Cravo de Abril: Contos do Sul

30-05-2010
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Os olhos amarelados denunciavam a nicotina avançando pelo organismo absorto nos dias da fome. Alguma memória de juventude justificando o sorriso fácil, nostálgico, contido. O porta-chaves, em forma de bolota, ganho à batota na venda do Nice das Galinhas, equilibrava as pernas franzinas em cima do desgosto profundo que lhe enchia o dia na luz bafienta do bagaço entre as gengivas da boca deserta de dentes. Sessenta anos ainda mal ganhos, de tanta dureza, e a fome gritante dos filhos na sua própria fome. Canina. Fora-lhe duro tanto remoer. Um ano ausente de ceifas, mondas ou qualquer poda que lhe pudesse ter calhado às sortes. Quanto tempo mais? Quanto tempo mais ? O casaco, comido pela bicheza e pelo suor, não convinha à brasa quarentona que estala na planície. Remendado, é certo, por algum sentido de honra que sempre sobra a quem trabalha, mas gasto. Gasto, tanto como o dia quando o sol não aguenta mais o peso do astro no horizonte anoitecido. Uma palha de trigo ceifado entre o espaço hiante do seu desassossego, e a pele queimada pelo moreno das horas mortas do seu desemprego. Como pagar o ultimo fiado na venda da ti’Ermelinda? Como calar as bocas que se levantam do fundo da miséria? Aljustrel, 30 de Julho de 2008


Os olhos amarelados denunciavam a nicotina avançando pelo organismo absorto nos dias da fome. Alguma memória de juventude justificando o sorriso fácil, nostálgico, contido. O porta-chaves, em forma de bolota, ganho à batota na venda do Nice das Galinhas, equilibrava as pernas franzinas em cima do desgosto profundo que lhe enchia o dia na luz bafienta do bagaço entre as gengivas da boca deserta de dentes. Sessenta anos ainda mal ganhos, de tanta dureza, e a fome gritante dos filhos na sua própria fome. Canina. Fora-lhe duro tanto remoer. Um ano ausente de ceifas, mondas ou qualquer poda que lhe pudesse ter calhado às sortes. Quanto tempo mais? Quanto tempo mais ? O casaco, comido pela bicheza e pelo suor, não convinha à brasa quarentona que estala na planície. Remendado, é certo, por algum sentido de honra que sempre sobra a quem trabalha, mas gasto. Gasto, tanto como o dia quando o sol não aguenta mais o peso do astro no horizonte anoitecido. Uma palha de trigo ceifado entre o espaço hiante do seu desassossego, e a pele queimada pelo moreno das horas mortas do seu desemprego. Como pagar o ultimo fiado na venda da ti’Ermelinda? Como calar as bocas que se levantam do fundo da miséria? Aljustrel, 30 de Julho de 2008

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