Da Literatura: VALERIE MARTIN

24-12-2009
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Hoje no Público:Depois de uma aposta inicial em literaturas pouco acompanhadas em Portugal, como a italiana ou as balcânicas, razão de ser da expectativa com que foi acolhida no meio, a editora Cavalo de Ferro inclui agora no seu catálogo um significativo número de autores de língua inglesa, dos clássicos (Barrie, Hawthorne, Twain, Walpole, Wilde, etc.) aos contemporâneos, entre os quais encontramos E. Annie Proulx, Flannery O’Connor e Valerie Martin. Natural de Sedalia, no Missouri, Valerie Martin (n. 1948) cresceu em Nova Orleans, foi professora no célebre Mount Holyoke College, e lecciona actualmente na Universidade do Massachusetts, em Amherst. O primeiro livro, Love (1977), é uma colectânea de contos. Depois escreveu oito romances, mais duas colectâneas de contos e uma biografia de São Francisco de Assis. O mais citado de todos é Mary Reilly (1990). Percebe-se porquê. O romance faz contraponto com o clássico de Robert Louis Stevenson The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde (1886). Febre Italiana, publicado em 1999, acaba de chegar à edição portuguesa. É um thriller passional encenado na Toscana. Uma nota editorial inserta no volume refere que Valerie Martin «explora a noção jamesiana do inocente no estrangeiro», que o romance lida «com a paranóia e a histeria», e que a autora reincide nos «truques góticos». Gostava de perceber melhor isto dos truques góticos. Será porque alguns críticos americanos estabeleceram um paralelo entre Lucy Stark, a protagonista de Febre Italiana, e Catherine Morland, a heroína de Northanger Abbey de Jane Austen? A noção jamesiana também me parece deslocada. É verdade que Valerie Martin não disfarça a condescendência que sente pelo estrangeiro, em regra ignaro, mas o «recôndito mundo da tecnologia americana» não existia no tempo de James e, nos dias de hoje, não faz qualquer sentido. Em todo o caso, futilidades. O grande problema de Febre Italiana é a sua legibilidade em português. Não conheço a edição original e nada me autoriza a relativizar o domínio da língua inglesa por parte da tradutora, Claudia Müller Porto. Mas o português claudica frequentes vezes, isso posso garantir (digamos que claudicar é uma forma benévola de pôr a questão). Vejamos: «Desde que deixaram o aeroporto, tinham passado por estradas congestionadas, circulado por subúrbios feios, mas de repente estavam no campo, as vinhas cultivadas em terraços ondulantes, os olivais, as renques de ciprestes e pinheiros mansos, os montes escarpados com antigos burgos em cima que, desde há séculos, encantam até o mais empedernido, rodado, dos viajantes. Se a beleza do cenário não lhe tivesse cortado a respiração, a velocidade com que se moviam certamente que teria.» Eu sei que renque é um substantivo com dois géneros, mas ninguém diz «a renque», diz-se «em renque», «naquele renque», «nos renques», etc. No contexto, a escolha do verbo mover («com que se moviam») descentra o relato. Por que não deslocar? E, sim, a pontuação não ajuda. Mais: «Passado um pouco a porta do bar escancarou-se e os dois polícias saíram para a rua soalheira [...] via-se que estavam de má vontade, ansiosos por tresmalharem-se.» Tresmalharem-se? Não fica por aqui. Na passagem em que Valerie Martin descreve o primeiro jantar de Lucy com a família Cini, na parte em que os comensais trocam comida entre si, lê-se: «[...] recebendo as travessas de Massimo e passando-as para António, que serviu as modestas porções da avó. A velha senhora focou os seus olhinhos ferozes no prato. Esta verga a comida com o olhar, pensou Lucy, um pensamento que a fez sorrir.» Como assim? “Verga a comida”? A última coisa que me ocorreu foi o verbo vergar. Será que vem bend no original? Em caso afirmativo, não havia melhor solução? E mais esta: «Lucy foi à necessaire e tirou um frasco de aspirina.» Julgava eu que as pessoas pegavam no nécessaire ou, vá lá, iam ao nécessaire buscar isto ou aquilo. Ir «à necessaire» nunca vi. A falta de acento é gralha, calculo. Podia continuar, mas vamos ficar por aqui. Apesar dos atropelos da tradução, Febre Italiana consegue prender a atenção do leitor. A intriga tem origem na morte misteriosa de DV, um escritor americano radicado na Toscana. Lucy Stark, a sua assistente, desloca-se a Ugolino para os trâmites do funeral, apaixona-se por Massimo (um homem casado que fora contratado para fazer de motorista e tradutor), recupera um manuscrito desconhecido de DV cuja trama reproduz episódios da vida da família Cini durante a II Grande Guerra, faz uma deriva por Roma no tempo em que a Galleria Borghese ainda tinha a fachada coberta por andaimes (visita que lhe permite especular sobre o David de Bernini e outras obras de arte) e, no fim, regressa a Brooklyn. Tudo visto, fica por esclarecer se Valerie Martin é uma niilista, uma académica que gosta de contar histórias, ou ambas as coisas.Perdida na Toscana, in MIL FOLHAS, 6-10-2006, p. 10.Etiquetas: Crítica literária

Hoje no Público:Depois de uma aposta inicial em literaturas pouco acompanhadas em Portugal, como a italiana ou as balcânicas, razão de ser da expectativa com que foi acolhida no meio, a editora Cavalo de Ferro inclui agora no seu catálogo um significativo número de autores de língua inglesa, dos clássicos (Barrie, Hawthorne, Twain, Walpole, Wilde, etc.) aos contemporâneos, entre os quais encontramos E. Annie Proulx, Flannery O’Connor e Valerie Martin. Natural de Sedalia, no Missouri, Valerie Martin (n. 1948) cresceu em Nova Orleans, foi professora no célebre Mount Holyoke College, e lecciona actualmente na Universidade do Massachusetts, em Amherst. O primeiro livro, Love (1977), é uma colectânea de contos. Depois escreveu oito romances, mais duas colectâneas de contos e uma biografia de São Francisco de Assis. O mais citado de todos é Mary Reilly (1990). Percebe-se porquê. O romance faz contraponto com o clássico de Robert Louis Stevenson The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde (1886). Febre Italiana, publicado em 1999, acaba de chegar à edição portuguesa. É um thriller passional encenado na Toscana. Uma nota editorial inserta no volume refere que Valerie Martin «explora a noção jamesiana do inocente no estrangeiro», que o romance lida «com a paranóia e a histeria», e que a autora reincide nos «truques góticos». Gostava de perceber melhor isto dos truques góticos. Será porque alguns críticos americanos estabeleceram um paralelo entre Lucy Stark, a protagonista de Febre Italiana, e Catherine Morland, a heroína de Northanger Abbey de Jane Austen? A noção jamesiana também me parece deslocada. É verdade que Valerie Martin não disfarça a condescendência que sente pelo estrangeiro, em regra ignaro, mas o «recôndito mundo da tecnologia americana» não existia no tempo de James e, nos dias de hoje, não faz qualquer sentido. Em todo o caso, futilidades. O grande problema de Febre Italiana é a sua legibilidade em português. Não conheço a edição original e nada me autoriza a relativizar o domínio da língua inglesa por parte da tradutora, Claudia Müller Porto. Mas o português claudica frequentes vezes, isso posso garantir (digamos que claudicar é uma forma benévola de pôr a questão). Vejamos: «Desde que deixaram o aeroporto, tinham passado por estradas congestionadas, circulado por subúrbios feios, mas de repente estavam no campo, as vinhas cultivadas em terraços ondulantes, os olivais, as renques de ciprestes e pinheiros mansos, os montes escarpados com antigos burgos em cima que, desde há séculos, encantam até o mais empedernido, rodado, dos viajantes. Se a beleza do cenário não lhe tivesse cortado a respiração, a velocidade com que se moviam certamente que teria.» Eu sei que renque é um substantivo com dois géneros, mas ninguém diz «a renque», diz-se «em renque», «naquele renque», «nos renques», etc. No contexto, a escolha do verbo mover («com que se moviam») descentra o relato. Por que não deslocar? E, sim, a pontuação não ajuda. Mais: «Passado um pouco a porta do bar escancarou-se e os dois polícias saíram para a rua soalheira [...] via-se que estavam de má vontade, ansiosos por tresmalharem-se.» Tresmalharem-se? Não fica por aqui. Na passagem em que Valerie Martin descreve o primeiro jantar de Lucy com a família Cini, na parte em que os comensais trocam comida entre si, lê-se: «[...] recebendo as travessas de Massimo e passando-as para António, que serviu as modestas porções da avó. A velha senhora focou os seus olhinhos ferozes no prato. Esta verga a comida com o olhar, pensou Lucy, um pensamento que a fez sorrir.» Como assim? “Verga a comida”? A última coisa que me ocorreu foi o verbo vergar. Será que vem bend no original? Em caso afirmativo, não havia melhor solução? E mais esta: «Lucy foi à necessaire e tirou um frasco de aspirina.» Julgava eu que as pessoas pegavam no nécessaire ou, vá lá, iam ao nécessaire buscar isto ou aquilo. Ir «à necessaire» nunca vi. A falta de acento é gralha, calculo. Podia continuar, mas vamos ficar por aqui. Apesar dos atropelos da tradução, Febre Italiana consegue prender a atenção do leitor. A intriga tem origem na morte misteriosa de DV, um escritor americano radicado na Toscana. Lucy Stark, a sua assistente, desloca-se a Ugolino para os trâmites do funeral, apaixona-se por Massimo (um homem casado que fora contratado para fazer de motorista e tradutor), recupera um manuscrito desconhecido de DV cuja trama reproduz episódios da vida da família Cini durante a II Grande Guerra, faz uma deriva por Roma no tempo em que a Galleria Borghese ainda tinha a fachada coberta por andaimes (visita que lhe permite especular sobre o David de Bernini e outras obras de arte) e, no fim, regressa a Brooklyn. Tudo visto, fica por esclarecer se Valerie Martin é uma niilista, uma académica que gosta de contar histórias, ou ambas as coisas.Perdida na Toscana, in MIL FOLHAS, 6-10-2006, p. 10.Etiquetas: Crítica literária

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