra coisa séria, é uma mera fantasia. É como o leite; se estiver estragado, está estragado, ponto final — não é queijo nem manteiga, nem água-pé. É apenas leite estragado.

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