Para sermos melhores espectadores

06-04-2011
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O desafio do filme de Weerasethakul: confronta-nos no lugar de espectadores, lembra-nos aquilo que já fomos, nesta e noutras vidas de espectadores menos formatados.

Tim Burton, e o regresso ao planeta dos macacos: "Uma das coisas que gosto deste festival [Cannes] é ver coisas que não vemos habitualmente. Vemos muitos filmes, sabem, o mundo está a ficar cada vez mais pequeno e os filmes tornam-se mais ocidentalizados ou hollywoodizados e com este filme senti que estava a ver [alguma coisa] de outro país, de outra perspectiva. Pelos temas, usando elementos de fantasia de uma forma que nunca tinha visto antes. Por isso senti que era um bonito e estranho sonho que não se vê com frequência."

Isto era Tim Burton, citado pelo "Toronto Star", na conferência de imprensa do Palmarés de Cannes 2010, cujo júri, que ele presidiu, atribuiu a Palma de Ouro a "O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores", de Apichatpong Weerasethakul. Foi daqueles palmarés em que um festival se mostra à frente, daqueles palmarés que, para além de poder fazer bem a um filme, faz bem a um festival - até porque, no caso concreto, elevou para uma fasquia de excelência uma competição que na realidade foi só sofrível - e ao cinema.

E foi um abanão - como aquele outro, em 1999, em que o júri presidido por David Cronenberg se deixou invadir pela correria de "Rosetta", dos irmãos Dardenne, e, para cúmulo dos seus pecados, premiou os não-actores de "L"Humanité", de Bruno Dumont, que tinha irritado muita gente e que ainda ficou com o Grande Prémio do Júri.

Para alguns a selva de Apichatpong foi uma epifania, para outros uma agressão. Aplausos entusiasmados perante o anúncio do júri (aquilo que se ouviu na sala em que a imprensa seguia a cerimónia dos prémios), entusiasmos no "Monde" ou no "Libération" (e no PÚBLICO), um "vi-o duas vezes e aborreci-me duas vezes" ("L"Express", mas cada um aborrece-se com aquilo que pode) e um "grotesca Palma de Ouro" no "El País", título e artigo que sintetizaram, como lhe chamar?, o medo, a intimidação, perante o desconhecido. Uma guerrilha cultural, o "mainstream" feita virgem ofendida pelo "alternativo"? O que quer que cada uma dessas categorias seja...

O último filme de Weerasethakul, "ou o que quer que essa coisa seja", escrevia-se nesse artigo do diário espanhol, seria uma invenção dos festivais, "do ridículo gueto dos festivais". Mas que outra coisa pode ser um festival, de cinema, de música, de teatro, de literatura, de qualquer coisa, a não ser um gueto (mais ou menos ridículo) onde - é isso que se espera - se tacteia o futuro e às vezes se encontra e outras vezes se vê miragens a cada esquina?

Acusações, ao júri, na pessoa do seu presidente, de fascínio pelo "vanguardismo", pelo "rebuscado hermetismo" por uma "poética difícil de identificar", pela "patética linguagem expressiva" de Weerasethakul? Sim, isso tudo. Mas a palavra que aqui interessa é "fascínio". Ou esse é um pecado, na perspectiva de quem se descobre incapaz de aí chegar?

Não passou despercebido o facto de no ano do seu "blockbuster" "Alice no País das Maravilhas" - filme tão normalizado pelos efeitos digitais e pelo 3D... - Tim Burton ter sido seduzido pela estranheza artesanal, ele que em tempos já foi cineasta selvagem e estranho (também de "poética difícil de identificar"?). Foram-lhe feitos juízos de intenções: o americano quis fazer-se "cool" ao dar o prémio ao tailandês, o gesto terá sido calculista (até se escreveu: se ele gosta desses filmes, porque é que não os faz em Hollywood?). Preferimos esta versão, menos cínica embora subjectiva como as outras: os fantasmas (e não só a criatura felpuda saída de uma versão barata de "Star Wars") recordaram a Tim Burton o cineasta que ele já foi, sem CGI e sem 3D. Como quem recorda vidas passadas. O Tio Burton lembrou-se das suas vidas anteriores.

Não é outro o desafio de Apichatpong Weerasethakul com este filme que faz o levantamento da memória de uma cultura específica, a do Noroeste da Tailândia, que (nos) mergulha numa floresta animista - a curta "Letter do Uncle Boonmee", exibida o ano passado no IndieLisboa, foi um preliminar, um agitar da memória para a natureza começar a falar - mas, sobretudo, que nos confronta no lugar universal de espectadores: lembra-nos aquilo que já fomos, nesta e noutras vidas de espectadores.

É uma experiência de estados alterados "O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores", uma reserva de sensações, de energia e de imaginação que o espectador descobre existir (e feliz o que assim se descobre) e que o filme nele vai apurando. Numa entrevista à revista "Cinemascope", Weerasethakul falava da diferença entre as suas instalações e os seus filmes. No primeiro caso, no espaço de uma galeria, espectador e instalação seriam como dois animais que se farejam mutuamente, o espectador estando activo; numa sala de cinema o espectador seria como um "zombie", subjugado e hipnotizado perante o poder "extremo" do filme. Ficámos subjugados perante o que disse o senhor Weerasethakul. E ficámos subjugados perante o filme. O ecrã pode tornar-se "branco", aberto a que projectemos nele as nossas memórias. É experiência física: um filme, uma câmara, os animais e a natureza permitindo esta sensação de estar sujeito à transformação.

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Coisa de "pureza"? Nada disso, como pode ser "puro" o cinema de um arquitecto de formação, tailandês, que estudou cinema em Chicago e que cita Antonioni, Jacques Tourneur, o cinema de ficção científica ou os subprodutos da TV tailandesa?

Coisa "primitiva"? Sim, no sentido - nada elitista, já agora - do cinema como espectáculo que nos deixa boquiabertos de espanto. Como já estivemos. Como já fomos, espectadores menos formatados.

Na verdade, isto é cinema em 3D. Mas neste caso, para o ver, é preciso tirar os óculos.

O desafio do filme de Weerasethakul: confronta-nos no lugar de espectadores, lembra-nos aquilo que já fomos, nesta e noutras vidas de espectadores menos formatados.

Tim Burton, e o regresso ao planeta dos macacos: "Uma das coisas que gosto deste festival [Cannes] é ver coisas que não vemos habitualmente. Vemos muitos filmes, sabem, o mundo está a ficar cada vez mais pequeno e os filmes tornam-se mais ocidentalizados ou hollywoodizados e com este filme senti que estava a ver [alguma coisa] de outro país, de outra perspectiva. Pelos temas, usando elementos de fantasia de uma forma que nunca tinha visto antes. Por isso senti que era um bonito e estranho sonho que não se vê com frequência."

Isto era Tim Burton, citado pelo "Toronto Star", na conferência de imprensa do Palmarés de Cannes 2010, cujo júri, que ele presidiu, atribuiu a Palma de Ouro a "O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores", de Apichatpong Weerasethakul. Foi daqueles palmarés em que um festival se mostra à frente, daqueles palmarés que, para além de poder fazer bem a um filme, faz bem a um festival - até porque, no caso concreto, elevou para uma fasquia de excelência uma competição que na realidade foi só sofrível - e ao cinema.

E foi um abanão - como aquele outro, em 1999, em que o júri presidido por David Cronenberg se deixou invadir pela correria de "Rosetta", dos irmãos Dardenne, e, para cúmulo dos seus pecados, premiou os não-actores de "L"Humanité", de Bruno Dumont, que tinha irritado muita gente e que ainda ficou com o Grande Prémio do Júri.

Para alguns a selva de Apichatpong foi uma epifania, para outros uma agressão. Aplausos entusiasmados perante o anúncio do júri (aquilo que se ouviu na sala em que a imprensa seguia a cerimónia dos prémios), entusiasmos no "Monde" ou no "Libération" (e no PÚBLICO), um "vi-o duas vezes e aborreci-me duas vezes" ("L"Express", mas cada um aborrece-se com aquilo que pode) e um "grotesca Palma de Ouro" no "El País", título e artigo que sintetizaram, como lhe chamar?, o medo, a intimidação, perante o desconhecido. Uma guerrilha cultural, o "mainstream" feita virgem ofendida pelo "alternativo"? O que quer que cada uma dessas categorias seja...

O último filme de Weerasethakul, "ou o que quer que essa coisa seja", escrevia-se nesse artigo do diário espanhol, seria uma invenção dos festivais, "do ridículo gueto dos festivais". Mas que outra coisa pode ser um festival, de cinema, de música, de teatro, de literatura, de qualquer coisa, a não ser um gueto (mais ou menos ridículo) onde - é isso que se espera - se tacteia o futuro e às vezes se encontra e outras vezes se vê miragens a cada esquina?

Acusações, ao júri, na pessoa do seu presidente, de fascínio pelo "vanguardismo", pelo "rebuscado hermetismo" por uma "poética difícil de identificar", pela "patética linguagem expressiva" de Weerasethakul? Sim, isso tudo. Mas a palavra que aqui interessa é "fascínio". Ou esse é um pecado, na perspectiva de quem se descobre incapaz de aí chegar?

Não passou despercebido o facto de no ano do seu "blockbuster" "Alice no País das Maravilhas" - filme tão normalizado pelos efeitos digitais e pelo 3D... - Tim Burton ter sido seduzido pela estranheza artesanal, ele que em tempos já foi cineasta selvagem e estranho (também de "poética difícil de identificar"?). Foram-lhe feitos juízos de intenções: o americano quis fazer-se "cool" ao dar o prémio ao tailandês, o gesto terá sido calculista (até se escreveu: se ele gosta desses filmes, porque é que não os faz em Hollywood?). Preferimos esta versão, menos cínica embora subjectiva como as outras: os fantasmas (e não só a criatura felpuda saída de uma versão barata de "Star Wars") recordaram a Tim Burton o cineasta que ele já foi, sem CGI e sem 3D. Como quem recorda vidas passadas. O Tio Burton lembrou-se das suas vidas anteriores.

Não é outro o desafio de Apichatpong Weerasethakul com este filme que faz o levantamento da memória de uma cultura específica, a do Noroeste da Tailândia, que (nos) mergulha numa floresta animista - a curta "Letter do Uncle Boonmee", exibida o ano passado no IndieLisboa, foi um preliminar, um agitar da memória para a natureza começar a falar - mas, sobretudo, que nos confronta no lugar universal de espectadores: lembra-nos aquilo que já fomos, nesta e noutras vidas de espectadores.

É uma experiência de estados alterados "O Tio Boonmee que se lembra das suas vidas anteriores", uma reserva de sensações, de energia e de imaginação que o espectador descobre existir (e feliz o que assim se descobre) e que o filme nele vai apurando. Numa entrevista à revista "Cinemascope", Weerasethakul falava da diferença entre as suas instalações e os seus filmes. No primeiro caso, no espaço de uma galeria, espectador e instalação seriam como dois animais que se farejam mutuamente, o espectador estando activo; numa sala de cinema o espectador seria como um "zombie", subjugado e hipnotizado perante o poder "extremo" do filme. Ficámos subjugados perante o que disse o senhor Weerasethakul. E ficámos subjugados perante o filme. O ecrã pode tornar-se "branco", aberto a que projectemos nele as nossas memórias. É experiência física: um filme, uma câmara, os animais e a natureza permitindo esta sensação de estar sujeito à transformação.

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Coisa de "pureza"? Nada disso, como pode ser "puro" o cinema de um arquitecto de formação, tailandês, que estudou cinema em Chicago e que cita Antonioni, Jacques Tourneur, o cinema de ficção científica ou os subprodutos da TV tailandesa?

Coisa "primitiva"? Sim, no sentido - nada elitista, já agora - do cinema como espectáculo que nos deixa boquiabertos de espanto. Como já estivemos. Como já fomos, espectadores menos formatados.

Na verdade, isto é cinema em 3D. Mas neste caso, para o ver, é preciso tirar os óculos.

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