O BACTERIÓFAGO: VINTE E QUATRO HORAS

05-08-2010
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Vinte e quatro horas é um tempo ínfimo na vida de uma nação. Mesmo em relação ao cidadão médio, vinte e quatro horas representam a mais pequenina fracção do todo que é a sua própria vida. Podem atrasar mas não inviabilizam. Quem olhe com alguma atenção para dois ou três factos conhecidos nas últimas vinte e quatro horas não pode deixar de ficar aturdido. Aturdido e revoltado.Em 2005, uma das primeiras medidas do então ministro da Justiça foi reduzir a metade o período de férias judiciais que vigorava há décadas. Logo vieram as corporações criticar a demagógica medida, realçando o quanto ela tinha de errado, invocando a necessidade da manutenção do status quo vigente já que não era essa a razão maior para os atrasos na justiça. Todavia, a medida parecia colher algum aplauso junto da opinião pública e avançou. Quatro anos volvidos, período que como todos sabem é ligeiramente superior a vinte e quatro horas, o novo ministro da Justiça confrontado com a perfeita inutilidade da medida então tomada e dando razão às críticas que vinham de um lado e do outro da barricada - muitas diligências continuavam a não se fazer depois de 15 de Julho porque já havia magistrados de férias e poucas eram as diligências agendadas entre 1 e 15 de Setembro porque também havia quem ainda não tivesse chegado de férias - anunciou a sua alteração. Agora, pelo que percebi, não se visa a reposição do sistema anterior a 2005, mas tão só suspender os prazos entre 15 e 30 de Julho, mantendo durante o mês de Agosto os tribunais encerrados.A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) já veio dizer que está contra essa decisão "corporativa", pois no seu entender ela apenas prossegue "os interesses dos advogados" e "só serve para resolver o problema das férias dos advogados". Eu não sei o que têm as férias dos advogados de tão extraordinário que desencadeiem a "ira" da associação sindical, tanto mais que trabalho sozinho e não tenho a quem recorrer para poder ir de férias descansado, embora também saiba que quando um juiz está de férias há colectivos que ficam pendurados. E não são poucas as vezes, como toda a gente sabe, em que os processos também não andam mesmo quando os senhores juízes não estão de férias, por razões que só eles sabem, e que os prazos para eles são normalmente considerados como meramente indicativos, ao contrário do que sucede com as partes, razão para a qual há processos há vários anos à espera de uma decisão enquanto o cidadão contribuinte espera, desespera e continua a pagar a sofreguidão fiscal. Ao mesmo tempo que a ASJP se pronunciava por causa do problema das férias, os portugueses ficaram a saber que cerca de 99,5% dos professores eram habitualmente classificados entre o Bom e o Muito Bom, ou seja, houve menos de 0,5% de professores classificados com Regular ou Insuficiente, o que leva a ministra da Educação a considerar que nem todos poderão chegar ao topo da carreira, sob pena de termos carreiras quadradas e não piramidais. E que a mim me leva à conclusão óbvia de que os alunos portugueses são todos burros, já que com professores tão bons não há outra explicação para as taxas de insucesso escolar e os níveis arrepiantes de ignorância e iliteracia a todos os níveis patenteados.A FENPROF, que como diria Manuel Laranjeira é uma organização representativa de uma parte dos professores dirigida por um conjunto de líderes messiânicos encabeçados por um Moisés, que a meu ver transmite à opinião pública a ideia de que os seus seguidores deverão ir constantemente errando na sua luta até que lhes seja indicado o caminho da salvação, veio logo esclarecer a nação de que a ministra fazia demagogia e que as suas declarações foram "infelizes", já que os números divulgados iludiam o facto de a esmagadora maioria dos professores terem sido "avaliados com base em critérios difíceis de diferenciar" (sic). Por tal razão, mesmo antes de se voltarem a reunir, já retomaram a ameaça feita em 30 de Dezembro de "recorrer imediatamente à Assembleia da República". Quer isto dizer que sem a Intersindical para impor os seus pontos de vista, o recurso, em caso de falhanço, deverá ser feito ao Parlamento, já que lá deverá haver alguém disposto a defender e impor ao Governo legítimo da nação as teses da FENPROF.Tudo isto me faz ainda mais confusão quando lá fora, um dos mais influentes jornais de Itália, lido em toda a Europa e no mundo, o Corriere della Sera, escreve que a inteligência de um emigrante português está a revolucionar o futebol italiano, a ponto de dizer que ele poderá não conhecer o jogo como o conhece um técnico italiano, "mas usa-o melhor" e que o erro dos seus colegas foi terem-no julgado pelos parâmetros italianos. A sua força não está na adopção de modelos conhecidos, nem no instinto, mas acima de tudo na inteligência, o que o conduziu a romper com os modelos tradicionais, formando uma equipa praticamente inatacável. O resultado está à vista: a sua equipa comanda destacada o campeonato italiano pelo 2º ano consecutivo e prepara-se para arrecadar mais um título. Ver o que Mourinho faz em Itália, ou o que antes fez em Inglaterra, e olhar para o que entre nós se vai fazendo, não pode deixar de ser devastador.Se há pouco referi Laranjeira não foi por acaso. É que 100 anos depois, tudo aquilo que ele disse e escreveu sobre nós continua actual e, lamentavelmente, ignorado. Entre outras coisas, escrevia ele nesse texto lapidar que é "O Pessimismo Nacional", que pelo espírito continuamos a ser um povo da pedra lascada e isto porque apenas "uma fracção do cérebro português acompanhou o espírito contemporâneo na sua gigantesca evolução; e precisamente porque essa minoria civilizada não soube ou não pôde impor-se à maioria da nação e arrastá-la consigo neste avanço progressivo; precisamente desse desnivelamento - é que deriva essa crise sobreaguda do pessimismo em que se está debatendo o povo português", acrescentando que "essa harmonia que parece reinar na engrenagem social portuguesa é uma harmonia toda fictícia", "a nossa organização social é uma organização mentirosa, sem estabilidade, sem unidade, uma ficção de engrenagem civilizada, encobrindo a torpeza dum parasitismo desenfreado e impudente".Ao ler e ouvir o que dizem a ASJP, a FENPROF, ao ler o que lá fora escrevem sobre Mourinho ou o que ontem com toda a lucidez afirmou Jaime Gama ao empossar a nova comissão parlamentar dedicada à corrupção, dizendo não querer no final um tratado de sociologia da corrupção mas um relatório com propostas concretas e em tempo útil, não posso deixar de ler e reler o que escreveu Manuel Laranjeira. E de me interrogar constantemente sobre o que, malfadadamente, teimosamente, insisto em ler, ouvir e ver.Como escrevia Laranjeira, "é preciso começar desde o princípio", "refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo para cima, incansavelmente, obstinadamente, com o desespero tenaz e glacial de quem se debate contra a morte", canalizando rios de "energia perseverante", "sob pena de nos vermos morrer ingloriamente, indignamente, relesmente, com o desprezo dos outros - e de nós mesmos".Afinal, o que está em causa é evitar que continuemos a assistir ao triunfo dos "sem-vergonha", dos "sem-escrúpulos", dos que têm por princípio moral "viver a vida sem ideal", alterando esta "ficção de organização civilizada" em que definhamos para que os poucos que temos com "verdadeira envergadura messiânica" não continuem a morrer esquecidos, abandonados e desiludidos numa qualquer universidade californiana ou num tugúrio, "aborrecendo os homens e a vida". Enfim, acabando de uma vez por todas com os "messias de quadrilha", esses que têm "um ventre esfíngico e mais difícil de saciar do que o ventre misterioso das nações vivas, quando andam à caça das nações mortas para as devorar".Não me interpretem mal. Nada tenho contra a ASJP, a FENPROF ou este ou aquele ministro. Vivemos todos na mesma casa, na mesma colmeia, e cada um vai defendendo os seus interesses, saciando a sua fome como pode. Às vezes também como não pode, como se vai vendo com alguns banqueiros, alguns empresários e alguns autarcas. Mas continuo a pensar que qualquer cidadão honrado que leia o que Laranjeira escreveu, ouça as notícias de hoje e acompanhe o que se passa, não pode deixar de ficar possesso com aquilo que andamos a fazer a nós próprios. Seria bom que todos ganhássemos juizinho. E, já agora, se não for pedir muito, que se dê a conhecer Laranjeira nas escolas. Ou, pelo menos, o que ele escreveu. Nesse combate é que a ASJP, a FENPROF e o governo de José Sócrates se deviam empenhar. É que talvez depois disso, quem sabe se daqui a uns anos, não seria bem mais fácil às futuras gerações conciliarem as férias judiciais com a avaliação dos professores, o combate à corrupção com o interesse nacional e, ainda por cima, saberem quem foram Laranjeira, Antero ou Soares dos Reis. Vinte e quatro horas é muito tempo neste país. Desgraçadamente.


Vinte e quatro horas é um tempo ínfimo na vida de uma nação. Mesmo em relação ao cidadão médio, vinte e quatro horas representam a mais pequenina fracção do todo que é a sua própria vida. Podem atrasar mas não inviabilizam. Quem olhe com alguma atenção para dois ou três factos conhecidos nas últimas vinte e quatro horas não pode deixar de ficar aturdido. Aturdido e revoltado.Em 2005, uma das primeiras medidas do então ministro da Justiça foi reduzir a metade o período de férias judiciais que vigorava há décadas. Logo vieram as corporações criticar a demagógica medida, realçando o quanto ela tinha de errado, invocando a necessidade da manutenção do status quo vigente já que não era essa a razão maior para os atrasos na justiça. Todavia, a medida parecia colher algum aplauso junto da opinião pública e avançou. Quatro anos volvidos, período que como todos sabem é ligeiramente superior a vinte e quatro horas, o novo ministro da Justiça confrontado com a perfeita inutilidade da medida então tomada e dando razão às críticas que vinham de um lado e do outro da barricada - muitas diligências continuavam a não se fazer depois de 15 de Julho porque já havia magistrados de férias e poucas eram as diligências agendadas entre 1 e 15 de Setembro porque também havia quem ainda não tivesse chegado de férias - anunciou a sua alteração. Agora, pelo que percebi, não se visa a reposição do sistema anterior a 2005, mas tão só suspender os prazos entre 15 e 30 de Julho, mantendo durante o mês de Agosto os tribunais encerrados.A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) já veio dizer que está contra essa decisão "corporativa", pois no seu entender ela apenas prossegue "os interesses dos advogados" e "só serve para resolver o problema das férias dos advogados". Eu não sei o que têm as férias dos advogados de tão extraordinário que desencadeiem a "ira" da associação sindical, tanto mais que trabalho sozinho e não tenho a quem recorrer para poder ir de férias descansado, embora também saiba que quando um juiz está de férias há colectivos que ficam pendurados. E não são poucas as vezes, como toda a gente sabe, em que os processos também não andam mesmo quando os senhores juízes não estão de férias, por razões que só eles sabem, e que os prazos para eles são normalmente considerados como meramente indicativos, ao contrário do que sucede com as partes, razão para a qual há processos há vários anos à espera de uma decisão enquanto o cidadão contribuinte espera, desespera e continua a pagar a sofreguidão fiscal. Ao mesmo tempo que a ASJP se pronunciava por causa do problema das férias, os portugueses ficaram a saber que cerca de 99,5% dos professores eram habitualmente classificados entre o Bom e o Muito Bom, ou seja, houve menos de 0,5% de professores classificados com Regular ou Insuficiente, o que leva a ministra da Educação a considerar que nem todos poderão chegar ao topo da carreira, sob pena de termos carreiras quadradas e não piramidais. E que a mim me leva à conclusão óbvia de que os alunos portugueses são todos burros, já que com professores tão bons não há outra explicação para as taxas de insucesso escolar e os níveis arrepiantes de ignorância e iliteracia a todos os níveis patenteados.A FENPROF, que como diria Manuel Laranjeira é uma organização representativa de uma parte dos professores dirigida por um conjunto de líderes messiânicos encabeçados por um Moisés, que a meu ver transmite à opinião pública a ideia de que os seus seguidores deverão ir constantemente errando na sua luta até que lhes seja indicado o caminho da salvação, veio logo esclarecer a nação de que a ministra fazia demagogia e que as suas declarações foram "infelizes", já que os números divulgados iludiam o facto de a esmagadora maioria dos professores terem sido "avaliados com base em critérios difíceis de diferenciar" (sic). Por tal razão, mesmo antes de se voltarem a reunir, já retomaram a ameaça feita em 30 de Dezembro de "recorrer imediatamente à Assembleia da República". Quer isto dizer que sem a Intersindical para impor os seus pontos de vista, o recurso, em caso de falhanço, deverá ser feito ao Parlamento, já que lá deverá haver alguém disposto a defender e impor ao Governo legítimo da nação as teses da FENPROF.Tudo isto me faz ainda mais confusão quando lá fora, um dos mais influentes jornais de Itália, lido em toda a Europa e no mundo, o Corriere della Sera, escreve que a inteligência de um emigrante português está a revolucionar o futebol italiano, a ponto de dizer que ele poderá não conhecer o jogo como o conhece um técnico italiano, "mas usa-o melhor" e que o erro dos seus colegas foi terem-no julgado pelos parâmetros italianos. A sua força não está na adopção de modelos conhecidos, nem no instinto, mas acima de tudo na inteligência, o que o conduziu a romper com os modelos tradicionais, formando uma equipa praticamente inatacável. O resultado está à vista: a sua equipa comanda destacada o campeonato italiano pelo 2º ano consecutivo e prepara-se para arrecadar mais um título. Ver o que Mourinho faz em Itália, ou o que antes fez em Inglaterra, e olhar para o que entre nós se vai fazendo, não pode deixar de ser devastador.Se há pouco referi Laranjeira não foi por acaso. É que 100 anos depois, tudo aquilo que ele disse e escreveu sobre nós continua actual e, lamentavelmente, ignorado. Entre outras coisas, escrevia ele nesse texto lapidar que é "O Pessimismo Nacional", que pelo espírito continuamos a ser um povo da pedra lascada e isto porque apenas "uma fracção do cérebro português acompanhou o espírito contemporâneo na sua gigantesca evolução; e precisamente porque essa minoria civilizada não soube ou não pôde impor-se à maioria da nação e arrastá-la consigo neste avanço progressivo; precisamente desse desnivelamento - é que deriva essa crise sobreaguda do pessimismo em que se está debatendo o povo português", acrescentando que "essa harmonia que parece reinar na engrenagem social portuguesa é uma harmonia toda fictícia", "a nossa organização social é uma organização mentirosa, sem estabilidade, sem unidade, uma ficção de engrenagem civilizada, encobrindo a torpeza dum parasitismo desenfreado e impudente".Ao ler e ouvir o que dizem a ASJP, a FENPROF, ao ler o que lá fora escrevem sobre Mourinho ou o que ontem com toda a lucidez afirmou Jaime Gama ao empossar a nova comissão parlamentar dedicada à corrupção, dizendo não querer no final um tratado de sociologia da corrupção mas um relatório com propostas concretas e em tempo útil, não posso deixar de ler e reler o que escreveu Manuel Laranjeira. E de me interrogar constantemente sobre o que, malfadadamente, teimosamente, insisto em ler, ouvir e ver.Como escrevia Laranjeira, "é preciso começar desde o princípio", "refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo para cima, incansavelmente, obstinadamente, com o desespero tenaz e glacial de quem se debate contra a morte", canalizando rios de "energia perseverante", "sob pena de nos vermos morrer ingloriamente, indignamente, relesmente, com o desprezo dos outros - e de nós mesmos".Afinal, o que está em causa é evitar que continuemos a assistir ao triunfo dos "sem-vergonha", dos "sem-escrúpulos", dos que têm por princípio moral "viver a vida sem ideal", alterando esta "ficção de organização civilizada" em que definhamos para que os poucos que temos com "verdadeira envergadura messiânica" não continuem a morrer esquecidos, abandonados e desiludidos numa qualquer universidade californiana ou num tugúrio, "aborrecendo os homens e a vida". Enfim, acabando de uma vez por todas com os "messias de quadrilha", esses que têm "um ventre esfíngico e mais difícil de saciar do que o ventre misterioso das nações vivas, quando andam à caça das nações mortas para as devorar".Não me interpretem mal. Nada tenho contra a ASJP, a FENPROF ou este ou aquele ministro. Vivemos todos na mesma casa, na mesma colmeia, e cada um vai defendendo os seus interesses, saciando a sua fome como pode. Às vezes também como não pode, como se vai vendo com alguns banqueiros, alguns empresários e alguns autarcas. Mas continuo a pensar que qualquer cidadão honrado que leia o que Laranjeira escreveu, ouça as notícias de hoje e acompanhe o que se passa, não pode deixar de ficar possesso com aquilo que andamos a fazer a nós próprios. Seria bom que todos ganhássemos juizinho. E, já agora, se não for pedir muito, que se dê a conhecer Laranjeira nas escolas. Ou, pelo menos, o que ele escreveu. Nesse combate é que a ASJP, a FENPROF e o governo de José Sócrates se deviam empenhar. É que talvez depois disso, quem sabe se daqui a uns anos, não seria bem mais fácil às futuras gerações conciliarem as férias judiciais com a avaliação dos professores, o combate à corrupção com o interesse nacional e, ainda por cima, saberem quem foram Laranjeira, Antero ou Soares dos Reis. Vinte e quatro horas é muito tempo neste país. Desgraçadamente.

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