Prisão e tortura – Dois casos

18-12-2009
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Mais do que sofrer eventual prisão, quem se dispunha a lutar contra a ditadura fascista derrotada em 1974 enfrentava o drama maior da tortura e a angústia de saber como lidaria com ela para não fornecer informações à PIDE, que pudessem prejudicar a luta ou levar à prisão de companheiros. Dado adquirido era que a polícia política levava a vítima a situações extremas com torturas físicas e morais e por vezes à convicção de que não escaparia com vida.

A forma como procedia à prisão era muito estudada pela PIDE e estava quase estandardizada. Mas as circunstâncias encarregavam-se de fazer das suas. Eis como procedeu a PIDE/DGS para prender dois membros da Acção Revolucionária Armada, ARA.

Em Fevereiro de 1973 a PIDE concluiu que tinha informações bastantes para prender Manuel Policarpo Guerreiro, 29 anos, casado, pintor da construção civil, a trabalhar em Cascais e a viver em Rebelva, Carcavelos; Carlos Coutinho, 29 anos, casado, jornalista no diário O Século, a viver na Rua Palmira, em Lisboa; António João Eusébio, 30 anos, solteiro, estucador, a viver em Sassoeiros, Carcavelos e Manuel dos Santos Guerreiro, 30 anos, casado, motorista a viver em Abrunheira, Rio de Mouro.

Seguro da capacidade da PIDE para prender num ápice todos estes operacionais da ARA o inspector Adelino da Silva Tinoco assinou a respectiva ordem de prisão no dia 21 de Fevereiro de 1973.

Às dezoito horas e trinta minutos, desse dia, em Cascais à saída do emprego a PIDE prendeu Policarpo Guerreiro e às 21h prendeu em casa Jesuína, sua mulher, que não sabia da prisão do marido e um primo que casualmente ali se encontrava. No dia seguinte prendeu às nove horas da manhã Carlos Coutinho e Antonieta ao saírem de casa para irem ao médico com a sua filha bebé.

Quando os agentes da polícia vão a casa de Manuel dos Santos Guerreiro têm uma surpresa. A casa não tem ninguém. Cercam a casa e esperam. Um, dois, três dias. Demoram a descobrir que a sua presa está na terra, em Grândola, com os pais. No dia 25 às 18 horas, vinha Manuel Guerreio (o apelido é pertinente como verão) com o irmão dum desafio de futebol quando foi interpelado por um sujeito que o agride brutalmente na cara com um murro e lhe aponta uma pistola com ameaças de morte. O irmão não se intimidou e atirou-se ao agressor. Os outros agentes, (sim o sujeito era um agente da PIDE/DGS mas não esteve para apresentações) até ali escondidos, começam a disparar tiros de intimidação. Acorrem os pais a socorrer os filhos e enfrentam os pides armados. Manuel foge para o campo onde está o avô. Os agentes da PIDE perseguem-no de pistola em punho. Manuel enfrenta-os com o pau com que o avô toca o gado. Os pides querem-no vivo e disparam para o lado. É de novo socorrido pelos pais e irmão agora armado de machado. Manuel consegue fugir pelos campos. O irmão, António Guerreiro, tenta fugir numa carrinha que é parada a tiro, é espancado e preso. Os pais, feridos são levados para o hospital.

De madrugada, depois de fugir pelos campos e se afastar muitos quilómetros de Grândola, Manuel conseguiu apanhar uma boleia até ao Barreiro. Percorre então, dia após dia, as casas de pessoas da sua família que o escondem. Mas a PIDE não perdeu tempo, informa-se da locali­zação da família e pro­cura-o nesta zona ao mesmo tempo que envia ordem para todos os postos de fronteira do país para o prenderem. Para todos os postos de fronteira! Quando estudei o caso na Torre do Tombo vi as mensagens de resposta esclarecendo que o tão procurado Manuel dos Santos Guerreiro não passara por aquele posto. Alguns dias depois a PIDE/DGS detecta-o. Ele sente-se seguido e tenta ludibriar a polícia mudando de casa, uma após outra. Casas de tios, cunhados e amigos. Esconde-se no Montijo, Barreiro, Alhos Vedros, Palmela. Neste meio tempo vem a Lisboa ao Campo Pequeno, ao encon­tro que tem combinado com o seu controleiro que ele não sabe que se chama Francisco Miguel nem que é um clandestino já com 22 anos de prisão por Tarrafal, Peniche, Caxias, Aljube, muito teimoso a ponto de conseguir que o seu partido o autorizasse a regressar a Portugal e agora à luta armada. Francisco Miguel não apareceu, nem ao segundo encontro de recurso, oito dias depois, como estava estabe­lecido por prin­cípio. Sabia que o terreno estava demasiado movediço para meter pés a caminho tão incerto. É no regresso deste encontro frustrado que Manuel Guerreiro, em 18 de Março, é preso, conforme consta na participação do agente José Bernardo Fonseca que o prendeu mas onde não consta desde quando a polícia o seguia nem quando o encontrava ou o perdia.

Manuel Guerreiro foi torturado até à loucura. Felizmente momentânea. O costume. O sono, a estátua, pancada, e a chantagem com o filho com 4 ou 5 anos que insinuavam estar a torturar.

O 25 de Abril de 1974 salvou-o de uma longa pena e hoje é comerciante em Grândola, pai e avô com muitas histórias para contar.

Com Amado Silva, estudante do último ano de Agronomia em Lisboa, ex-oficial miliciano ranger, corajoso, forte como um toiro e «louco» daquela loucura feita de ousadia e aventurosas peripécias de estudante. Uma vez encontrei-lhe no quarto alugado um candeeiro eléctrico da iluminação pública com aquela coluna metálica canelada e verde até ao tecto. Era um excelente companheiro mais ou menos ligado ao PCP, mais ou menos anarca, que eu não conseguia meter nos varais dos cânones ideológicos.

A prisão foi assim. Os pides aguardavam escondidos no escuro da escada do prédio antigo e sem luz, em Alcântara, que o Amado Ventura da Silva entrasse em casa. Quando sem aviso agarram o Amado – só quem não o conhece – ele dá luta, socos e gritos, inutilizando os esforços da PIDE para que tudo não desse nas vistas. A um vizinho que sobe pede ajuda – «que me estão a assaltar!» – o vizinho ajuda mas os pides, sem vergonha, dizem isso mesmo, que são pides e o vizi­nho ala, pés para que vos quero, foge escadas acima.

Depois de bem acondicionado e algemado, o nosso Ventura da Silva é metido no banco traseiro de um carro entre dois agentes. À frente vai outro agente além do motorista. Mais um carro atrás e outro à frente. Arrancam em velocidade. Mas não para a sede da PIDE. O gajo é rebelde, tem a mania que é forte, «já amoleces!!», pensou o chefe de brigada. Entre as nove e as duas da manhã, revezando-se, viajaram-no pelas matas de Monsanto e outros arredores arborizados ou baldios, simulando procurar local adequado para o abater. «Julgas que isto é como com os teus camaradas dos papéis, estás muito enganado. Terroristas de arma na mão são tratados de igual modo.» Conversavam: «Damos-lhe um tiro na cabeça ali para o Estádio Nacional. Não, ainda é cedo, pode passar alguém. É melhor dar-lhe um tiro e atirá-lo do Guincho para o mar.»

No dia seguinte a sua mulher, a Isabel Sequeira e o Mário Abrantes, incendiaram os ânimos na Associação de Estudantes de Agronomia com a notícia. Os M-L (marxislas-leninistas) seus amigos mobilizaram os estudantes e vá, de cartazes em punho, reclamar à PIDE a libertação do colega. Os pides perceberam que os mais assanhados a defender o colega eram os maoistas. Então informaram-nos que ele estava preso mas não era por actividades estudantis mas por ser um terrorista da ARA, do PCP! Balde de água fria. As opiniões dividiam-se. Uns consideravam-se enganados. Os estandartes baixaram, a solidariedade à Isabel minguou e nos dias seguintes apareceram na Associação de Estudantes papéis a denunciar a traição à classe operária do social-fascista Amado Ventura da Silva. Para os maoistas os comunistas do PCP eram social-fascistas e para estes os maoistas eram agentes da CIA! E assim… a PIDE/DGS folgava.

Amado tornou-se um muito considerado especialista na fruticultura, em especial da pêra rocha e trabalhou muitos anos na estação agrária de Caldas da Rainha. Pai de dois filhos faleceu recentemente.

(Na foto, um grupo de operacionais e apoiantes da ARA, ente os quais Manuel Guerreiro e Amado Silva.)

Mais do que sofrer eventual prisão, quem se dispunha a lutar contra a ditadura fascista derrotada em 1974 enfrentava o drama maior da tortura e a angústia de saber como lidaria com ela para não fornecer informações à PIDE, que pudessem prejudicar a luta ou levar à prisão de companheiros. Dado adquirido era que a polícia política levava a vítima a situações extremas com torturas físicas e morais e por vezes à convicção de que não escaparia com vida.

A forma como procedia à prisão era muito estudada pela PIDE e estava quase estandardizada. Mas as circunstâncias encarregavam-se de fazer das suas. Eis como procedeu a PIDE/DGS para prender dois membros da Acção Revolucionária Armada, ARA.

Em Fevereiro de 1973 a PIDE concluiu que tinha informações bastantes para prender Manuel Policarpo Guerreiro, 29 anos, casado, pintor da construção civil, a trabalhar em Cascais e a viver em Rebelva, Carcavelos; Carlos Coutinho, 29 anos, casado, jornalista no diário O Século, a viver na Rua Palmira, em Lisboa; António João Eusébio, 30 anos, solteiro, estucador, a viver em Sassoeiros, Carcavelos e Manuel dos Santos Guerreiro, 30 anos, casado, motorista a viver em Abrunheira, Rio de Mouro.

Seguro da capacidade da PIDE para prender num ápice todos estes operacionais da ARA o inspector Adelino da Silva Tinoco assinou a respectiva ordem de prisão no dia 21 de Fevereiro de 1973.

Às dezoito horas e trinta minutos, desse dia, em Cascais à saída do emprego a PIDE prendeu Policarpo Guerreiro e às 21h prendeu em casa Jesuína, sua mulher, que não sabia da prisão do marido e um primo que casualmente ali se encontrava. No dia seguinte prendeu às nove horas da manhã Carlos Coutinho e Antonieta ao saírem de casa para irem ao médico com a sua filha bebé.

Quando os agentes da polícia vão a casa de Manuel dos Santos Guerreiro têm uma surpresa. A casa não tem ninguém. Cercam a casa e esperam. Um, dois, três dias. Demoram a descobrir que a sua presa está na terra, em Grândola, com os pais. No dia 25 às 18 horas, vinha Manuel Guerreio (o apelido é pertinente como verão) com o irmão dum desafio de futebol quando foi interpelado por um sujeito que o agride brutalmente na cara com um murro e lhe aponta uma pistola com ameaças de morte. O irmão não se intimidou e atirou-se ao agressor. Os outros agentes, (sim o sujeito era um agente da PIDE/DGS mas não esteve para apresentações) até ali escondidos, começam a disparar tiros de intimidação. Acorrem os pais a socorrer os filhos e enfrentam os pides armados. Manuel foge para o campo onde está o avô. Os agentes da PIDE perseguem-no de pistola em punho. Manuel enfrenta-os com o pau com que o avô toca o gado. Os pides querem-no vivo e disparam para o lado. É de novo socorrido pelos pais e irmão agora armado de machado. Manuel consegue fugir pelos campos. O irmão, António Guerreiro, tenta fugir numa carrinha que é parada a tiro, é espancado e preso. Os pais, feridos são levados para o hospital.

De madrugada, depois de fugir pelos campos e se afastar muitos quilómetros de Grândola, Manuel conseguiu apanhar uma boleia até ao Barreiro. Percorre então, dia após dia, as casas de pessoas da sua família que o escondem. Mas a PIDE não perdeu tempo, informa-se da locali­zação da família e pro­cura-o nesta zona ao mesmo tempo que envia ordem para todos os postos de fronteira do país para o prenderem. Para todos os postos de fronteira! Quando estudei o caso na Torre do Tombo vi as mensagens de resposta esclarecendo que o tão procurado Manuel dos Santos Guerreiro não passara por aquele posto. Alguns dias depois a PIDE/DGS detecta-o. Ele sente-se seguido e tenta ludibriar a polícia mudando de casa, uma após outra. Casas de tios, cunhados e amigos. Esconde-se no Montijo, Barreiro, Alhos Vedros, Palmela. Neste meio tempo vem a Lisboa ao Campo Pequeno, ao encon­tro que tem combinado com o seu controleiro que ele não sabe que se chama Francisco Miguel nem que é um clandestino já com 22 anos de prisão por Tarrafal, Peniche, Caxias, Aljube, muito teimoso a ponto de conseguir que o seu partido o autorizasse a regressar a Portugal e agora à luta armada. Francisco Miguel não apareceu, nem ao segundo encontro de recurso, oito dias depois, como estava estabe­lecido por prin­cípio. Sabia que o terreno estava demasiado movediço para meter pés a caminho tão incerto. É no regresso deste encontro frustrado que Manuel Guerreiro, em 18 de Março, é preso, conforme consta na participação do agente José Bernardo Fonseca que o prendeu mas onde não consta desde quando a polícia o seguia nem quando o encontrava ou o perdia.

Manuel Guerreiro foi torturado até à loucura. Felizmente momentânea. O costume. O sono, a estátua, pancada, e a chantagem com o filho com 4 ou 5 anos que insinuavam estar a torturar.

O 25 de Abril de 1974 salvou-o de uma longa pena e hoje é comerciante em Grândola, pai e avô com muitas histórias para contar.

Com Amado Silva, estudante do último ano de Agronomia em Lisboa, ex-oficial miliciano ranger, corajoso, forte como um toiro e «louco» daquela loucura feita de ousadia e aventurosas peripécias de estudante. Uma vez encontrei-lhe no quarto alugado um candeeiro eléctrico da iluminação pública com aquela coluna metálica canelada e verde até ao tecto. Era um excelente companheiro mais ou menos ligado ao PCP, mais ou menos anarca, que eu não conseguia meter nos varais dos cânones ideológicos.

A prisão foi assim. Os pides aguardavam escondidos no escuro da escada do prédio antigo e sem luz, em Alcântara, que o Amado Ventura da Silva entrasse em casa. Quando sem aviso agarram o Amado – só quem não o conhece – ele dá luta, socos e gritos, inutilizando os esforços da PIDE para que tudo não desse nas vistas. A um vizinho que sobe pede ajuda – «que me estão a assaltar!» – o vizinho ajuda mas os pides, sem vergonha, dizem isso mesmo, que são pides e o vizi­nho ala, pés para que vos quero, foge escadas acima.

Depois de bem acondicionado e algemado, o nosso Ventura da Silva é metido no banco traseiro de um carro entre dois agentes. À frente vai outro agente além do motorista. Mais um carro atrás e outro à frente. Arrancam em velocidade. Mas não para a sede da PIDE. O gajo é rebelde, tem a mania que é forte, «já amoleces!!», pensou o chefe de brigada. Entre as nove e as duas da manhã, revezando-se, viajaram-no pelas matas de Monsanto e outros arredores arborizados ou baldios, simulando procurar local adequado para o abater. «Julgas que isto é como com os teus camaradas dos papéis, estás muito enganado. Terroristas de arma na mão são tratados de igual modo.» Conversavam: «Damos-lhe um tiro na cabeça ali para o Estádio Nacional. Não, ainda é cedo, pode passar alguém. É melhor dar-lhe um tiro e atirá-lo do Guincho para o mar.»

No dia seguinte a sua mulher, a Isabel Sequeira e o Mário Abrantes, incendiaram os ânimos na Associação de Estudantes de Agronomia com a notícia. Os M-L (marxislas-leninistas) seus amigos mobilizaram os estudantes e vá, de cartazes em punho, reclamar à PIDE a libertação do colega. Os pides perceberam que os mais assanhados a defender o colega eram os maoistas. Então informaram-nos que ele estava preso mas não era por actividades estudantis mas por ser um terrorista da ARA, do PCP! Balde de água fria. As opiniões dividiam-se. Uns consideravam-se enganados. Os estandartes baixaram, a solidariedade à Isabel minguou e nos dias seguintes apareceram na Associação de Estudantes papéis a denunciar a traição à classe operária do social-fascista Amado Ventura da Silva. Para os maoistas os comunistas do PCP eram social-fascistas e para estes os maoistas eram agentes da CIA! E assim… a PIDE/DGS folgava.

Amado tornou-se um muito considerado especialista na fruticultura, em especial da pêra rocha e trabalhou muitos anos na estação agrária de Caldas da Rainha. Pai de dois filhos faleceu recentemente.

(Na foto, um grupo de operacionais e apoiantes da ARA, ente os quais Manuel Guerreiro e Amado Silva.)

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