"Parece um vício cubano: todos querem ser como Fidel!"

06-04-2011
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Norberto Fuentes foi um dos que seguiu Fidel. Cresceu com o regime, foi íntimo do poder. Mas desencantou-se e teve a vida por um fio

Norberto Fuentes serviu Fidel antes de o enfrentar. E agora meteu-se na sua pele. "O maior gozo que tive foi o de me instalar no posto de comando privilegiado que é o seu cérebro." "Autobiografia de Fidel Castro" é o retrato de um homem cheio de si, sôfrego de poder. Fernando Sousa

No alvor da revolução, milhares de cubanos seguiram Fidel Castro. O guajiro de Birán mostrara combatividade, agilidade oratória e audácia como ninguém antes. Além disso fizera fugir Batista e prometia um país igualitário - o que não era difícil numa ilha marcada pela miséria. Norberto Fuentes, miúdo quando os barbudos entraram em Havana, foi um dos que o seguiu. Cresceu com o regime, tornou-se num nome de referência literária, com dez livros publicados e o Prémio Casa de las Américas, foi íntimo do poder. Mas desencantou-se, teve a vida por um fio, no quadro do mesmo processo que levou Arnaldo Ochoa e Antonio de la Guardia ao paredón, sobrevivendo graças à intervenção de Gabriel García Márquez. Exilou-se em Miami e um editor propôs-lhe que partilhasse os anos de convívio com o fidelismo, de que resultou "Autobiografia de Fidel Castro", publicada em 2007 e agora entre nós pela Casa das Letras. É o retrato de um homem cheio de si, sôfrego de protagonismo e de poder, tanto que tudo e todos à sua volta, como Che, aparecem como peças de um jogo - o da revolução, ou o seu, apresentados como o mesmo. O Ípsilon falou com Norberto Fuentes para tentar distinguir o biografado do autor. E descobriu por detrás da informação uma novela.

Como é que começou a trabalhar para Fidel?

Eu nunca trabalhei para Fidel. Eu trabalhei com Fidel. Nem ele era patrão nem eu empregado. O importante era a dedicação à causa com que nos tínhamos comprometido.

Então quando é que se juntou a ela?

Na mesma madrugada do dia da vitória da Revolução, aí pelas 3h20 de 1 Janeiro de 1959.

Descreve o líder cubano como uma pessoa calculista, sem rasgos de afecto...

Fidel é um homem de grande pragmatismo, que além disso dirigiu um país numa confrontacão permanente e desigual com uma superpotência. Nessas situações mais vale ser pragmático, calculista, hábil, flexível e tudo mais. Quanto aos seus afectos, creio que se subordinam obrigatoriamente a isso. Mas pergunto eu: não é uma grande demonstração de afecto, de paixão, de amor desmedido, o de Fidel pelos seus objectivos políticos?

Ele não levou esse pragmatismo longe demais em relação à família? Está no seu livro o distanciamento em relação ao pai, ao irmãos mais velho, e até a Raúl...

Vivemos em escalas diferentes do conhecimento e das relações humanas. William Faulkner dizia que um artista, na prossecução da sua obra, podia chegar a ser desapiedado. A um artista aparentemente pode perdoar-se-lhe a sua conduta. O político tem de lidar com outras regras, ou pelo menos, se tenciona ser desapiedado, ter o cuidado de não o fazer em público. Mas onde é que falo de distanciamento com o pai ou com algum dos irmãos? É interesante essa perspectiva. O que seria bom saber é quem se afastou primeiro. Se Fidel se os familiares.

Fidel foi sempre como o apresenta ou houve algo que o mudou?

Acho que não apresentei Fidel como um ente estático. Pelo menos empenhei-me na descrição de uma existência em movimento e conforme as vicissitudes do seu tempo. Ninguém nasce para ser o "líder máximo da Revolução Cubana", como lhe chamava a propaganda oficial, ou um sátrapa caribenho, como diziam os comentadores de Miami.

Não, não o apresentou como um ente estático, mas apresentou-o como um ente sempre em movimento em torno de si mesmo, numa ambição desmedida para estar sempre acima dos outros e em direcção a esse mesmo líder máximo...

Ninguém se converte num líder revolucionário se estiver abaixo do nível de inteligência ou de valentia, ou de decisão, ou de futuro dos que o rodeiam. Isso está mais do que estudado pela psicología de grupo. O líder surge do grupo, não contra o grupo. Qualquer que seja a escala em que o ponhas, o líder é o resumo das qualidades do grupo. Esse é o caso, mais do que evidente, de Fidel Castro.

Ele admitiu incendiar Santiago de Cuba? Como Nero fez com Roma? Custa a crer...

Pelo menos, disse-o. Tenho testemunhas que mo contaram. Claro, não há que levar isso dramaticamente. Ele é muito amigo desse tipo de declarações, que na verdade são simples "boutades".

No seu livro, Fidel aparece desconfiado de Che desde o primeiro momento. Porque é que lhe deu então tanto poder?

Não me lembro que lhe tenha dado algum poder. Poder? Ao Che, o que lhe dava eram tarefas, cada vez mais complexas e mais próximas do suicídio. Isso não tem nada a ver com o poder.

Pois, mas quando se dão tarefas importantes a uma pessoa, está-se-lhe a dar poder. Lembre-se do Che nas Nações Unidas...

A animosidade de Fidel era a mesma de Che para com ele. Tenho informações sobre isso, mas tens que esperar pelo meu próximo livro sobre o argentino.

Bom... um combate de galos?

Na Argentina há galos?

Para quando esse livro? Destape um pouco desse Che...

Não, coño; deixa-me escrevê-lo primeiro! Agora estamos é com o livro do vencedor.

Mostra Fidel como o homem que segura a espingarda enquanto outros, como Raúl, ou Che, fuzilam. Foi assim?

É uma forma de ver as coisas.

Descreve no seu livro Raúl como um matador...

Gostava mais de o ver como um homem de tarefas. Chamar a Raúl Castro um matador não seria digno dos meus "standards" como escritor. Demasiado simples. Não conseguiria dormir hoje. "Norbertico - diria para mim - escreveste algo falso". É verdade que no livro ponho na boca de Fidel um par de anedotas para definir a dureza de Raúl, mas se escrever uma novela sobre ele será um filão a escavar em profundidade - de como Raúl se transformou no homem mais duro da Revolução Cubana.

Uma autobiografia de Fidel Castro. Como é que lhe ocorreu a ideia?

A ideia não foi minha, foi uma proposta de Basilio Baltasar, o meu antigo editor da Seix Barral. Claro, não o livro em si. Este livro é uma versão inteiramente recriada do projecto de Basilio. Onde ele viu um livro de detalhes inéditos e informacões pouco conhecidas sobre o círculo íntimo de Fidel, eu inventei uma novela.

Como é que conseguiu meter-se na sua pele e mentalidade? Ponderou os riscos?

Metendo-me.

Claro, mas ponderou os riscos de falar por uma pessoa ainda viva?

Sim, onde haja risco, perigo, desafio, podes contar comigo. Na primeira fila.

Serviu Fidel antes de o enfrentar. Neste sentido, este livro não é algo também como um exorcismo?

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Exorcizar-me de uma coisa que me está no sangue? Na outra resposta tinha algo mais para dizer, mas isso teria tirado força à palavra solitária, tão definitiva [metendo-me]. Mas ia acrecentar: sobretudo, não me deixando levar por nenhum preconceito. E mais: gostei muito de me meter nos seus sapatos. Parece um vício cubano: todos querem ser como ele, tanto em Havana como em Miami. Mas mais do que me meter na sua pele, o maior gozo que tive foi o de me instalar no posto de comando privilegiado que é o seu cérebro. Definitivamente, sou um intelectual, e obrigar-me a pensar como ele era um desafio à minha própria inteligência.

Acabei o seu livro com a sensação que ainda admira Fidel. É verdade?

Não será antes a sensação com que tu ficaste depois de o ler? Que admiras Fidel? Não te preocupes, não é caso para te envergonhares. De Tennessee Williams a Gabriel García Márquez, de Sartre a Hemingway, todos o admiraram, quiseram aparecer numa fotografia debaixo desse braço e perto da sua barba.

Ver crítica de livros págs. 30 e segs.

Norberto Fuentes foi um dos que seguiu Fidel. Cresceu com o regime, foi íntimo do poder. Mas desencantou-se e teve a vida por um fio

Norberto Fuentes serviu Fidel antes de o enfrentar. E agora meteu-se na sua pele. "O maior gozo que tive foi o de me instalar no posto de comando privilegiado que é o seu cérebro." "Autobiografia de Fidel Castro" é o retrato de um homem cheio de si, sôfrego de poder. Fernando Sousa

No alvor da revolução, milhares de cubanos seguiram Fidel Castro. O guajiro de Birán mostrara combatividade, agilidade oratória e audácia como ninguém antes. Além disso fizera fugir Batista e prometia um país igualitário - o que não era difícil numa ilha marcada pela miséria. Norberto Fuentes, miúdo quando os barbudos entraram em Havana, foi um dos que o seguiu. Cresceu com o regime, tornou-se num nome de referência literária, com dez livros publicados e o Prémio Casa de las Américas, foi íntimo do poder. Mas desencantou-se, teve a vida por um fio, no quadro do mesmo processo que levou Arnaldo Ochoa e Antonio de la Guardia ao paredón, sobrevivendo graças à intervenção de Gabriel García Márquez. Exilou-se em Miami e um editor propôs-lhe que partilhasse os anos de convívio com o fidelismo, de que resultou "Autobiografia de Fidel Castro", publicada em 2007 e agora entre nós pela Casa das Letras. É o retrato de um homem cheio de si, sôfrego de protagonismo e de poder, tanto que tudo e todos à sua volta, como Che, aparecem como peças de um jogo - o da revolução, ou o seu, apresentados como o mesmo. O Ípsilon falou com Norberto Fuentes para tentar distinguir o biografado do autor. E descobriu por detrás da informação uma novela.

Como é que começou a trabalhar para Fidel?

Eu nunca trabalhei para Fidel. Eu trabalhei com Fidel. Nem ele era patrão nem eu empregado. O importante era a dedicação à causa com que nos tínhamos comprometido.

Então quando é que se juntou a ela?

Na mesma madrugada do dia da vitória da Revolução, aí pelas 3h20 de 1 Janeiro de 1959.

Descreve o líder cubano como uma pessoa calculista, sem rasgos de afecto...

Fidel é um homem de grande pragmatismo, que além disso dirigiu um país numa confrontacão permanente e desigual com uma superpotência. Nessas situações mais vale ser pragmático, calculista, hábil, flexível e tudo mais. Quanto aos seus afectos, creio que se subordinam obrigatoriamente a isso. Mas pergunto eu: não é uma grande demonstração de afecto, de paixão, de amor desmedido, o de Fidel pelos seus objectivos políticos?

Ele não levou esse pragmatismo longe demais em relação à família? Está no seu livro o distanciamento em relação ao pai, ao irmãos mais velho, e até a Raúl...

Vivemos em escalas diferentes do conhecimento e das relações humanas. William Faulkner dizia que um artista, na prossecução da sua obra, podia chegar a ser desapiedado. A um artista aparentemente pode perdoar-se-lhe a sua conduta. O político tem de lidar com outras regras, ou pelo menos, se tenciona ser desapiedado, ter o cuidado de não o fazer em público. Mas onde é que falo de distanciamento com o pai ou com algum dos irmãos? É interesante essa perspectiva. O que seria bom saber é quem se afastou primeiro. Se Fidel se os familiares.

Fidel foi sempre como o apresenta ou houve algo que o mudou?

Acho que não apresentei Fidel como um ente estático. Pelo menos empenhei-me na descrição de uma existência em movimento e conforme as vicissitudes do seu tempo. Ninguém nasce para ser o "líder máximo da Revolução Cubana", como lhe chamava a propaganda oficial, ou um sátrapa caribenho, como diziam os comentadores de Miami.

Não, não o apresentou como um ente estático, mas apresentou-o como um ente sempre em movimento em torno de si mesmo, numa ambição desmedida para estar sempre acima dos outros e em direcção a esse mesmo líder máximo...

Ninguém se converte num líder revolucionário se estiver abaixo do nível de inteligência ou de valentia, ou de decisão, ou de futuro dos que o rodeiam. Isso está mais do que estudado pela psicología de grupo. O líder surge do grupo, não contra o grupo. Qualquer que seja a escala em que o ponhas, o líder é o resumo das qualidades do grupo. Esse é o caso, mais do que evidente, de Fidel Castro.

Ele admitiu incendiar Santiago de Cuba? Como Nero fez com Roma? Custa a crer...

Pelo menos, disse-o. Tenho testemunhas que mo contaram. Claro, não há que levar isso dramaticamente. Ele é muito amigo desse tipo de declarações, que na verdade são simples "boutades".

No seu livro, Fidel aparece desconfiado de Che desde o primeiro momento. Porque é que lhe deu então tanto poder?

Não me lembro que lhe tenha dado algum poder. Poder? Ao Che, o que lhe dava eram tarefas, cada vez mais complexas e mais próximas do suicídio. Isso não tem nada a ver com o poder.

Pois, mas quando se dão tarefas importantes a uma pessoa, está-se-lhe a dar poder. Lembre-se do Che nas Nações Unidas...

A animosidade de Fidel era a mesma de Che para com ele. Tenho informações sobre isso, mas tens que esperar pelo meu próximo livro sobre o argentino.

Bom... um combate de galos?

Na Argentina há galos?

Para quando esse livro? Destape um pouco desse Che...

Não, coño; deixa-me escrevê-lo primeiro! Agora estamos é com o livro do vencedor.

Mostra Fidel como o homem que segura a espingarda enquanto outros, como Raúl, ou Che, fuzilam. Foi assim?

É uma forma de ver as coisas.

Descreve no seu livro Raúl como um matador...

Gostava mais de o ver como um homem de tarefas. Chamar a Raúl Castro um matador não seria digno dos meus "standards" como escritor. Demasiado simples. Não conseguiria dormir hoje. "Norbertico - diria para mim - escreveste algo falso". É verdade que no livro ponho na boca de Fidel um par de anedotas para definir a dureza de Raúl, mas se escrever uma novela sobre ele será um filão a escavar em profundidade - de como Raúl se transformou no homem mais duro da Revolução Cubana.

Uma autobiografia de Fidel Castro. Como é que lhe ocorreu a ideia?

A ideia não foi minha, foi uma proposta de Basilio Baltasar, o meu antigo editor da Seix Barral. Claro, não o livro em si. Este livro é uma versão inteiramente recriada do projecto de Basilio. Onde ele viu um livro de detalhes inéditos e informacões pouco conhecidas sobre o círculo íntimo de Fidel, eu inventei uma novela.

Como é que conseguiu meter-se na sua pele e mentalidade? Ponderou os riscos?

Metendo-me.

Claro, mas ponderou os riscos de falar por uma pessoa ainda viva?

Sim, onde haja risco, perigo, desafio, podes contar comigo. Na primeira fila.

Serviu Fidel antes de o enfrentar. Neste sentido, este livro não é algo também como um exorcismo?

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Exorcizar-me de uma coisa que me está no sangue? Na outra resposta tinha algo mais para dizer, mas isso teria tirado força à palavra solitária, tão definitiva [metendo-me]. Mas ia acrecentar: sobretudo, não me deixando levar por nenhum preconceito. E mais: gostei muito de me meter nos seus sapatos. Parece um vício cubano: todos querem ser como ele, tanto em Havana como em Miami. Mas mais do que me meter na sua pele, o maior gozo que tive foi o de me instalar no posto de comando privilegiado que é o seu cérebro. Definitivamente, sou um intelectual, e obrigar-me a pensar como ele era um desafio à minha própria inteligência.

Acabei o seu livro com a sensação que ainda admira Fidel. É verdade?

Não será antes a sensação com que tu ficaste depois de o ler? Que admiras Fidel? Não te preocupes, não é caso para te envergonhares. De Tennessee Williams a Gabriel García Márquez, de Sartre a Hemingway, todos o admiraram, quiseram aparecer numa fotografia debaixo desse braço e perto da sua barba.

Ver crítica de livros págs. 30 e segs.

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