Ferreira de Castro: A propósito de «Última dádiva», de Trindade Coelho

20-01-2011
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Causa-nos sempre grande impressão tomarmos consciência de que uma criança com onze anos e meio -- a idade que tinha Ferreira de Castro quando chegou a sua vez de partir -- tenha emigrado sozinha para o Brasil, (mal) confiada a um vago parente. Muitas crianças, porém, estiveram na mesma situação, entre meados do século XIX e as primeiras décadas da centúria seguinte. Algumas delas lograram ter também um percurso literário. Foi o caso de Francisco Gomes de Amorim (1827-1891) ou de Miguel Torga (1907-1995). Trindade Coelho (1861-1908) transmite-nos essa angústia num belíssimo conto de Os Meus Amores (1891), intitulado «Última dádiva», mostrando-nos o sofrimento de um pai quando as despedidas se avizinham:«--Pois são horas de largar, Sr. José, isto vai pràs duas. Não tarda que comece a amanhecer. -- E como estavam à porta de casa: -- Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vai. -- Iam à vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.Mas, à ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair pelo banco que estava debaixo do alpendre e desatou a chorar violentamente.O barqueiro tentou animá-lo, constrangido:-- Então, Sr. José?... O chorar é lá para as mulheres! Olhem agora que homem! -- E tentava levantá-lo, pô-lo de pé. -- Limpe lá essas lágrimas que vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a chorar todo o caminho?O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e pôs-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.-- Pois então levante-se lá. -- E segurou-o com força por baixo dos braços. Assim! Lá porque o pequeno vai para o Brasil, não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver!Mas era isso mesmo o que ele pensava...-- Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno! -- concluiu a chorar o José Cosme.-- Cismas!, lembranças que vêm à gente quando está aflita. Mas há-de vê-lo que o não há-de conhecer, digo-lho eu! Mais ano mesmos ano, aparece-lhe aí rico..."Rico! Bem lhe importava a ele que o pequeno viesse rico! O que desejava era que voltasse e que ele ainda fosse vivo só para o abraçar."[...]O José Cosme acendeu então a candeia, receoso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça, e chamou baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado, como se fosse praticar um grande crime:-- Filho, olha que são horas, meu filho...»Trindade Coelho, Os Meus Amores, 3.ª edição, Mem Martins, Publicações Europa-América, s. d., pp. 60-62.


Causa-nos sempre grande impressão tomarmos consciência de que uma criança com onze anos e meio -- a idade que tinha Ferreira de Castro quando chegou a sua vez de partir -- tenha emigrado sozinha para o Brasil, (mal) confiada a um vago parente. Muitas crianças, porém, estiveram na mesma situação, entre meados do século XIX e as primeiras décadas da centúria seguinte. Algumas delas lograram ter também um percurso literário. Foi o caso de Francisco Gomes de Amorim (1827-1891) ou de Miguel Torga (1907-1995). Trindade Coelho (1861-1908) transmite-nos essa angústia num belíssimo conto de Os Meus Amores (1891), intitulado «Última dádiva», mostrando-nos o sofrimento de um pai quando as despedidas se avizinham:«--Pois são horas de largar, Sr. José, isto vai pràs duas. Não tarda que comece a amanhecer. -- E como estavam à porta de casa: -- Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vai. -- Iam à vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.Mas, à ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair pelo banco que estava debaixo do alpendre e desatou a chorar violentamente.O barqueiro tentou animá-lo, constrangido:-- Então, Sr. José?... O chorar é lá para as mulheres! Olhem agora que homem! -- E tentava levantá-lo, pô-lo de pé. -- Limpe lá essas lágrimas que vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a chorar todo o caminho?O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e pôs-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.-- Pois então levante-se lá. -- E segurou-o com força por baixo dos braços. Assim! Lá porque o pequeno vai para o Brasil, não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver!Mas era isso mesmo o que ele pensava...-- Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno! -- concluiu a chorar o José Cosme.-- Cismas!, lembranças que vêm à gente quando está aflita. Mas há-de vê-lo que o não há-de conhecer, digo-lho eu! Mais ano mesmos ano, aparece-lhe aí rico..."Rico! Bem lhe importava a ele que o pequeno viesse rico! O que desejava era que voltasse e que ele ainda fosse vivo só para o abraçar."[...]O José Cosme acendeu então a candeia, receoso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça, e chamou baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado, como se fosse praticar um grande crime:-- Filho, olha que são horas, meu filho...»Trindade Coelho, Os Meus Amores, 3.ª edição, Mem Martins, Publicações Europa-América, s. d., pp. 60-62.

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