Cravo de Abril: NO PRIMEIRO DIA

21-01-2011
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OLHO-TE DAQUI, MIGUEL...Olho-te daqui, meu filho, vejo-te brincar com ospequenos cubos que a tua imaginação rapidamentetransformou em comboio, e interrogo-me:Que destino é o teu? Que futuro temos nós para te dar?E haverá futuro com tantos mísseis apontados aocoração?Ao interrogar-me assim, imediatamenteme censuro: Como posso eu consentir à roda dosteus três anos de idade a sombra espessa einquieta destas interrogações? Mentir? E comopoderia eu pactuar com a mentira, ocultar estainquietação, este medo de te ver crescer numlugar tão precário como é a terra? Como deixarde pensar que contigo crescem no mundo milhõesde crianças sem ternura, e que tantas outras morremsimplesmente de fome? - enquanto os homens,e quando digo homens tenho em mente os responsáveispelos nossos destinos, continuam numa desenfreadacorrida a armamentos cada vez mais dispendiosos emortíferos, a construir reactores e centrais que nãotardarão a pôr-nos o lixo nuclear à porta, comprometendoassim toda a economia do planeta, o seu equilíbrio ecoló-gico, a sobrevivência das espécies, multiplicando aangústia, o terror de uma catástrofe atómica, fazendo-seda vida a negação da própria vida, transformando-se ohomem, esse «prodígio» de que falavam os gregos,no «monstro» de que fala Pascal.E tudo isto para manter a mais bárbara, a mais vil,a mais hipócrita das sociedades - uma sociedademeramente mercantil, cujo objectivo único é o lucro,sem qualquer finalidade moral.Olho-te daqui, Miguel, vejo-te brincar com ospequenos cubos, juntando-os e empurrando-os,comboio seguindo viagem para um qualquer lugaronde se não chegue dilacerado ou amputadoda alegria de o homem se sentir nascer paraum amor novo, uma imaginação nova, distante já,e vamos dizê-lo com tremendas palavras deNietzsche, desse asilo de alienados quedurante tantos anos foi a terra.Eugénio de Andrade


OLHO-TE DAQUI, MIGUEL...Olho-te daqui, meu filho, vejo-te brincar com ospequenos cubos que a tua imaginação rapidamentetransformou em comboio, e interrogo-me:Que destino é o teu? Que futuro temos nós para te dar?E haverá futuro com tantos mísseis apontados aocoração?Ao interrogar-me assim, imediatamenteme censuro: Como posso eu consentir à roda dosteus três anos de idade a sombra espessa einquieta destas interrogações? Mentir? E comopoderia eu pactuar com a mentira, ocultar estainquietação, este medo de te ver crescer numlugar tão precário como é a terra? Como deixarde pensar que contigo crescem no mundo milhõesde crianças sem ternura, e que tantas outras morremsimplesmente de fome? - enquanto os homens,e quando digo homens tenho em mente os responsáveispelos nossos destinos, continuam numa desenfreadacorrida a armamentos cada vez mais dispendiosos emortíferos, a construir reactores e centrais que nãotardarão a pôr-nos o lixo nuclear à porta, comprometendoassim toda a economia do planeta, o seu equilíbrio ecoló-gico, a sobrevivência das espécies, multiplicando aangústia, o terror de uma catástrofe atómica, fazendo-seda vida a negação da própria vida, transformando-se ohomem, esse «prodígio» de que falavam os gregos,no «monstro» de que fala Pascal.E tudo isto para manter a mais bárbara, a mais vil,a mais hipócrita das sociedades - uma sociedademeramente mercantil, cujo objectivo único é o lucro,sem qualquer finalidade moral.Olho-te daqui, Miguel, vejo-te brincar com ospequenos cubos, juntando-os e empurrando-os,comboio seguindo viagem para um qualquer lugaronde se não chegue dilacerado ou amputadoda alegria de o homem se sentir nascer paraum amor novo, uma imaginação nova, distante já,e vamos dizê-lo com tremendas palavras deNietzsche, desse asilo de alienados quedurante tantos anos foi a terra.Eugénio de Andrade

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