O Cachimbo de Magritte: Entre Whitman e Tolstoi

29-05-2010
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Já depois de ter escrito o post em que ergo o pendão do Ocidente contra czares e mandarins, li o artigo de Eduardo Lourenço no Público de hoje. Admiro-o por ser o último intelectual português que tem a coragem de pensar dento dos limites de ideias suspeitas como nação, civilização, literatura e outras coisas desacreditadas pelo pós-modernismo (isto é um elogio). Derradeiro representante do progressismo iluminista de corte francês, que tão profundamente influenciou as nossas elites nos séculos XIX e XX, o autor do Labirinto da Saudade fustiga todos os que querem obrigar a Europa a tomar partido contra a Rússia na crise do Cáucaso. Porquê? Porque estariam a ressuscitar os "clichés mais estafados da antiga guerra fria, com Moscovo no papel óbvio de mau da fita", assim prestando vassalagem à América que, "na sua expressão superimperialista", se tornou "a única superpotência do Ocidente" e está ao despique com a Rússia "via Geórgia". Há, pois, um mau da fita, mas não é óbvio. Perante isto, a "velha Europa, mãe de todas as utopias universalistas e, hoje, entre parênteses de si mesma", não teria nada que se meter. Sob pena de "subalternização política, ideológica e até cultural, digna do Império Romano", aos Estados Unidos, que fizeram o que se sabe no Afeganistão e no Iraque. Foi o insuspeito Aron quem chamou à América a república imperial, mas eu não insistiria na comparação. Primeiro, porque a última vez que alguém invocou uma utopia universalista, no caso a democratização do mundo islâmico, acabou a fazer o que se sabe no Afeganistão e no Iraque. E depois porque que não se vivia mal dentro do Império, como os Bárbaros adivinharam. De resto, ao chamar à Geórgia "antigo e até simbólico espaço moscovita" e à Ossétia e à Abkhazia "antigos pedaços do seu ex-império", Eduardo Lourenço mostra os limites do paralelismo. Tem razão: há gente que ainda está na "antiga guerra fria". Do Atlântico aos Urais.Por isso declara com candura que "não temos que escolher entre os Estados Unidos e a Rússia, entre Whitman e Tolstoi". Acontece que temos - se quisermos ser fiéis à mais modesta utopia universalista. Não escolher significa colocar no mesmo plano moral uma democracia com erros e uma falsa democracia. Há 60 anos que Orwell criticou asperamente a ingenuidade perversa dos esquerdistas e compagnons de route que não se incomodavam com a vitória do nazismo sobre as democracias burguesas porque, para eles, era tudo igual. A perversidade, menos ingénua, repetiu-se na "antiga guerra fria", quando os comunistas ocidentais fizeram activamente o que podiam para derrotar o capitalismo. E continua a ser usado pelos órfãos da União Soviética que sobrevivem. Nem sequer é preciso "evocar o espectro de Munique", antecipadamente sacudido do capote por Lourenço. Basta lembrar os esforços do PCP para nos afastar da querida Europa após o 25 de Abril.Acontece também que escolher entre os Estados Unidos e a Rússia não significa escolher entre Whitman e Tolstoi. O dilema não passa de retórica. Como critério de acção política, tem tanto valor como o sketch dos Monty Pithon em que uma equipa de filósofos alemães joga futebol contra outra de filósofos gregos. Servir-se dele como argumento é aplaudir Munique (lá estou eu...) porque os europeus de 1939 não tinham que escolher entre Thomas Mann e Thomas More. Se bem me lembro, houve um certo Primeiro Ministro português que confundiu os dois, para grande indignação dos cultores locais das "utopias universalistas". Nem quero pensar no que terá dito então Eduardo Lourenço.


Já depois de ter escrito o post em que ergo o pendão do Ocidente contra czares e mandarins, li o artigo de Eduardo Lourenço no Público de hoje. Admiro-o por ser o último intelectual português que tem a coragem de pensar dento dos limites de ideias suspeitas como nação, civilização, literatura e outras coisas desacreditadas pelo pós-modernismo (isto é um elogio). Derradeiro representante do progressismo iluminista de corte francês, que tão profundamente influenciou as nossas elites nos séculos XIX e XX, o autor do Labirinto da Saudade fustiga todos os que querem obrigar a Europa a tomar partido contra a Rússia na crise do Cáucaso. Porquê? Porque estariam a ressuscitar os "clichés mais estafados da antiga guerra fria, com Moscovo no papel óbvio de mau da fita", assim prestando vassalagem à América que, "na sua expressão superimperialista", se tornou "a única superpotência do Ocidente" e está ao despique com a Rússia "via Geórgia". Há, pois, um mau da fita, mas não é óbvio. Perante isto, a "velha Europa, mãe de todas as utopias universalistas e, hoje, entre parênteses de si mesma", não teria nada que se meter. Sob pena de "subalternização política, ideológica e até cultural, digna do Império Romano", aos Estados Unidos, que fizeram o que se sabe no Afeganistão e no Iraque. Foi o insuspeito Aron quem chamou à América a república imperial, mas eu não insistiria na comparação. Primeiro, porque a última vez que alguém invocou uma utopia universalista, no caso a democratização do mundo islâmico, acabou a fazer o que se sabe no Afeganistão e no Iraque. E depois porque que não se vivia mal dentro do Império, como os Bárbaros adivinharam. De resto, ao chamar à Geórgia "antigo e até simbólico espaço moscovita" e à Ossétia e à Abkhazia "antigos pedaços do seu ex-império", Eduardo Lourenço mostra os limites do paralelismo. Tem razão: há gente que ainda está na "antiga guerra fria". Do Atlântico aos Urais.Por isso declara com candura que "não temos que escolher entre os Estados Unidos e a Rússia, entre Whitman e Tolstoi". Acontece que temos - se quisermos ser fiéis à mais modesta utopia universalista. Não escolher significa colocar no mesmo plano moral uma democracia com erros e uma falsa democracia. Há 60 anos que Orwell criticou asperamente a ingenuidade perversa dos esquerdistas e compagnons de route que não se incomodavam com a vitória do nazismo sobre as democracias burguesas porque, para eles, era tudo igual. A perversidade, menos ingénua, repetiu-se na "antiga guerra fria", quando os comunistas ocidentais fizeram activamente o que podiam para derrotar o capitalismo. E continua a ser usado pelos órfãos da União Soviética que sobrevivem. Nem sequer é preciso "evocar o espectro de Munique", antecipadamente sacudido do capote por Lourenço. Basta lembrar os esforços do PCP para nos afastar da querida Europa após o 25 de Abril.Acontece também que escolher entre os Estados Unidos e a Rússia não significa escolher entre Whitman e Tolstoi. O dilema não passa de retórica. Como critério de acção política, tem tanto valor como o sketch dos Monty Pithon em que uma equipa de filósofos alemães joga futebol contra outra de filósofos gregos. Servir-se dele como argumento é aplaudir Munique (lá estou eu...) porque os europeus de 1939 não tinham que escolher entre Thomas Mann e Thomas More. Se bem me lembro, houve um certo Primeiro Ministro português que confundiu os dois, para grande indignação dos cultores locais das "utopias universalistas". Nem quero pensar no que terá dito então Eduardo Lourenço.

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