Dizia eu no poste em baixo que as funcionárias das bibliotecas que frequento são, salvo raríssimas excepções, amabilíssimas: não têm aquele ar de inquisidora severa de filme americano, com óculos enormes, penteado esquisito, saia travada e tricô sob o balcão. Nem se limitam a prevenir que o livro que agora deixam ao nosso cuidado tem que ser devolvido impreterivelmente até às tantas horas de dia tal, sob pena de ralhete e defenestração (existem nas bibliotecas janelas para o efeito). Pelo contrário, elas dão conselhos, arriscam sugestões, reagem aos títulos, numa palavra, interessam-se. [Acho que “interessam-se” são duas palavras, mas por agora, vigilante leitor, deixaremos passar.] Uma destas funcionárias, catarinense muito atenciosa, sugeriu-me uma visita a Rodes – “ninguém imagina, mas é do melhor que a Grécia tem” – quando confrontada com o pedido de uma monumental História da Literatura Grega, obra que naturalmente deve ser consultada à luz de velas numa cave bem húmida, não sob o sol escaldante de um terraço insular; além de que a ilha fica no cu-de-Judas do Mediterrâneo, mas achei o conselho tão gentil que achei melhor calar a objecção. Outra, uma menina de vinte e poucos anos e corte de cabelo à Inês de Medeiros, martelou com o indicador uma peça de Sartre, disse “Muito bom! Aaaah…” e ficou alguns segundos em silêncio olhando as moléculas de oxigénio a dançar sobre a sua cabeça, após o que soltou um sonoro “Existencialismo!”. Não é coisa que se diga alto, fiquei muito embaraçado, é claro sinal de caquexia ler peças de Sartre em pleno século XXI. Certo dia de Verão fui atendido por uma bibliotecária que eu não conhecia, talvez substituta, uma mulher nos seus trintas, longos cabelos cor de avelã, postura solícita, competente. Eu consultara o sistema informático interno – sim, que eu sei usar o sistema informático interno, não ando a chatear as funcionárias com questões de lana-caprina como “onde encontro o livro tal” e coisas assim, toda a gente sabe que quando não há em “Erotismo” está em “Outros Géneros” – e constatara que havia dois exemplares de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, uma das minhas mais que muitas lacunas literárias de longa data. Ambos, infelizmente, indisponíveis: um para restauro, o outro requisitado. Cheguei-me ao balcão, pedi a reserva do livro e a funcionária riu-se muito. Isso deixou-me um pouco de pé atrás. Eu havia lido Morte em Veneza e não me parecera que o Thomas fosse levezinho, antes pelo contrário, aquilo tinha muita filosofia. E eu, admito-o, já por mais que uma vez saíra de casa com metade da barba por fazer. Explicou então que o cómico residia no facto de ser ela mesma quem tinha o livro. Algo aliviado, perguntei-lhe se estava a gostar (acho que, lá no fundo, o meu subconsciente queria mesmo saber era se ela estava já a acabá-lo). E ela que sim, que estava a gostar muito, obra séria, profunda. Depois pôs um olhos circunspectos, considerou o assunto e disse em quase murmúrio: “Devia talvez lê-lo no Inverno.” Isso podia querer significar que ela não ia acabar de ler o livro antes de Novembro, mas eu antes quis ver na melancolia da frase o arroubo de uma alma poética e gentil.
Categorias
Entidades
Dizia eu no poste em baixo que as funcionárias das bibliotecas que frequento são, salvo raríssimas excepções, amabilíssimas: não têm aquele ar de inquisidora severa de filme americano, com óculos enormes, penteado esquisito, saia travada e tricô sob o balcão. Nem se limitam a prevenir que o livro que agora deixam ao nosso cuidado tem que ser devolvido impreterivelmente até às tantas horas de dia tal, sob pena de ralhete e defenestração (existem nas bibliotecas janelas para o efeito). Pelo contrário, elas dão conselhos, arriscam sugestões, reagem aos títulos, numa palavra, interessam-se. [Acho que “interessam-se” são duas palavras, mas por agora, vigilante leitor, deixaremos passar.] Uma destas funcionárias, catarinense muito atenciosa, sugeriu-me uma visita a Rodes – “ninguém imagina, mas é do melhor que a Grécia tem” – quando confrontada com o pedido de uma monumental História da Literatura Grega, obra que naturalmente deve ser consultada à luz de velas numa cave bem húmida, não sob o sol escaldante de um terraço insular; além de que a ilha fica no cu-de-Judas do Mediterrâneo, mas achei o conselho tão gentil que achei melhor calar a objecção. Outra, uma menina de vinte e poucos anos e corte de cabelo à Inês de Medeiros, martelou com o indicador uma peça de Sartre, disse “Muito bom! Aaaah…” e ficou alguns segundos em silêncio olhando as moléculas de oxigénio a dançar sobre a sua cabeça, após o que soltou um sonoro “Existencialismo!”. Não é coisa que se diga alto, fiquei muito embaraçado, é claro sinal de caquexia ler peças de Sartre em pleno século XXI. Certo dia de Verão fui atendido por uma bibliotecária que eu não conhecia, talvez substituta, uma mulher nos seus trintas, longos cabelos cor de avelã, postura solícita, competente. Eu consultara o sistema informático interno – sim, que eu sei usar o sistema informático interno, não ando a chatear as funcionárias com questões de lana-caprina como “onde encontro o livro tal” e coisas assim, toda a gente sabe que quando não há em “Erotismo” está em “Outros Géneros” – e constatara que havia dois exemplares de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, uma das minhas mais que muitas lacunas literárias de longa data. Ambos, infelizmente, indisponíveis: um para restauro, o outro requisitado. Cheguei-me ao balcão, pedi a reserva do livro e a funcionária riu-se muito. Isso deixou-me um pouco de pé atrás. Eu havia lido Morte em Veneza e não me parecera que o Thomas fosse levezinho, antes pelo contrário, aquilo tinha muita filosofia. E eu, admito-o, já por mais que uma vez saíra de casa com metade da barba por fazer. Explicou então que o cómico residia no facto de ser ela mesma quem tinha o livro. Algo aliviado, perguntei-lhe se estava a gostar (acho que, lá no fundo, o meu subconsciente queria mesmo saber era se ela estava já a acabá-lo). E ela que sim, que estava a gostar muito, obra séria, profunda. Depois pôs um olhos circunspectos, considerou o assunto e disse em quase murmúrio: “Devia talvez lê-lo no Inverno.” Isso podia querer significar que ela não ia acabar de ler o livro antes de Novembro, mas eu antes quis ver na melancolia da frase o arroubo de uma alma poética e gentil.