Cravo de Abril: SÓCRATES E O RAPOSÃO

29-05-2010
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«O DESCARADO HEROÍSMO DE AFIRMAR»O discurso de José Sócrates no «Fórum Novas Fronteiras» - que constitui o mais desbragado panegírico até hoje dedicado à governação do próprio Sócrates - trouxe-me à memória Eça de Queirós. Melhor dizendo: os personagens criados por Eça há mais de um século e tão presentes na nossa vida actual.Com efeito, nos jornais, nas rádios, nas televisões (e, já agora, em muitos blogs...), deparamos todos os dias com o Abranhos, o Acácio, o Pacheco, o Palma Cavalão, o Alencar - e tantos outros.Da mesma forma, cenas e ocorrências dos romances de Eça - vividas no Século XIX - repetem-se, vivinhas da costa, neste início do século XXI.O referido discurso de Sócrates fez-me lembrar a fabulosa cena final de «A Relíquia»: o Raposão, acabado de chegar de uma visita à Terra Santa - visita paga pela «titi», beata e rica - mostra as relíquias sagradas que trouxe: medalhinhas, bentinhos, lascas, pedrinhas, palhas, frasquinhos de água do Jordão...Para a «titi», está reservada a relíquia das relíquias: nem mais nem menos do que... «a coroa de espinhos»! - a verdadeira, a legítima...É a própria «titi» quem «desembrulha o pacotinho» sagrado...Como é sabido, por trágico lapso do Raposão, onde deveria estar a «coroa de espinhos», estava a «camisa de noite» da prostituta com quem ele, em oração a dois, havia passado parte grande da visita - com a agravante de, pregado com um alfinete na pecaminosa peça de roupa, vir um cartão dirigido ao Raposão, «meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozámos!»O Raposão foi expulso, miseravelmente escorraçado, de casa da «titi» - e, o pior de tudo, deserdado.Mais tarde, recriminava-se ele por, naquele momento decisivo, «no oratório da titi me ter faltado a coragem de afirmar! Sim!, quando em vez duma coroa de martírio, aparecera, sobre o altar da titi, uma camisa de pecado - eu deveria ter gritado, com segurança: «Eis aí a Relíquia! Quis fazer a surpresa... Não é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!... Deu-ma ela no deserto!...»E o Raposão estava certo de que, se assim tivesse feito, redobrariam os favores da titi e a herança não lhe escaparia...Ora, «coragem de afirmar» - ou, como também lhe chamou Eça, o «descarado heroísmo de afirmar» - é coisa que não falta a Sócrates. Como o prova o seu discurso no «Fórum Novas Fronteiras».Será que a herança da «titi» vai, inteirinha, para este Raposão recauchutado?E se o mandássemos dar uma volta?


«O DESCARADO HEROÍSMO DE AFIRMAR»O discurso de José Sócrates no «Fórum Novas Fronteiras» - que constitui o mais desbragado panegírico até hoje dedicado à governação do próprio Sócrates - trouxe-me à memória Eça de Queirós. Melhor dizendo: os personagens criados por Eça há mais de um século e tão presentes na nossa vida actual.Com efeito, nos jornais, nas rádios, nas televisões (e, já agora, em muitos blogs...), deparamos todos os dias com o Abranhos, o Acácio, o Pacheco, o Palma Cavalão, o Alencar - e tantos outros.Da mesma forma, cenas e ocorrências dos romances de Eça - vividas no Século XIX - repetem-se, vivinhas da costa, neste início do século XXI.O referido discurso de Sócrates fez-me lembrar a fabulosa cena final de «A Relíquia»: o Raposão, acabado de chegar de uma visita à Terra Santa - visita paga pela «titi», beata e rica - mostra as relíquias sagradas que trouxe: medalhinhas, bentinhos, lascas, pedrinhas, palhas, frasquinhos de água do Jordão...Para a «titi», está reservada a relíquia das relíquias: nem mais nem menos do que... «a coroa de espinhos»! - a verdadeira, a legítima...É a própria «titi» quem «desembrulha o pacotinho» sagrado...Como é sabido, por trágico lapso do Raposão, onde deveria estar a «coroa de espinhos», estava a «camisa de noite» da prostituta com quem ele, em oração a dois, havia passado parte grande da visita - com a agravante de, pregado com um alfinete na pecaminosa peça de roupa, vir um cartão dirigido ao Raposão, «meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozámos!»O Raposão foi expulso, miseravelmente escorraçado, de casa da «titi» - e, o pior de tudo, deserdado.Mais tarde, recriminava-se ele por, naquele momento decisivo, «no oratório da titi me ter faltado a coragem de afirmar! Sim!, quando em vez duma coroa de martírio, aparecera, sobre o altar da titi, uma camisa de pecado - eu deveria ter gritado, com segurança: «Eis aí a Relíquia! Quis fazer a surpresa... Não é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!... Deu-ma ela no deserto!...»E o Raposão estava certo de que, se assim tivesse feito, redobrariam os favores da titi e a herança não lhe escaparia...Ora, «coragem de afirmar» - ou, como também lhe chamou Eça, o «descarado heroísmo de afirmar» - é coisa que não falta a Sócrates. Como o prova o seu discurso no «Fórum Novas Fronteiras».Será que a herança da «titi» vai, inteirinha, para este Raposão recauchutado?E se o mandássemos dar uma volta?

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