O adeus mais silencioso do desporto

06-02-2011
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Nunca mais haverá um dorsal com o nome Lance Armstrong no pelotão. Ontem, no Tour Down Under, fechou-se um ciclo e uma era no ciclismo mundial com a despedida do "Boss"

Ontem acabou uma era no ciclismo mundial. Durante anos Lance Armstrong foi sinónimo de vitórias, de histórias, de ciclismo. Ontem despediu-se em silêncio, sem declarações aos meios de comunicação social e sem a honra do primeiro adeus. Com o seu adeus fica um vazio num pelotão que se alimentou dos seus sete Tours - um recorde que para já parece inalcançável -, da sua luta contra o cancro, das suspeitas relativas ao recurso ao doping.

De Plano para o pelotão?Um todo-o-terreno promissor

Plano, Texas, 18 de Setembro de 1971. Começa aí a história que contamos nas próximas linhas. Começa aí, num miúdo franzino, criado pela mãe solteira, que descobriu que as vitórias no triatlo só aconteciam porque era superior a todos os outros quando se tratava de andar em cima da bicicleta, o percurso de um dos maiores ciclistas (ciclista não, desportista) da história do desporto.

Cedo se percebeu que o jovem Armstrong podia dar muito ao ciclismo: houve títulos nacionais, houve uma camisola arco-íris de campeão mundial, houve vitórias em etapas do Tour, houve duas clássicas (Clássica de San Sebastián e Flèche Wallonne), houve um número um no ranking mundial da União Ciclista Internacional (UCI). E, depois, houve Outubro de 1996 e um ponto de interrogação gigante a pairar na carreira e na vida do ciclista que parecia destinado a ser um dos poucos eleitos a conseguir acumular clássicas atrás de clássicas, etapas atrás de etapas, títulos mundiais atrás de títulos mundiais.

"O melhor que aconteceu"?A luta contra o cancro

"Se redigido por Hollywood, o guião da minha vida seria rejeitado por ser um vulgar melodrama: uma doença mortal atinge um promissor atleta. Apesar das tremendamente escassas probabilidades de sobrevivência, ele consegue não só derrotar a "aflição", como voltar à sua modalidade e ganhar o seu prémio máximo, não apenas uma vez, mas sete, um recorde." E é assim, na primeira pessoa, numa frase introdutória da sua biografia no seupessoal, que Armstrong descreve aquilo que viveu e sobreviveu naqueles 15 longos meses que mediaram entre a descoberta do cancro nos testículos (em Outubro de 1996) e o regresso ao pelotão com as cores da US Postal.

"Foi a melhor coisa que me aconteceu", mantém até hoje o norte-americano sobre o cancro que mudou o seu mundo - vencer, vencer e vencer passaram a ser as únicas palavras conhecidas pelo homem que sobreviveu, apesar de uma taxa de sobrevivência inferior a 40 por cento - e o mundo do desporto.

Revolução Armstrong?Uma nova era no ciclismo

A doença revolucionou a personalidade e as capacidades velocipédicas de Armstrong e Armstrong revoluciou o ciclismo: "Revolucionámos [ele e os colegas da US Postal, orientada por Johan Bruyneel] a maneira de treinar, a força mental de uma equipa, a forma de preparar as provas e de disputá-las, assim como a técnica de vender o desporto."

Falta de humildade? Não. Foram sete Tours e poderiam até ser mais se ele, cansado das exigências do ciclismo, das polémicas que submergiram a modalidade, de não ter adversários à altura, não tivesse decidido dizer "adeus" em plenos Campos Elísios, de amarelo vestido. Até aí, o ciclismo era uma luta individual, a partir daí passou a ser a modalidade individual mais colectiva, com treinos topo de gama (desde túneis de vento a estágios ao estilo Iron Man), planos de ataque delineados ao milímetro, intervenções cirurgicamente estudadas em etapas importantes, mind games e utilizações descaradas da ingenuidade da imprensa.

"A nossa relação é nula"?Rivalidades vs. inimizades

"A minha relação com o Lance Armstrong é nula" - as palavras são de Alberto Contador, o "miúdo" destemido que se atreveu a desafiar o "Boss" e, pior ainda, roubar-lhe o primeiro lugar do pódio em Paris no seu Tour de regresso. Mas o conflito com o espanhol, que acabou com o desmembramento da Astana e com uma dolorosamente longa troca de acusações entre os dois, é apenas o mais visível (culpa da memória) de uma longa lista de inimizades e rivalidades de Armstrong.

Façamos aqui uma distinção: o heptacampeão teve rivais (Jan Ullrich, Alex Zülle ou Joseba Beloki) e inimigos. Além de Contador, também Marco Pantani (sempre implacável nas críticas a Armstrong, mesmo quando era claramente inferior na estrada), Greg LeMond (levantou suspeitas quanto à legitimidade das vitórias do seu compatriota) ou Floyd Landis (tem-se entretido com uma campanha planetária de descredibilização do mito) fazem parte do lote de "não desejáveis".

"Le mensonge"?O fantasma do doping

Dúvidas sempre houve, mas nunca ninguém conseguiu provar que "o ciclista mais controlado de sempre" tenha recorrido aoao longo da sua carreira. E não se pode dizer que não tenham tentado. Veja-se o exemplo do: a campanha contra Armstrong já ia longa (começou no dia em que o norte-americano provocou o orgulho francês e resolveu tornar sua a prova nacional dos franceses) quando, a 23 Agosto de 2005, o desportivo mais vendido em França decidiu fazer uma manchete com o título "" ("a mentira Armstrong", em tradução livre). O jornal francês é apenas o mais duradouro exemplo de caixa de Pandora dos segredos de dopagem do "Boss". Primeiro foram os rastos de EPO nos testes realizadosàs amostras de sangue do seu primeiro Tour, depois foram as relações com o médico italiano Michele Ferrari e, finalmente, os "restos" suspeitos deixados pela Astana no Tour 2009.

Mas a "perseguição" dos franceses é apenas o topo do icebergue. Nas últimas semanas multiplicaram-se as descobertas, as revelações, os testemunhos, todos eles a apontarem o dedo aos métodos ilícitos supostamente usados pelo norte-americano ao longo da sua carreira.

Ciclista? Não, estrela?De Bush a Crow

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Lance Armstrong é um "tipo" carismático - diz quem esteve na única prova que correu em Portugal, a Volta ao Algarve de 2004, que o entusiasmo que envolvia o agora ex-ciclista só tem comparação com o que é provocado pelas mega-estrelas do futebol -, cerebral, directo e inteligente. Antes dele, o ciclismo era uma modalidade europeia, de impacto reduzido, seguida apenas por aqueles que faziam do ciclismo uma paixão. Depois dele, o ciclismo passou a ser um desporto planetário, alvo da atenção mediática não só de meios especializados e generalistas, mas também das revistas sociais e dos principais jornais de todo o mundo. "Eu sigo a Volta a França tanto quanto qualquer outro norte-americano... Só soube que a prova existia por causa do sucesso que o Lance Armstrong teve lá", revelou Michael Jordan. E como o antigo basquetebolista há muita gente.

Mérito dele, do homem que George W. Bush fez questão de receber na Casa Branca, que chegou a pensar numa carreira na política, que fez capas de revistas cor-de-rosa com os seus romances com Sheryl Crow e Kate Hudson, que tem cinco filhos, que fez do Twitter uma moda do desporto mundial e que pretende dedicar-se à BTT, ao triatlo e à sua fundação.

"Está feito"?O último adeus

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Na hora da despedida, esperava-se tudo (uma conferência de imprensa com centenas de jornalistas, declarações bombásticas, cerimónias de homenagem) menos isto - e isto é o adeus mais silencioso de um dos heróis com mais impacto na história do desporto. Ontem, enquanto Cameron Meyer festejava a vitória no Tour Down Under, a carreira de Armstrong acabava com uma curta declaração no Twitter. "Está feito. Obrigado por terem vindo para a estrada apoiar esta grande corrida", escreveu mal desceu da bicicleta pela última vez.

Nunca mais haverá um dorsal com o nome Lance Armstrong no pelotão. Ontem, no Tour Down Under, fechou-se um ciclo e uma era no ciclismo mundial com a despedida do "Boss"

Ontem acabou uma era no ciclismo mundial. Durante anos Lance Armstrong foi sinónimo de vitórias, de histórias, de ciclismo. Ontem despediu-se em silêncio, sem declarações aos meios de comunicação social e sem a honra do primeiro adeus. Com o seu adeus fica um vazio num pelotão que se alimentou dos seus sete Tours - um recorde que para já parece inalcançável -, da sua luta contra o cancro, das suspeitas relativas ao recurso ao doping.

De Plano para o pelotão?Um todo-o-terreno promissor

Plano, Texas, 18 de Setembro de 1971. Começa aí a história que contamos nas próximas linhas. Começa aí, num miúdo franzino, criado pela mãe solteira, que descobriu que as vitórias no triatlo só aconteciam porque era superior a todos os outros quando se tratava de andar em cima da bicicleta, o percurso de um dos maiores ciclistas (ciclista não, desportista) da história do desporto.

Cedo se percebeu que o jovem Armstrong podia dar muito ao ciclismo: houve títulos nacionais, houve uma camisola arco-íris de campeão mundial, houve vitórias em etapas do Tour, houve duas clássicas (Clássica de San Sebastián e Flèche Wallonne), houve um número um no ranking mundial da União Ciclista Internacional (UCI). E, depois, houve Outubro de 1996 e um ponto de interrogação gigante a pairar na carreira e na vida do ciclista que parecia destinado a ser um dos poucos eleitos a conseguir acumular clássicas atrás de clássicas, etapas atrás de etapas, títulos mundiais atrás de títulos mundiais.

"O melhor que aconteceu"?A luta contra o cancro

"Se redigido por Hollywood, o guião da minha vida seria rejeitado por ser um vulgar melodrama: uma doença mortal atinge um promissor atleta. Apesar das tremendamente escassas probabilidades de sobrevivência, ele consegue não só derrotar a "aflição", como voltar à sua modalidade e ganhar o seu prémio máximo, não apenas uma vez, mas sete, um recorde." E é assim, na primeira pessoa, numa frase introdutória da sua biografia no seupessoal, que Armstrong descreve aquilo que viveu e sobreviveu naqueles 15 longos meses que mediaram entre a descoberta do cancro nos testículos (em Outubro de 1996) e o regresso ao pelotão com as cores da US Postal.

"Foi a melhor coisa que me aconteceu", mantém até hoje o norte-americano sobre o cancro que mudou o seu mundo - vencer, vencer e vencer passaram a ser as únicas palavras conhecidas pelo homem que sobreviveu, apesar de uma taxa de sobrevivência inferior a 40 por cento - e o mundo do desporto.

Revolução Armstrong?Uma nova era no ciclismo

A doença revolucionou a personalidade e as capacidades velocipédicas de Armstrong e Armstrong revoluciou o ciclismo: "Revolucionámos [ele e os colegas da US Postal, orientada por Johan Bruyneel] a maneira de treinar, a força mental de uma equipa, a forma de preparar as provas e de disputá-las, assim como a técnica de vender o desporto."

Falta de humildade? Não. Foram sete Tours e poderiam até ser mais se ele, cansado das exigências do ciclismo, das polémicas que submergiram a modalidade, de não ter adversários à altura, não tivesse decidido dizer "adeus" em plenos Campos Elísios, de amarelo vestido. Até aí, o ciclismo era uma luta individual, a partir daí passou a ser a modalidade individual mais colectiva, com treinos topo de gama (desde túneis de vento a estágios ao estilo Iron Man), planos de ataque delineados ao milímetro, intervenções cirurgicamente estudadas em etapas importantes, mind games e utilizações descaradas da ingenuidade da imprensa.

"A nossa relação é nula"?Rivalidades vs. inimizades

"A minha relação com o Lance Armstrong é nula" - as palavras são de Alberto Contador, o "miúdo" destemido que se atreveu a desafiar o "Boss" e, pior ainda, roubar-lhe o primeiro lugar do pódio em Paris no seu Tour de regresso. Mas o conflito com o espanhol, que acabou com o desmembramento da Astana e com uma dolorosamente longa troca de acusações entre os dois, é apenas o mais visível (culpa da memória) de uma longa lista de inimizades e rivalidades de Armstrong.

Façamos aqui uma distinção: o heptacampeão teve rivais (Jan Ullrich, Alex Zülle ou Joseba Beloki) e inimigos. Além de Contador, também Marco Pantani (sempre implacável nas críticas a Armstrong, mesmo quando era claramente inferior na estrada), Greg LeMond (levantou suspeitas quanto à legitimidade das vitórias do seu compatriota) ou Floyd Landis (tem-se entretido com uma campanha planetária de descredibilização do mito) fazem parte do lote de "não desejáveis".

"Le mensonge"?O fantasma do doping

Dúvidas sempre houve, mas nunca ninguém conseguiu provar que "o ciclista mais controlado de sempre" tenha recorrido aoao longo da sua carreira. E não se pode dizer que não tenham tentado. Veja-se o exemplo do: a campanha contra Armstrong já ia longa (começou no dia em que o norte-americano provocou o orgulho francês e resolveu tornar sua a prova nacional dos franceses) quando, a 23 Agosto de 2005, o desportivo mais vendido em França decidiu fazer uma manchete com o título "" ("a mentira Armstrong", em tradução livre). O jornal francês é apenas o mais duradouro exemplo de caixa de Pandora dos segredos de dopagem do "Boss". Primeiro foram os rastos de EPO nos testes realizadosàs amostras de sangue do seu primeiro Tour, depois foram as relações com o médico italiano Michele Ferrari e, finalmente, os "restos" suspeitos deixados pela Astana no Tour 2009.

Mas a "perseguição" dos franceses é apenas o topo do icebergue. Nas últimas semanas multiplicaram-se as descobertas, as revelações, os testemunhos, todos eles a apontarem o dedo aos métodos ilícitos supostamente usados pelo norte-americano ao longo da sua carreira.

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Mérito dele, do homem que George W. Bush fez questão de receber na Casa Branca, que chegou a pensar numa carreira na política, que fez capas de revistas cor-de-rosa com os seus romances com Sheryl Crow e Kate Hudson, que tem cinco filhos, que fez do Twitter uma moda do desporto mundial e que pretende dedicar-se à BTT, ao triatlo e à sua fundação.

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Na hora da despedida, esperava-se tudo (uma conferência de imprensa com centenas de jornalistas, declarações bombásticas, cerimónias de homenagem) menos isto - e isto é o adeus mais silencioso de um dos heróis com mais impacto na história do desporto. Ontem, enquanto Cameron Meyer festejava a vitória no Tour Down Under, a carreira de Armstrong acabava com uma curta declaração no Twitter. "Está feito. Obrigado por terem vindo para a estrada apoiar esta grande corrida", escreveu mal desceu da bicicleta pela última vez.

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