A fortuna, o azar e o reflexo*

28-12-2009
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A fortuna, o azar e o reflexo*

Podem as criancinhas portuguesas estar descansadas que não serão mais sujeitas àquelas traumáticas experiências de as máquinas de bolas não darem sempre chocolates de igual valor. Se o “cliente não sabe o que vai sair” estamos, segundo a ASAE, perante um jogo de fortuna e azar. Nem mais. O desconchavo deste tipo de argumentação é enorme e apetece perguntar: donde vieram estas almas? Nunca fizeram furos nas barracas da Feira Popular? Não sabem que a graça resultava e resulta exactamente de poder sair o chocolate maior? Ou de não sair chocolate algum?

(fotos http://baroesdaseviseu.blogspot.com/)

Saber, sabem mas sabem também que o poder deixou de ser uma questão de ideologia para se tornar num exercício de paternalismo. Os governos não governam. Cuidam de nós. A ASAE não inventa regulamentos, simplesmente aplica com especial entusiasmo alguns dos milhares de regulamentos aprovados pelos nossos governos, regulamentos esses que só não nos tornaram ainda a vida de todo impossível porque o marasmo vai imperando nos serviços públicos. Mas esses regulamentos aí estão à espera que um qualquer António Nunes lhes pegue.

Como se tal não fosse já suficiente todos os dias alguém reivindica ainda mais um regulamento. Por exemplo, a propósito da violência nas escolas, o presidente da Confederação Nacional de Associações de Pais (CONFAP), Albino Almeida, não fala de filhos nem de pais, apesar de oficialmente representar estes últimos e de o próprio Ministério da Educação contribuir com dezenas de milhares de euros para a actividade em prol dos pais que a CONFAP promoverá. O presidente da CONFAP fala sim de televisão – “Os ídolos de hoje não são os pais nem os professores. São aqueles que, numa novela, marcam relações sexuais por telemóvel dentro de um colégio privado” – para logo em seguida exigir que o Estado faça uma “correcta avaliação” do alvará dos canais de televisão e que o retire “se preciso for”. Naturalmente a CONFAP e não sei quantos outros seus clones integrariam o organismo que faria a “correcta avaliação” da programação das televisões. E assim o senhor Albino Almeida poderia dormir descansado: os seus filhos fariam dele um ídolo porque os episódios dos “Morangos com Açúcar” seriam devidamente supervisionados. Claro que em seguida ter-se-ia de fazer a “correcta avaliação” da programação das rádios, o controlo da internet, das letras das canções… tudo para que o senhor Albino Almeida não tivesse de exercer directamente a sua autoridade de pai e continuasse na sua regulaçãozinha.

Mas se é lastimável que o presidente da CONFAP reivindique que o Estado intervenha (ainda mais!) nas televisões, absolutamente preocupantes são as declarações do presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Noronha de Nascimento. Quando interrogado sobre a violência nas escolas, o presidente do STJ também optou por não falar da sua área de poder e saber preferindo sim fazer considerandos sobre a pobreza, a riqueza e a distribuição da população no território nacional: “Se há gente a mais no litoral, se não há emprego, se fecha a indústria, o que é que a gente nova vai fazer? Estamos a falar de gente nova, porque não são as pessoas de 50 ou 60 anos que estão a criar problemas. O que vão fazer as pessoas que estão a começar a vida? (…) A escola é um reflexo disto. A indisciplina vem de fora da escola. As escolas problemáticas são aquelas cujos alunos vêm de bairros problemáticos. Não são os alunos problemáticos das escolas que vão para os bairros. O problema da escola não é autónomo.”

Mais misteriosa do que a incerta data em que os pais foram os ídolos dos filhos referida por Albino Almeida é esta “gente nova” que estando a “mais no litoral” compensa o desemprego batendo nos professores. Em quantos casos de violência nas escolas é que os protagonistas vinham de famílias com problemas económicos? Desde quando é que os filhos dos desempregados são “problemáticos”? Onde estão os estudos que o provam?

O Estado socialista que nunca fomos ganhou fastio ao povo. Se o mar avança pelo litoral a culpa é do turismo de massas. Se as escolas públicas ensinam mal e são incapazes de impor disciplina a culpa é da massificação do ensino. Se o comércio dito tradicional agoniza a culpa é das massas que preferem endividar-se nos centros comerciais das periferias.

As massas não quiseram acompanhar o esforço revolucionário das élites mas estas vingaram-se bem da desfeita: acabaram os cursos, vestiram-se a rigor e ocuparam os lugares que há tanto esperavam por eles na administração pública e na política. Desde então não mais cessaram de produzir regulamentos supostamente apolíticos mas que se imiscuem mais na vida do povo do que qualquer constituição o fez e que transformaram os cidadãos numa espécie de criança-utente que tem o direito e o dever de esperar que o pai-governo lhe dê subsídios ou contratos, casinhas ou empreitadas, escolas ou hospitais. Os regulamentos evitam que caiamos em tentação, no dia a dia não existe mal nem bem, pois feita a devida ressalva à nossa condição de contribuintes onde todos somos presumíveis delinquentes, não passamos dum reflexo, como explica Noronha de Nascimento.

Os donos dos regulamentos dizem-nos quando começam os saldos, qual o fim a que se pode destinar um edifício, arrogam-se o direito de saber quanto custa o vestida da noiva e o que se comeu no copo-de-água ( a Páscoa e o Ano Novo ficam de fora do interrogatório até quando?) e agora nem os brindes de chocolate escapam. Porque não se sabe o que vai sair – dizem. Pois é, a vida era isso: era não sabermos o que ia sair. Dos cursos, das paixões, dos filhos, dos trabalhos… não sabíamos de facto o que ia sair. E acreditámos que isso era a liberdade.

*PÚBLICO, 8 de Abril

A fortuna, o azar e o reflexo*

Podem as criancinhas portuguesas estar descansadas que não serão mais sujeitas àquelas traumáticas experiências de as máquinas de bolas não darem sempre chocolates de igual valor. Se o “cliente não sabe o que vai sair” estamos, segundo a ASAE, perante um jogo de fortuna e azar. Nem mais. O desconchavo deste tipo de argumentação é enorme e apetece perguntar: donde vieram estas almas? Nunca fizeram furos nas barracas da Feira Popular? Não sabem que a graça resultava e resulta exactamente de poder sair o chocolate maior? Ou de não sair chocolate algum?

(fotos http://baroesdaseviseu.blogspot.com/)

Saber, sabem mas sabem também que o poder deixou de ser uma questão de ideologia para se tornar num exercício de paternalismo. Os governos não governam. Cuidam de nós. A ASAE não inventa regulamentos, simplesmente aplica com especial entusiasmo alguns dos milhares de regulamentos aprovados pelos nossos governos, regulamentos esses que só não nos tornaram ainda a vida de todo impossível porque o marasmo vai imperando nos serviços públicos. Mas esses regulamentos aí estão à espera que um qualquer António Nunes lhes pegue.

Como se tal não fosse já suficiente todos os dias alguém reivindica ainda mais um regulamento. Por exemplo, a propósito da violência nas escolas, o presidente da Confederação Nacional de Associações de Pais (CONFAP), Albino Almeida, não fala de filhos nem de pais, apesar de oficialmente representar estes últimos e de o próprio Ministério da Educação contribuir com dezenas de milhares de euros para a actividade em prol dos pais que a CONFAP promoverá. O presidente da CONFAP fala sim de televisão – “Os ídolos de hoje não são os pais nem os professores. São aqueles que, numa novela, marcam relações sexuais por telemóvel dentro de um colégio privado” – para logo em seguida exigir que o Estado faça uma “correcta avaliação” do alvará dos canais de televisão e que o retire “se preciso for”. Naturalmente a CONFAP e não sei quantos outros seus clones integrariam o organismo que faria a “correcta avaliação” da programação das televisões. E assim o senhor Albino Almeida poderia dormir descansado: os seus filhos fariam dele um ídolo porque os episódios dos “Morangos com Açúcar” seriam devidamente supervisionados. Claro que em seguida ter-se-ia de fazer a “correcta avaliação” da programação das rádios, o controlo da internet, das letras das canções… tudo para que o senhor Albino Almeida não tivesse de exercer directamente a sua autoridade de pai e continuasse na sua regulaçãozinha.

Mas se é lastimável que o presidente da CONFAP reivindique que o Estado intervenha (ainda mais!) nas televisões, absolutamente preocupantes são as declarações do presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Noronha de Nascimento. Quando interrogado sobre a violência nas escolas, o presidente do STJ também optou por não falar da sua área de poder e saber preferindo sim fazer considerandos sobre a pobreza, a riqueza e a distribuição da população no território nacional: “Se há gente a mais no litoral, se não há emprego, se fecha a indústria, o que é que a gente nova vai fazer? Estamos a falar de gente nova, porque não são as pessoas de 50 ou 60 anos que estão a criar problemas. O que vão fazer as pessoas que estão a começar a vida? (…) A escola é um reflexo disto. A indisciplina vem de fora da escola. As escolas problemáticas são aquelas cujos alunos vêm de bairros problemáticos. Não são os alunos problemáticos das escolas que vão para os bairros. O problema da escola não é autónomo.”

Mais misteriosa do que a incerta data em que os pais foram os ídolos dos filhos referida por Albino Almeida é esta “gente nova” que estando a “mais no litoral” compensa o desemprego batendo nos professores. Em quantos casos de violência nas escolas é que os protagonistas vinham de famílias com problemas económicos? Desde quando é que os filhos dos desempregados são “problemáticos”? Onde estão os estudos que o provam?

O Estado socialista que nunca fomos ganhou fastio ao povo. Se o mar avança pelo litoral a culpa é do turismo de massas. Se as escolas públicas ensinam mal e são incapazes de impor disciplina a culpa é da massificação do ensino. Se o comércio dito tradicional agoniza a culpa é das massas que preferem endividar-se nos centros comerciais das periferias.

As massas não quiseram acompanhar o esforço revolucionário das élites mas estas vingaram-se bem da desfeita: acabaram os cursos, vestiram-se a rigor e ocuparam os lugares que há tanto esperavam por eles na administração pública e na política. Desde então não mais cessaram de produzir regulamentos supostamente apolíticos mas que se imiscuem mais na vida do povo do que qualquer constituição o fez e que transformaram os cidadãos numa espécie de criança-utente que tem o direito e o dever de esperar que o pai-governo lhe dê subsídios ou contratos, casinhas ou empreitadas, escolas ou hospitais. Os regulamentos evitam que caiamos em tentação, no dia a dia não existe mal nem bem, pois feita a devida ressalva à nossa condição de contribuintes onde todos somos presumíveis delinquentes, não passamos dum reflexo, como explica Noronha de Nascimento.

Os donos dos regulamentos dizem-nos quando começam os saldos, qual o fim a que se pode destinar um edifício, arrogam-se o direito de saber quanto custa o vestida da noiva e o que se comeu no copo-de-água ( a Páscoa e o Ano Novo ficam de fora do interrogatório até quando?) e agora nem os brindes de chocolate escapam. Porque não se sabe o que vai sair – dizem. Pois é, a vida era isso: era não sabermos o que ia sair. Dos cursos, das paixões, dos filhos, dos trabalhos… não sabíamos de facto o que ia sair. E acreditámos que isso era a liberdade.

*PÚBLICO, 8 de Abril

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