João, parece que é a minha vez, certo? Com algum atraso e muita pressa, nem por isso quero deixar de responder ao desafio. No fundo, lá bem no fundo, o propósito dos posts do João Galamba é mostrar que o Papa Bento XVI, em particular a sua mais recente encíclica "Caritas in Veritate", realinhou politicamente a doutrina social da Igreja para terrenos mais esquerdistas. O Papa é agora um socialista (da variante democrática) e até um Keynesiano (na versão Sócrates). Depois dos desvios liberais - neoliberais? - da encíclica que João Paulo II dedicou aos temas da doutrina social da Igreja logo após a queda do comunismo soviético, Bento XVI corrige a deriva e regressa à verdade. Talvez tenha sido a crise económica que repôs algum esclarecimento nas mentes católicas, ou talvez seja mais uma das vias misteriosas do Espírito Santo que iluminou as inteligências. Não se sabe. Presumo que a resposta dependa das convicções de cada um. Mas não há dúvida de que a tese tem sido difundida. Pelo João e por outros.Aparentemente, indícios desta reconversão não faltam. O Papa alerta para o escândalo moral e as ineficiências económicas criados pelo aumento das desigualdades; não se esquece do papel do Estado na vida económica e na redistribuição da riqueza; e recupera até a ideia de Paulo VI de que é necessário reforçar o auxílio aos países mais pobres numa referência meramente quantitativa (aumentar a percentagem do PIB dos países ricos destinada ao auxílio directo aos países pobres). Isso está no texto. Claro que a questão da desigualdade económica foi sempre tema das atenções da Igreja desde Leão XIII, que a invocação do Estado é fortemente mitigada pela invocação paralela do princípio da subsidariedade, e que Bento XVI acrescenta em termos inequívocos as responsabilidades internas dos países que eram pobres e continuam pobres. O João julga que o Papa está mais perto do socialismo na variante democrática porque "as condições de possibilidade do mercado não podem ser entendidas sem uma ontologia social alternativa ao atomismo liberal". Que a Igreja sempre rejeitou o "atomismo liberal" ninguém pode ignorar. Mas neste debate mercado/Estado/sociedade civil houve uma outra mudança, e não da parte da Igreja. Foi o socialismo democrático que corrigiu os seus antigos delírios ao aceitar o mercado como instituição económica central, embora deficiente, numa estratégia de desenvolvimento. É uma inovação dos últimos 25 anos. Convém não esquecer. A Igreja já lá estava quando o socialismo democrático ainda não tinha chegado.De resto, o que a Igreja diz sobre o mercado pode ser ofensivo para liberalismos como o de Ayn Rand, Robert Nozick, Milton Friedman, Joseph Schumpeter; mas é certamente compatível com outros liberalismos a que se tem associado o prefixo "neo". Liberalismos que nunca falaram do mercado em abstracto, desligado das "configurações culturais concretas" (cito o Papa de memória) da sociedade. E, por outro lado, o que o Papa diz da justiça social e da solidariedade não deixa grandes sorrisos triunfantes em lábios canhotos. É que a caridade separada da verdade tende para o mero sentimentalismo; os mecanismos públicos de redistribuição de riqueza, mesmo quando auxíliam efectivamente as situações de carência, quando desligados da caridade, suprem uma necessidade para logo criar outra, no domínio espiritual. Se a Igreja critica a apologia do mercado que omite o enquadramento ético e a ontologia social que o João menciona, não é menos verdade que critica o Estado-social, e as intervenções do Estado em nome de uma ideia de sociedade justa, quando impede a Igreja de desempenhar plena e livremente o seu papel de voz no espaço público, e, sobretudo, quando esquece a necessidade de uma cultura pública de vivência de valores éticos absolutamente inegociáveis. Daí as linhas dedicadas à família, e às novas propostas de casamentos, ao aborto, à eutanásia, e também (em parte) a menção ao tema da tecnologia e da bioética. Um exemplo não relacionado directamente com a questão do mercado é dado pela referência na encíclica aos problemas ambientais. O Papa é um ambientalista? Sim, mas um ambientalista integral, que não descuida, antes coloca em primeiro lugar, a ecologia humana. E voltamos uma vez mais ao aborto, à família, etc., etc.Notei, com agrado, as várias referências na encíclica à responsabilidade (sobre cujo tema já aqui escrevi, mas num contexto diferente), porque não há sociedade justa na caridade sem o envolvimento pessoal e espiritual nas tarefas de auxílio aos mais pobres e mais desfavorecidos. Esta parte da caridade na verdade incomoda o João. Mas não o incomoda ao ponto de fazer perceber que este detalhe que ele, o João, amputa ao resto, é a estrela e a bússola de todo o texto. A Igreja naturalmente saudaria uma sociedade sem sofrimento, nem desigualdades. Mas, se essa sociedade para o ser tivesse de pagar o preço da total desespiritualização, ou da aceitação plena de uma concepção materialista da vida, a Igreja, ao contrário dos socialismos, recusar-se-ia a ver a nova situação como sinal de grande progresso. Porque o que importa ao Papa é o "desenvolvimento integral do homem". Pois é: integral.Em matéria de doutrina social, já há muito que dizem que a posição da Igreja relativamente às esquerdas (democráticas) e direitas (democráticas) - de não estar entre ambas, nem com uma das duas, mas acima das duas - é demasiado cómoda e politicamente pouco interessante. Porém, como as frequentes referências de Bento XVI a S. Agostinho ajudam a perceber, a relação da Igreja com a política tem de se caracterizar por uma certa distância. O problema é que a distância não pode ser grande porque é dever da Igreja contribuir para uma sociedade que prefigure a Cidade de Deus. O equilíbrio é tramado. E a sua determinação será sempre avaliada por critérios puramente políticos. Mesmo quando isso não faz assim tanto sentido. Quando a encíclica "Centesimus Annus" foi publicada, constatei que alguns sectores liberais tentavam apropriar-se indevidamente da sua mensagem. Agora é o outro lado da opinião que investe no mesmo desígnio. Nada de novo, portanto.
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João, parece que é a minha vez, certo? Com algum atraso e muita pressa, nem por isso quero deixar de responder ao desafio. No fundo, lá bem no fundo, o propósito dos posts do João Galamba é mostrar que o Papa Bento XVI, em particular a sua mais recente encíclica "Caritas in Veritate", realinhou politicamente a doutrina social da Igreja para terrenos mais esquerdistas. O Papa é agora um socialista (da variante democrática) e até um Keynesiano (na versão Sócrates). Depois dos desvios liberais - neoliberais? - da encíclica que João Paulo II dedicou aos temas da doutrina social da Igreja logo após a queda do comunismo soviético, Bento XVI corrige a deriva e regressa à verdade. Talvez tenha sido a crise económica que repôs algum esclarecimento nas mentes católicas, ou talvez seja mais uma das vias misteriosas do Espírito Santo que iluminou as inteligências. Não se sabe. Presumo que a resposta dependa das convicções de cada um. Mas não há dúvida de que a tese tem sido difundida. Pelo João e por outros.Aparentemente, indícios desta reconversão não faltam. O Papa alerta para o escândalo moral e as ineficiências económicas criados pelo aumento das desigualdades; não se esquece do papel do Estado na vida económica e na redistribuição da riqueza; e recupera até a ideia de Paulo VI de que é necessário reforçar o auxílio aos países mais pobres numa referência meramente quantitativa (aumentar a percentagem do PIB dos países ricos destinada ao auxílio directo aos países pobres). Isso está no texto. Claro que a questão da desigualdade económica foi sempre tema das atenções da Igreja desde Leão XIII, que a invocação do Estado é fortemente mitigada pela invocação paralela do princípio da subsidariedade, e que Bento XVI acrescenta em termos inequívocos as responsabilidades internas dos países que eram pobres e continuam pobres. O João julga que o Papa está mais perto do socialismo na variante democrática porque "as condições de possibilidade do mercado não podem ser entendidas sem uma ontologia social alternativa ao atomismo liberal". Que a Igreja sempre rejeitou o "atomismo liberal" ninguém pode ignorar. Mas neste debate mercado/Estado/sociedade civil houve uma outra mudança, e não da parte da Igreja. Foi o socialismo democrático que corrigiu os seus antigos delírios ao aceitar o mercado como instituição económica central, embora deficiente, numa estratégia de desenvolvimento. É uma inovação dos últimos 25 anos. Convém não esquecer. A Igreja já lá estava quando o socialismo democrático ainda não tinha chegado.De resto, o que a Igreja diz sobre o mercado pode ser ofensivo para liberalismos como o de Ayn Rand, Robert Nozick, Milton Friedman, Joseph Schumpeter; mas é certamente compatível com outros liberalismos a que se tem associado o prefixo "neo". Liberalismos que nunca falaram do mercado em abstracto, desligado das "configurações culturais concretas" (cito o Papa de memória) da sociedade. E, por outro lado, o que o Papa diz da justiça social e da solidariedade não deixa grandes sorrisos triunfantes em lábios canhotos. É que a caridade separada da verdade tende para o mero sentimentalismo; os mecanismos públicos de redistribuição de riqueza, mesmo quando auxíliam efectivamente as situações de carência, quando desligados da caridade, suprem uma necessidade para logo criar outra, no domínio espiritual. Se a Igreja critica a apologia do mercado que omite o enquadramento ético e a ontologia social que o João menciona, não é menos verdade que critica o Estado-social, e as intervenções do Estado em nome de uma ideia de sociedade justa, quando impede a Igreja de desempenhar plena e livremente o seu papel de voz no espaço público, e, sobretudo, quando esquece a necessidade de uma cultura pública de vivência de valores éticos absolutamente inegociáveis. Daí as linhas dedicadas à família, e às novas propostas de casamentos, ao aborto, à eutanásia, e também (em parte) a menção ao tema da tecnologia e da bioética. Um exemplo não relacionado directamente com a questão do mercado é dado pela referência na encíclica aos problemas ambientais. O Papa é um ambientalista? Sim, mas um ambientalista integral, que não descuida, antes coloca em primeiro lugar, a ecologia humana. E voltamos uma vez mais ao aborto, à família, etc., etc.Notei, com agrado, as várias referências na encíclica à responsabilidade (sobre cujo tema já aqui escrevi, mas num contexto diferente), porque não há sociedade justa na caridade sem o envolvimento pessoal e espiritual nas tarefas de auxílio aos mais pobres e mais desfavorecidos. Esta parte da caridade na verdade incomoda o João. Mas não o incomoda ao ponto de fazer perceber que este detalhe que ele, o João, amputa ao resto, é a estrela e a bússola de todo o texto. A Igreja naturalmente saudaria uma sociedade sem sofrimento, nem desigualdades. Mas, se essa sociedade para o ser tivesse de pagar o preço da total desespiritualização, ou da aceitação plena de uma concepção materialista da vida, a Igreja, ao contrário dos socialismos, recusar-se-ia a ver a nova situação como sinal de grande progresso. Porque o que importa ao Papa é o "desenvolvimento integral do homem". Pois é: integral.Em matéria de doutrina social, já há muito que dizem que a posição da Igreja relativamente às esquerdas (democráticas) e direitas (democráticas) - de não estar entre ambas, nem com uma das duas, mas acima das duas - é demasiado cómoda e politicamente pouco interessante. Porém, como as frequentes referências de Bento XVI a S. Agostinho ajudam a perceber, a relação da Igreja com a política tem de se caracterizar por uma certa distância. O problema é que a distância não pode ser grande porque é dever da Igreja contribuir para uma sociedade que prefigure a Cidade de Deus. O equilíbrio é tramado. E a sua determinação será sempre avaliada por critérios puramente políticos. Mesmo quando isso não faz assim tanto sentido. Quando a encíclica "Centesimus Annus" foi publicada, constatei que alguns sectores liberais tentavam apropriar-se indevidamente da sua mensagem. Agora é o outro lado da opinião que investe no mesmo desígnio. Nada de novo, portanto.