Da Literatura: E NÃO É QUE O BOBÓ TALHOU?

23-12-2009
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Agora que o n.º 73 (Outubro) da LER já está na rua, aqui fica a crónica E não é que o bobó talhou?, que publiquei na minha coluna Heterodoxias, no n.º 72.A rapaziada não se lembra, mas 1982 foi um ano muito complicado. Era Balsemão primeiro-ministro, João Paulo II veio a Portugal e, no Atlântico Sul, estalou a guerra das Falkland entre o Reino Unido e a Argentina. Em Lisboa e Cascais, e presumo que no resto do país, comprar uma garrafa de whisky ou um quilo de bacalhau não estava ao alcance de todos (não estou a brincar), embora todos tivessem esquemas: o filho da porteira que era grumete na marinha, um despachante que sabia mexer os cordelinhos certos no licenciamento externo, viagens a Badajoz ou a Vigo, etc. Para encurtar razões, nesse ano, em Portugal, a inflacção ficou à beira de 29%.Verdade que no Brasil, no mesmo ano, foi de 99,8% (uma pêra doce, se pensarmos na grande crise de 1988-94 que deu origem ao Plano Real), o que fazia com que um quilo de abobrinha tivesse um preço às seis da manhã, outro ao meio-dia e outro ainda às seis da tarde. Mas, nessa Primavera em que a CGTP praticamente fez coincidir um arremedo de greve geral com a visita do Papa — e Ângelo Correia, então ministro da Administração Interna, aproveitou o pretexto para denunciar a existência de armas... que eram afinal pregos perdidos nas bermas do Marquês —, a impaciência dos meus 32 anos fez com que metesse licença sem vencimento e partisse para o Rio. Embarquei na antevéspera da chegada de Karol Wojtyla à terra dos três pastorinhos. À época, a Varig mantinha um padrão de excelência que obrigava o staff da companhia a mudar quatro vezes de farda em nove horas de voo. Chique a valer.Assim que desembarquei no Galeão, fui informado que devia trocar os dólares no paralelo. O paralelo era tudo o que não fosse estatal. Podia ser um boteco do bicho ou a piscina do Copacabana Palace. Por comodidade, o meu foi quase sempre o Garota de Ipanema, na esquina da Montenegro, actual Vinicius de Moraes, com a Prudente de Morais. Em Lisboa, o dólar valia 60 escudos. No paralelo do Rio valia, se não erro, qualquer coisa como 1800 cruzeiros. É fácil adivinhar a festa. O esplendor da zona Sul (sobretudo Copacabana, Ipanema e Leblon, porque São Conrado, naquele tempo, ainda era longe) equivalia a uma descarga de adrenalina. Dose de cavalo.Na pessoa de João Figueiredo, general com currículo feito na secreta, a ditadura militar fazia negaças aos sectores liberais, a tal ponto que, em 1983, Leonel Brizola, membro da Internacional Socialista, foi eleito governador do Estado do Rio de Janeiro. Um dos sintomas dessa abertura era o laissez-faire em matéria de costumes. A comunidade gay soube ler os sinais, marcando território no Ponto 4 da praia de Copacabana, nos cinemas de sessões contínuas da Cinderela e nas discotecas mais in. Uma delas era o Papaguei, ou Papagaio, conforme a hora. Até à uma, funcionava como boîte hetero, muito exclusiva (só entrava quatrocentão). Era a fase Papagaio. Fechava da uma às duas, reabrindo em versão homo, tendência Vogue. Volta não volta tropeçava em marquesas portuguesas (fugidas da Abrilada) que arrotavam jantares em casa dos Guinle. Mentiam quase todas.Surpresa total foi a solidariedade irrestrita para com os argentinos. Senti o clima gelar (e não é que o bobó talhou?) durante um almoço em Petrópolis, quando, sem cálculo, comentei os sucessos da Royal Navy na guerra das Falkland. Simplesmente não se podia dizer ilhas Falkland. Era Malvinas, ponto. Sem a elegância dos nossos anfitriões na Cidade Imperial, a intelligentzia gauchiste não tinha pejo em apoiar Galtieri contra Thatcher, como pude verificar em diversas ocasiões, a mais ruidosa das quais em protesto contra Chariots of Fire, o filme de Hugh Hudson. De cada vez que John Gielgud ou Ian Charleson surgiam na tela, um coro de impropérios varria o cinema (uma das poucas salas onde os filmes eram exibidos sem dobragem). Receei idêntico tumulto na noite da estreia, no Jardim Botânico, de uma notável encenação de Tempestade, feita com muito tesão por actores praticamente desconhecidos. Mas nada tendo acontecido, presumo que Shakespeare houvesse sido adoptado como um deles.Continua? Claro. [No n.º 73, de Outubro, numa banca ou livraria perto de si.]Etiquetas: Crónica, Nova LER

Agora que o n.º 73 (Outubro) da LER já está na rua, aqui fica a crónica E não é que o bobó talhou?, que publiquei na minha coluna Heterodoxias, no n.º 72.A rapaziada não se lembra, mas 1982 foi um ano muito complicado. Era Balsemão primeiro-ministro, João Paulo II veio a Portugal e, no Atlântico Sul, estalou a guerra das Falkland entre o Reino Unido e a Argentina. Em Lisboa e Cascais, e presumo que no resto do país, comprar uma garrafa de whisky ou um quilo de bacalhau não estava ao alcance de todos (não estou a brincar), embora todos tivessem esquemas: o filho da porteira que era grumete na marinha, um despachante que sabia mexer os cordelinhos certos no licenciamento externo, viagens a Badajoz ou a Vigo, etc. Para encurtar razões, nesse ano, em Portugal, a inflacção ficou à beira de 29%.Verdade que no Brasil, no mesmo ano, foi de 99,8% (uma pêra doce, se pensarmos na grande crise de 1988-94 que deu origem ao Plano Real), o que fazia com que um quilo de abobrinha tivesse um preço às seis da manhã, outro ao meio-dia e outro ainda às seis da tarde. Mas, nessa Primavera em que a CGTP praticamente fez coincidir um arremedo de greve geral com a visita do Papa — e Ângelo Correia, então ministro da Administração Interna, aproveitou o pretexto para denunciar a existência de armas... que eram afinal pregos perdidos nas bermas do Marquês —, a impaciência dos meus 32 anos fez com que metesse licença sem vencimento e partisse para o Rio. Embarquei na antevéspera da chegada de Karol Wojtyla à terra dos três pastorinhos. À época, a Varig mantinha um padrão de excelência que obrigava o staff da companhia a mudar quatro vezes de farda em nove horas de voo. Chique a valer.Assim que desembarquei no Galeão, fui informado que devia trocar os dólares no paralelo. O paralelo era tudo o que não fosse estatal. Podia ser um boteco do bicho ou a piscina do Copacabana Palace. Por comodidade, o meu foi quase sempre o Garota de Ipanema, na esquina da Montenegro, actual Vinicius de Moraes, com a Prudente de Morais. Em Lisboa, o dólar valia 60 escudos. No paralelo do Rio valia, se não erro, qualquer coisa como 1800 cruzeiros. É fácil adivinhar a festa. O esplendor da zona Sul (sobretudo Copacabana, Ipanema e Leblon, porque São Conrado, naquele tempo, ainda era longe) equivalia a uma descarga de adrenalina. Dose de cavalo.Na pessoa de João Figueiredo, general com currículo feito na secreta, a ditadura militar fazia negaças aos sectores liberais, a tal ponto que, em 1983, Leonel Brizola, membro da Internacional Socialista, foi eleito governador do Estado do Rio de Janeiro. Um dos sintomas dessa abertura era o laissez-faire em matéria de costumes. A comunidade gay soube ler os sinais, marcando território no Ponto 4 da praia de Copacabana, nos cinemas de sessões contínuas da Cinderela e nas discotecas mais in. Uma delas era o Papaguei, ou Papagaio, conforme a hora. Até à uma, funcionava como boîte hetero, muito exclusiva (só entrava quatrocentão). Era a fase Papagaio. Fechava da uma às duas, reabrindo em versão homo, tendência Vogue. Volta não volta tropeçava em marquesas portuguesas (fugidas da Abrilada) que arrotavam jantares em casa dos Guinle. Mentiam quase todas.Surpresa total foi a solidariedade irrestrita para com os argentinos. Senti o clima gelar (e não é que o bobó talhou?) durante um almoço em Petrópolis, quando, sem cálculo, comentei os sucessos da Royal Navy na guerra das Falkland. Simplesmente não se podia dizer ilhas Falkland. Era Malvinas, ponto. Sem a elegância dos nossos anfitriões na Cidade Imperial, a intelligentzia gauchiste não tinha pejo em apoiar Galtieri contra Thatcher, como pude verificar em diversas ocasiões, a mais ruidosa das quais em protesto contra Chariots of Fire, o filme de Hugh Hudson. De cada vez que John Gielgud ou Ian Charleson surgiam na tela, um coro de impropérios varria o cinema (uma das poucas salas onde os filmes eram exibidos sem dobragem). Receei idêntico tumulto na noite da estreia, no Jardim Botânico, de uma notável encenação de Tempestade, feita com muito tesão por actores praticamente desconhecidos. Mas nada tendo acontecido, presumo que Shakespeare houvesse sido adoptado como um deles.Continua? Claro. [No n.º 73, de Outubro, numa banca ou livraria perto de si.]Etiquetas: Crónica, Nova LER

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