A maravilhosa vitalidade da democracia americana

20-05-2011
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Foi apenas a 4 de Agosto deste ano que Barack Obama convidou o líder da minoria republicana no Senado para um encontro a sós na Casa Branca. Dezoito meses depois de tomar posse, como notava em artigo de primeira página, na semana passada, o New York Times. Foi um encontro “notável”, escrevia um dos jornais que mais fervorosamente têm apoiado Obama, “não pelo que nele se disse, mas por ter levado tanto tempo a ser marcado”. O diário contava depois que, mesmo assim, esse encontro só aconteceu depois de líderes republicanos terem lembrado a colegas democratas que convinha falar com eles. Pelo menos um deles recordava como era diferente no tempo de Bill Clinton, um Presidente que não teria sido reeleito “se não tivesse trabalhado com os dois lados”.

Calculo que não foi por acaso que o New York Times resolveu contar este episódio a poucos dias da eleição em que os republicanos conseguiram a maior reviravolta na composição da Câmara dos Representantes dos últimos 60 anos – foi porque parte dos problemas de Obama (e parte dos defeitos que terá de corrigir) reside na forma sectária como viveu os primeiros dois anos de mandato. Um sectarismo que, como ontem escrevia a imprensa americana, não conseguiu ultrapassar na sua primeira conferência de imprensa pós-maremoto eleitoral. Pressionado pelos jornalistas que queriam saber se estava disposto a aceitar o veredicto dos eleitores sobre algumas das suas políticas, Obama respondeu que não tencionava corrigir um milímetro que fosse a orientação que tem seguido. Disse mesmo ao repórter do New York Times que iria “continuar” a tentar compromissos com os republicanos, “como já tinha feito no passado” – e sabemos que não o fez.

Esta faceta de Obama poderá surpreender alguns dos seus incondicionais adoradores europeus – é até provável que os entusiasme. Eles identificam-se mais depressa com o Presidente que descreve os republicanos como “inimigos” do que com o senador que ganhou notoriedade ao proclamar que “não há uma América democrata e uma América republicana, mas os Estados Unidos da América”. Esses apoiantes, como se pode ler nas caixas de comentários da imprensa internacional, acham que a onda republicana que varreu os Estados Unidos é fruto da ignorância e primitivismo dos americanos brancos da classe média, algo que Obama não diz preto no branco mas sugere por aproximação: os democratas perderam as eleições porque o povo não percebeu “os factos, a ciência e os argumentos” da Casa Branca, pois o “medo” (?) ter-lhe-ia toldado os espíritos (discurso a um grupo de doadores no Massachusetts).

Na verdade, o que aconteceu foi algo bem diferente: Barack Obama e os democratas encabeçados pela speaker Nancy Pelosi procuraram tirar partido da supermaioria de que dispunham no Congresso para prosseguir uma agenda partidária sem compromissos e muito à esquerda dos sentimentos da “middle America“. Como notava esta semana o Wall Street Journal, sempre que isso sucedeu os eleitores revoltaram-se e derrotaram os democratas nas eleições seguintes. Foi o que sucedeu a Lyndon Johnson em 1966 e a Bill Clinton em 1992, que também sofreram pesadas derrotas em eleições semelhantes.

A explicação mais comum para o desaire eleitoral dos democratas – um desaire que começou no Congresso mas se estendeu também às eleições para governadores e para as câmaras legislativas de vários Estados – começa sempre por referir a situação económica e o elevado desemprego. É uma explicação correcta que as sondagens à boca das urnas sobre as motivações do voto confirmam. Mas é uma explicação incompleta, como as mesmas sondagens comprovam. Os democratas perderam porque se desfez a coligação que há apenas dois anos lhes tinha proporcionado uma grande vitória e levado muitos a antever um longo domínio do partido nas instituições de Washington. As mulheres e os mais velhos viraram-se para os republicanos. Os eleitores independentes migraram em massa para o partido da oposição ao Presidente. Os jovens ficaram em casa. Até nos subúrbios da classe média alta e instruída os democratas perderam. Sobraram, como indefectíveis, os negros e, sobretudo, os latinos, suficientes para evitar desastres maiores em estados como a Califórnia e o Nevada.

Esta coligação não se desfez apenas porque os cidadãos estão com medo da situação económica ou, como se gosta de escrever por aí, estão “zangados”. Esta coligação desfez-se porque a onda de Obama também tinha sido cavalgada por muitos dos que desconfiam do poder de Washington e aquilo que o Presidente e o 111.º Congresso lhes deram foi sempre mais e mais Washington sob a forma de mais intervencionismo, mais regulação, mais taxas e mais défice. Ora, na América, como provavelmente em nenhum outro país do mundo, cultiva-se o princípio do “Governo limitado” e desconfia-se por regra de todos os avanços da Administração. Mesmo quando são feitos em tempos de crise ou em nome da protecção dos desprotegidos.

O que nos leva ao Tea Party.

Não há nada mais popular entre os bem-pensantes de todo o mundo (incluindo os dos Estados Unidos) do que desqualificar o movimento Tea Party como algo radical, extremista, porventura medieval. Recentemente, o The Guardian descrevia-o mesmo como “um movimento cujas estrelas emergentes estariam melhor numa prisão ou num asilo de lunáticos”. Talvez seja altura de quem escreveu tal enormidade engolir a caneta. Não por alguns dos candidatos apoiados pelo Tea Party terem obtido notáveis sucessos eleitorais, até porque a inaptidão de outros roubou aos republicanos algumas vitórias possíveis – mas porque candidatos como Rand Paul (Kentucky) e Marco Rubio (Florida) entraram pela porta grande no Senado realizando brilhantes discursos de vitória. Vale a pena ouvi-los.

Para perceber como é grande a distância entre a caricatura que é feita do Tea Party e aquilo que o Tea Party representa. Antes do mais, o movimento Tea Party, mesmo sendo muito heterogéneo e integrando excentricidades como a lunática candidata ao Senado pelo Delaware, Christine O”Donnell, reflecte antes de mais a revolta contra os poderes tidos por excessivos de Washington e do Governo central, assim como contra impostos elevados. Não é um movimento conservador que coloque temas como o aborto ou o casamento gay na agenda (não os vimos nesta campanha), antes um movimento que, ao reivindicar-se da revolta dos comerciantes de Boston contra os impostos britânicos no século XVIII, tem uma base de apoio larga e que inclui muitos democratas.

Em muitos aspectos – como disse Rubio no seu discurso -, é um movimento também contra a forma como os republicanos geriram Washington e fizeram aumentar os défices. Miguel Monjardino, num lúcido artigo no Expresso sobre este movimento, sublinhou que o Tea Party também se alimenta da consciência que muitos americanos têm “de que as instituições e o sistema político deixaram de funcionar em benefício do bem comum” – um mal que está longe de ser uma exclusividade dos Estados Unidos.

E aqui chegamos a um ponto inescapável: a forma como o Tea Party canalizou a revolta anti-sistema de muitos americanos, a forma como promoveu a sua agenda dentro do sistema e não fora dele, a forma como o sistema acabou por enquadrar muitos novos activistas e o que a disputa das eleições, com as suas vitórias e derrotas, já lhe permitiu aprender e ensinar, tudo isso junto mostra a vitalidade da democracia americana.

Se nos Estados Unidos não existissem eleições primárias e os eleitos não respondessem directamente perante os eleitores, se nos Estados Unidos prevalecesse o sistema de listas partidárias fechadas, o movimento Tea Party não teria conseguido integrar a revolta no sistema, antes promoveria movimentos anti-sistema. O que significa que a democracia americana continua a ser mais aberta e mais vibrante, capaz de mais facilmente eleger figuras não-ortodoxas e realmente independentes.

O povo, em última instância, tem sempre uma palavra a dizer e consegue dizê-la. Jornalista (twitter.com/jmf1957)

P.S.: No passado mês de Janeiro, quando o Massachusetts elegeu, de forma surpreendente, um republicano para o lugar deixado vago por Ted Kennedy, escrevi nesta coluna, citando Lenny Davis, um antigo conselheiro político de Bill Clinton, que se Obama quisesse cumprir o sonho de uma “nova política” teria de perceber a mensagem dos eleitores, e por isso teria de fazer compromissos, de negociar e de procurar plataformas bipartidárias. Agora, que sofreu nova e mais pesada derrota, pode ser que escute este conselho, até porque ele está por fim nas páginas de todos os jornais. Não é porém claro, face ao seu comportamento recente, que seja capaz de dar esse passo e tornar-se mais pragmático. O que pode colocá-lo em dificuldades, pois é bem possível que a saída da actual crise económica não seja tão rápida como foi em 1982 e em 1994, alturas em que Reagan e esse tal Clinton também sofreram derrotas pesadas e, depois, partiram para a fácil reeleição em 1984 e 1996.

Foi apenas a 4 de Agosto deste ano que Barack Obama convidou o líder da minoria republicana no Senado para um encontro a sós na Casa Branca. Dezoito meses depois de tomar posse, como notava em artigo de primeira página, na semana passada, o New York Times. Foi um encontro “notável”, escrevia um dos jornais que mais fervorosamente têm apoiado Obama, “não pelo que nele se disse, mas por ter levado tanto tempo a ser marcado”. O diário contava depois que, mesmo assim, esse encontro só aconteceu depois de líderes republicanos terem lembrado a colegas democratas que convinha falar com eles. Pelo menos um deles recordava como era diferente no tempo de Bill Clinton, um Presidente que não teria sido reeleito “se não tivesse trabalhado com os dois lados”.

Calculo que não foi por acaso que o New York Times resolveu contar este episódio a poucos dias da eleição em que os republicanos conseguiram a maior reviravolta na composição da Câmara dos Representantes dos últimos 60 anos – foi porque parte dos problemas de Obama (e parte dos defeitos que terá de corrigir) reside na forma sectária como viveu os primeiros dois anos de mandato. Um sectarismo que, como ontem escrevia a imprensa americana, não conseguiu ultrapassar na sua primeira conferência de imprensa pós-maremoto eleitoral. Pressionado pelos jornalistas que queriam saber se estava disposto a aceitar o veredicto dos eleitores sobre algumas das suas políticas, Obama respondeu que não tencionava corrigir um milímetro que fosse a orientação que tem seguido. Disse mesmo ao repórter do New York Times que iria “continuar” a tentar compromissos com os republicanos, “como já tinha feito no passado” – e sabemos que não o fez.

Esta faceta de Obama poderá surpreender alguns dos seus incondicionais adoradores europeus – é até provável que os entusiasme. Eles identificam-se mais depressa com o Presidente que descreve os republicanos como “inimigos” do que com o senador que ganhou notoriedade ao proclamar que “não há uma América democrata e uma América republicana, mas os Estados Unidos da América”. Esses apoiantes, como se pode ler nas caixas de comentários da imprensa internacional, acham que a onda republicana que varreu os Estados Unidos é fruto da ignorância e primitivismo dos americanos brancos da classe média, algo que Obama não diz preto no branco mas sugere por aproximação: os democratas perderam as eleições porque o povo não percebeu “os factos, a ciência e os argumentos” da Casa Branca, pois o “medo” (?) ter-lhe-ia toldado os espíritos (discurso a um grupo de doadores no Massachusetts).

Na verdade, o que aconteceu foi algo bem diferente: Barack Obama e os democratas encabeçados pela speaker Nancy Pelosi procuraram tirar partido da supermaioria de que dispunham no Congresso para prosseguir uma agenda partidária sem compromissos e muito à esquerda dos sentimentos da “middle America“. Como notava esta semana o Wall Street Journal, sempre que isso sucedeu os eleitores revoltaram-se e derrotaram os democratas nas eleições seguintes. Foi o que sucedeu a Lyndon Johnson em 1966 e a Bill Clinton em 1992, que também sofreram pesadas derrotas em eleições semelhantes.

A explicação mais comum para o desaire eleitoral dos democratas – um desaire que começou no Congresso mas se estendeu também às eleições para governadores e para as câmaras legislativas de vários Estados – começa sempre por referir a situação económica e o elevado desemprego. É uma explicação correcta que as sondagens à boca das urnas sobre as motivações do voto confirmam. Mas é uma explicação incompleta, como as mesmas sondagens comprovam. Os democratas perderam porque se desfez a coligação que há apenas dois anos lhes tinha proporcionado uma grande vitória e levado muitos a antever um longo domínio do partido nas instituições de Washington. As mulheres e os mais velhos viraram-se para os republicanos. Os eleitores independentes migraram em massa para o partido da oposição ao Presidente. Os jovens ficaram em casa. Até nos subúrbios da classe média alta e instruída os democratas perderam. Sobraram, como indefectíveis, os negros e, sobretudo, os latinos, suficientes para evitar desastres maiores em estados como a Califórnia e o Nevada.

Esta coligação não se desfez apenas porque os cidadãos estão com medo da situação económica ou, como se gosta de escrever por aí, estão “zangados”. Esta coligação desfez-se porque a onda de Obama também tinha sido cavalgada por muitos dos que desconfiam do poder de Washington e aquilo que o Presidente e o 111.º Congresso lhes deram foi sempre mais e mais Washington sob a forma de mais intervencionismo, mais regulação, mais taxas e mais défice. Ora, na América, como provavelmente em nenhum outro país do mundo, cultiva-se o princípio do “Governo limitado” e desconfia-se por regra de todos os avanços da Administração. Mesmo quando são feitos em tempos de crise ou em nome da protecção dos desprotegidos.

O que nos leva ao Tea Party.

Não há nada mais popular entre os bem-pensantes de todo o mundo (incluindo os dos Estados Unidos) do que desqualificar o movimento Tea Party como algo radical, extremista, porventura medieval. Recentemente, o The Guardian descrevia-o mesmo como “um movimento cujas estrelas emergentes estariam melhor numa prisão ou num asilo de lunáticos”. Talvez seja altura de quem escreveu tal enormidade engolir a caneta. Não por alguns dos candidatos apoiados pelo Tea Party terem obtido notáveis sucessos eleitorais, até porque a inaptidão de outros roubou aos republicanos algumas vitórias possíveis – mas porque candidatos como Rand Paul (Kentucky) e Marco Rubio (Florida) entraram pela porta grande no Senado realizando brilhantes discursos de vitória. Vale a pena ouvi-los.

Para perceber como é grande a distância entre a caricatura que é feita do Tea Party e aquilo que o Tea Party representa. Antes do mais, o movimento Tea Party, mesmo sendo muito heterogéneo e integrando excentricidades como a lunática candidata ao Senado pelo Delaware, Christine O”Donnell, reflecte antes de mais a revolta contra os poderes tidos por excessivos de Washington e do Governo central, assim como contra impostos elevados. Não é um movimento conservador que coloque temas como o aborto ou o casamento gay na agenda (não os vimos nesta campanha), antes um movimento que, ao reivindicar-se da revolta dos comerciantes de Boston contra os impostos britânicos no século XVIII, tem uma base de apoio larga e que inclui muitos democratas.

Em muitos aspectos – como disse Rubio no seu discurso -, é um movimento também contra a forma como os republicanos geriram Washington e fizeram aumentar os défices. Miguel Monjardino, num lúcido artigo no Expresso sobre este movimento, sublinhou que o Tea Party também se alimenta da consciência que muitos americanos têm “de que as instituições e o sistema político deixaram de funcionar em benefício do bem comum” – um mal que está longe de ser uma exclusividade dos Estados Unidos.

E aqui chegamos a um ponto inescapável: a forma como o Tea Party canalizou a revolta anti-sistema de muitos americanos, a forma como promoveu a sua agenda dentro do sistema e não fora dele, a forma como o sistema acabou por enquadrar muitos novos activistas e o que a disputa das eleições, com as suas vitórias e derrotas, já lhe permitiu aprender e ensinar, tudo isso junto mostra a vitalidade da democracia americana.

Se nos Estados Unidos não existissem eleições primárias e os eleitos não respondessem directamente perante os eleitores, se nos Estados Unidos prevalecesse o sistema de listas partidárias fechadas, o movimento Tea Party não teria conseguido integrar a revolta no sistema, antes promoveria movimentos anti-sistema. O que significa que a democracia americana continua a ser mais aberta e mais vibrante, capaz de mais facilmente eleger figuras não-ortodoxas e realmente independentes.

O povo, em última instância, tem sempre uma palavra a dizer e consegue dizê-la. Jornalista (twitter.com/jmf1957)

P.S.: No passado mês de Janeiro, quando o Massachusetts elegeu, de forma surpreendente, um republicano para o lugar deixado vago por Ted Kennedy, escrevi nesta coluna, citando Lenny Davis, um antigo conselheiro político de Bill Clinton, que se Obama quisesse cumprir o sonho de uma “nova política” teria de perceber a mensagem dos eleitores, e por isso teria de fazer compromissos, de negociar e de procurar plataformas bipartidárias. Agora, que sofreu nova e mais pesada derrota, pode ser que escute este conselho, até porque ele está por fim nas páginas de todos os jornais. Não é porém claro, face ao seu comportamento recente, que seja capaz de dar esse passo e tornar-se mais pragmático. O que pode colocá-lo em dificuldades, pois é bem possível que a saída da actual crise económica não seja tão rápida como foi em 1982 e em 1994, alturas em que Reagan e esse tal Clinton também sofreram derrotas pesadas e, depois, partiram para a fácil reeleição em 1984 e 1996.

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