PALAVROSSAVRVS REX: MEU AVÔ ANDARILHO

24-12-2009
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Noventa e um anos, trinta e três dos quais diante de mim.Hoje abri aquela porta lá de casa e meu ser pressentia aquele odor de décadas que deixavas como uma assinatura de suor,na roupa dependurada atrás, depois nas paredes, depois nas coisas, por todo aquele espaço que é exíguo ali.Ali, onde pousavas, com a pátina da tua pele em pó viático, em sal,o teu eterno boné transpirado,o teu transpirado casaco.Resumos-roupa da tua vida, uma vida em girassol,saudando muito todas as pessoas.Passaram quatro anos desde que consentiste à morteque te tomasse.Nunca conheci ninguém tão rijo que dela escarnecesse tanto como tu.Tanta saúde, energia, resiliência,eram em ti troça pura à morte que foi chegando para os outros à tua volta.Ela, que veio e foi levando a tua geração e outras gerações,numa generosidade de pai-natal, desta vez mortal, pai-mortal,enquanto meditabundo as sepultavas.Ela, ceifando sempre, movimento de ceifa igual ao movimento semeador,a todos, mas nunca a ti.Quantas lágrimas, quanta saudade, junto às lagesdos que, imensos, te precederam!O teu meio de transporte eram essas pernas:caminhando, caminhando muito todos os dias,cheio de ritmo e leveza,percorrendo distâncias extraordinárias numa idade extraordinária,peregrinavas por fora o Longínquo para dentro de ti.Como quero imitar-te nesse uso das pernasassim tão mercuriano e romeiro!Lembro por isso o que fazias com o teu corpo: movimento! Em evasão do labirinto dos ses, no teu passado, não importa: movimento.Eu sei que celebravas a tua vidae o evangelho de teres sempre razão no esdrúxulo campeonato invisível do méritocomo o equívoco de quem convoca razões para ser amado.Tinhas uma vociferada razão indiscutível como um cilindro que passa o asfalto-família a liso.Não importa.Era do teu odor marcado, de décadas, por detrás daquela porta, que eu falava, meu avô, odor hoje mais atenuado e imperceptível, mas ainda lá,sinal do teu vôo liberto em glóriapara acenos infinitos a quem passa,num mesmo mariposa pairar,num mesmo incandear gaivota,ante a luz irresistível de haver tantas PessoasAlém como te houvera aquém-morte.


Noventa e um anos, trinta e três dos quais diante de mim.Hoje abri aquela porta lá de casa e meu ser pressentia aquele odor de décadas que deixavas como uma assinatura de suor,na roupa dependurada atrás, depois nas paredes, depois nas coisas, por todo aquele espaço que é exíguo ali.Ali, onde pousavas, com a pátina da tua pele em pó viático, em sal,o teu eterno boné transpirado,o teu transpirado casaco.Resumos-roupa da tua vida, uma vida em girassol,saudando muito todas as pessoas.Passaram quatro anos desde que consentiste à morteque te tomasse.Nunca conheci ninguém tão rijo que dela escarnecesse tanto como tu.Tanta saúde, energia, resiliência,eram em ti troça pura à morte que foi chegando para os outros à tua volta.Ela, que veio e foi levando a tua geração e outras gerações,numa generosidade de pai-natal, desta vez mortal, pai-mortal,enquanto meditabundo as sepultavas.Ela, ceifando sempre, movimento de ceifa igual ao movimento semeador,a todos, mas nunca a ti.Quantas lágrimas, quanta saudade, junto às lagesdos que, imensos, te precederam!O teu meio de transporte eram essas pernas:caminhando, caminhando muito todos os dias,cheio de ritmo e leveza,percorrendo distâncias extraordinárias numa idade extraordinária,peregrinavas por fora o Longínquo para dentro de ti.Como quero imitar-te nesse uso das pernasassim tão mercuriano e romeiro!Lembro por isso o que fazias com o teu corpo: movimento! Em evasão do labirinto dos ses, no teu passado, não importa: movimento.Eu sei que celebravas a tua vidae o evangelho de teres sempre razão no esdrúxulo campeonato invisível do méritocomo o equívoco de quem convoca razões para ser amado.Tinhas uma vociferada razão indiscutível como um cilindro que passa o asfalto-família a liso.Não importa.Era do teu odor marcado, de décadas, por detrás daquela porta, que eu falava, meu avô, odor hoje mais atenuado e imperceptível, mas ainda lá,sinal do teu vôo liberto em glóriapara acenos infinitos a quem passa,num mesmo mariposa pairar,num mesmo incandear gaivota,ante a luz irresistível de haver tantas PessoasAlém como te houvera aquém-morte.

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