Cravo de Abril: Porque é que uns usavam sapatos e outros não?

31-05-2010
marcar artigo


"Ninguém ensinava gramática como Lencastre. Não só as regras, mas a língua, a portuguesa língua, como ele dizia, usando, como mais tarde vim a saber, a expressão do poeta António Ferreira. Os verbos, o peso próprio de cada substantivo, o doseamento dos adjectivos, poucos mas bons, ensinava ele, as vírgulas, a virgulazinha que regula o trânsito, dizia Lencastre, fumando o giz ou escrevendo no quadro com a prisca. Cabelo quase ruivo, encrespado, andava com passos muito rápidos, os pés um pouco para fora. Tinha com a língua portuguesa uma relação, por assim dizer, carnal. Ou religiosa. Ou ambas. Sentia que a missão da sua vida era defender a língua, ensinar a falá-la com as sílabas todas, obrigar a escrevê-la sem erros, o predicado a concordar com o sujeito. Ai de quem, na leitura, comesse a última sílaba, ou de quem, na cópia, borrasse a escrita. Lencastre podia ficar completamente alterado por causa de uma sílaba engolida, uma vírgula mal posta, um erro de ortografia, um verbo mal conjugado. Agarrava no desgraçado pelos pés e obrigava-o a conjugar o verbo, assim, de cabeça para baixo.(...)No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impigens e sentia uma repugnância misturada com revolta.Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não? Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o Professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?"Manuel Alegre - AlmaBonito, não?


"Ninguém ensinava gramática como Lencastre. Não só as regras, mas a língua, a portuguesa língua, como ele dizia, usando, como mais tarde vim a saber, a expressão do poeta António Ferreira. Os verbos, o peso próprio de cada substantivo, o doseamento dos adjectivos, poucos mas bons, ensinava ele, as vírgulas, a virgulazinha que regula o trânsito, dizia Lencastre, fumando o giz ou escrevendo no quadro com a prisca. Cabelo quase ruivo, encrespado, andava com passos muito rápidos, os pés um pouco para fora. Tinha com a língua portuguesa uma relação, por assim dizer, carnal. Ou religiosa. Ou ambas. Sentia que a missão da sua vida era defender a língua, ensinar a falá-la com as sílabas todas, obrigar a escrevê-la sem erros, o predicado a concordar com o sujeito. Ai de quem, na leitura, comesse a última sílaba, ou de quem, na cópia, borrasse a escrita. Lencastre podia ficar completamente alterado por causa de uma sílaba engolida, uma vírgula mal posta, um erro de ortografia, um verbo mal conjugado. Agarrava no desgraçado pelos pés e obrigava-o a conjugar o verbo, assim, de cabeça para baixo.(...)No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impigens e sentia uma repugnância misturada com revolta.Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não? Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o Professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?"Manuel Alegre - AlmaBonito, não?

marcar artigo