hermesnews: Os truques de quem foge ao Fisco

03-08-2010
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De forma mais ou menos expedita, são aos milhares aqueles que arriscam fugir aos impostos. Há esquemas básicos, como ludibriar as Finanças na compra de um imóvel, e outros mais sofisticados, que envolvem empresas-fantasmas e paraísos fiscais. Ana Sofia Santos in Expresso OnlineO caso é bicudo. Mesmo para esta inspectora das Finanças, que já não é uma novata nestas coisas. Um feeling certeiro levou-a com uma colega, de mandato de busca na mão, a casa do mediador imobiliário. A razão? Desconfiança de fuga aos impostos, envolvendo construtoras e compradores de imóveis, que passava pelo clássico esquema de declarar ao Fisco um valor inferior ao preço real do negócio. "Na empresa, não havia nada que confirmasse as suspeitas, e como era um negócio familiar lembrei-me desta hipótese", conta a funcionária da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI). Bingo. Descobriu que ao intermediário, o mediador, cabia uma comissão de 3% sobre o valor da diferença entre o valor simulado e o montante cobrado realmente. Mas "quem ganhava mesmo a sério com isto eram as construtoras", explica a inspectora, pois escondiam rendimentos, o que lhes permitia fugir ao IRC e também diminuir a factura do IVA. Quanto aos futuros proprietários, poupavam no IMT (ex-sisa), no IMI (ex-contribuição autárquica) e no Imposto do Selo. O empresário não contava com a visita-surpresa, e foi fácil encontrar provas. Há um ano que o Fisco andava a recolher indícios e por isso sabia que o esquema certamente envolvia muitas outras sociedades. Mesmo assim, a inspectora ficou de boca aberta quando tropeçou numa pen com "muitíssimas empresas de construção espalhadas de norte a sul do país". Os compradores dos imóveis também estavam lá escarrapachados, e dessa lista constavam nomes de colegas da inspectora e até de juízes... A falcatrua mais lucrativa permitiu ao comprador sonegar 141 mil euros aos cofres do Estado no momento da escritura. "No mínimo, a poupança era de 5 mil euros." Já foram constituídas arguidas dez empresas, que fugiram com pelo menos 60 mil euros por ano. E a mediadora também vai ser indiciada pelo crime de simulação de negócio. Quanto aos contribuintes particulares, estão a ser notificados para pagarem o valor real dos impostos. "Tenho 560 linhas de Excel onde constam todos os imóveis alvo desta prática", revela a fiscal, enquanto sublinha que se trata "de uma única mediadora... Imagine agora tudo o que não se passa por aí". A derrogação do sigilo bancário é fundamental nesta investigação, já que nenhum dos documentos apreendidos está assinado pelos intervenientes. A inspectora sabe que vai ter "anos de muito trabalho pela frente" e queixa-se da falta de colaboração dos bancos - "muitos estão coniventes com esta maneira de ludibriar o Fisco". Segundo certas estimativas, "que pecam por defeito", o Estado pode ter sido defraudado em 8 milhões de euros entre 2004 e 2007. "Era preciso uma 'Operação Furacão' na mediação imobiliária", aponta.A inspectora refere-se ao maior caso de fuga aos impostos alguma vez investigado em Portugal. A "Operação Furacão" envolve grandes bancos, grandes empresas e grandes escritórios de advogados. Como começou? Com uma mera averiguação da Inspecção Tributária de Braga, através da qual se soube de um esquema bancário que permitia às empresas pagarem menos impostos. Em Outubro de 2005, iniciaram-se as primeiras buscas aos bancos: BPN, Finibanco, Millennium bcp e BES. Entretanto, grandes empresas, como Delta Cafés, Soares da Costa, Mota-Engil, passando pela Porto Editora e Texto Editora, empresas fiduciárias e sociedades de advogados, também foram visitadas. A Media Capital e os empresários Joe Berardo e Horácio Roque são outros dos envolvidos. O último desenvolvimento de um processo marcado por sucessivas mega-operações de buscas foi retirar da "Operação Furacão" 30 arguidos. A suspensão provisória do processo foi proposta pelo Ministério Público (MP), mas o juiz de instrução recusou e o pedido teve de subir ao Tribunal da Relação, onde acabou por ter luz verde. Rosário Teixeira é o procurador que coordena a investigação, e na base da decisão esteve o facto de se tratarem de ilícitos que se resolvem com o pagamento da dívida. A iniciativa do MP abrange apenas empresas e não os bancos ou os escritórios de advogados que propunham aos clientes o esquema para obter benefícios fiscais.Ao todo, Rosário Teixeira autorizou 620 buscas e constituiu quase 400 arguidos. Entretanto, o Estado já recuperou 60 milhões de euros, cerca de 25% do rombo total de 230 milhões de euros. Ainda há perto de 200 arguidos, indiciados pelos crimes de fuga e fraude fiscal. Numa entrevista recente à revista "Sábado", o procurador, de 47 anos de idade, disse que é possível que "haja factos deste género a remontar a meados dos anos 90". E frisou que com a "Operação Furacão" se demonstrou que "é possível fazer investigações sem olhar a quem e varrendo indistintamente pessoas e factos, independentemente de quem os pratique". Será que as coisas estão mesmo a mudar? A inspectora, que pediu anonimato ao Expresso, acredita que sim. Está confiante que vai conseguir ter material suficiente para uma acusação que leve a um desfecho de condenações efectivas no caso que está a investigar. "Vou até ao fim, doa a quem doer", frisa. Ajuda-a o facto de o MP estar "muito empenhado".Estes são apenas dois exemplos de fuga aos impostos dentro de portas. O problema é quando as fraudes fiscais ultrapassam as fronteiras. Hoje em dia existe aquilo a que se pode chamar o franchise do crime que envolve impostos. Ou seja, quando é descoberto um novo tipo de golpe nos EUA, por exemplo, as nossas autoridades ficam logo de sobreaviso, pois mais tarde ou mais cedo o perigo vai bater-nos à porta. Um dos esquemas que mais prejuízo dá aos cofres de vários países - Portugal incluído - é a fraude 'carrossel do IVA'. É um crime sofisticado que começou a alastrar como uma epidemia, sobretudo a partir de 2004. De início, os países mais afectados foram Espanha, Inglaterra e os do Norte da Europa. O mais grave deste tipo de crime é que permite ir buscar ao Estado impostos que nunca foram pagos através de reembolsos indevidos. Ou seja, há uma delapidação do património do país. A estratégia é bem montada e passa pela simulação de transacções comerciais, que 'rodam' entre empresas - daí a denominação 'carrossel' - geralmente fictícias. "É muito difícil de detectar e de investigar", aponta o ex-director nacional adjunto da Polícia Judiciária (foi responsável pelo combate ao crime económico), José Mouraz Lopes. Aqui, a troca de informações com outros Estados-membros é uma das armas. "Estamos a falar de situações que não podem ser investigadas do ponto de vista paroquial. Só com competências transnacionais é que se consegue avançar", refere o magistrado, acrescentando que este crime "envolve valores brutais - astronómicos mesmo -, que podem pôr em causa as economias de alguns países". O recurso a paraísos fiscais é frequente e uma das formas de complicar a vida às autoridades. Menos criativo, mas também uma dor de cabeça para a Administração Fiscal, é a apropriação de impostos retidos a favor do Estado. A DGCI lançou, em Agosto de 2008, a Operação Resgate Fiscal, para 'encostar contra a parede' as sociedades que estão a falhar. A partir de 7500 euros de imposto em falta, esta prática constitui um crime. O último balanço da operação dá conta da detecção de mais de 20 mil empresas infractoras, das quais a esmagadora maioria não entregou o IVA que recebeu dos seus clientes. Mas em causa também estão retenções de IRS dos trabalhadores que são apropriadas pelos patrões. Entretanto, foram recuperados 340 milhões de euros, pouco mais de 10% de um total de dívidas de 3,3 mil milhões de euros, juros de mora incluídos. Estima-se que a evasão fiscal em Portugal se situe entre 4,7% e 7,2% do Produto Interno Bruto. Em 2008, as Finanças riscaram dos seus ficheiros 3,6 mil milhões de euros de dívidas de impostos e de prestações devidas à Segurança Social, ou porque passaram de prazo ou porque a DGCI assumiu que não tem maneira de as cobrar. Um crime que dá prisão Entre 2004 e 2008, mais de 60 contribuintes acabaram na prisão por terem cometido crimes fiscais, segundo o último relatório de actividades da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI). É uma gota de água num oceano de 8897 condenações nesses cinco anos. Os restantes arguidos que não foram para trás das grades tiveram de pagar multas ou viram as suas penas de prisão suspensas, por exemplo. Podem parecer muitas as condenações, mas mesmo este número é completamente cilindrado quando olhamos para os 18.255 inquéritos criminais fiscais instaurados no mesmo período. Os números não enganam. O total de condenados não é proporcional ao número de casos investigados. Em parte, a culpa é da DGCI, porque são inúmeros os casos que chegam com falhas processuais aos tribunais e que deixam de ter pernas para andar. Mas, do lado dos tribunais, as coisas também não correm bem. Os juízes estão atafulhados em processos fiscais e não têm mãos a medir. A falta de preparação, de ambos os lados, é outro entrave ao combate efectivo dos crimes que envolvem impostos. A lei prevê três grandes tipos de crimes fiscais (Regime Geral das Infracções Tributárias): a fraude, a fraude qualificada e o abuso de confiança (a maioria dos casos investigados). A moldura penal mais grave está prevista para a fraude qualificada, com uma pena de prisão que pode ir até aos cinco anos. No entanto, as sanções podem ser mais pesadas, caso se prove que o condenado é, por exemplo, o cabecilha de uma rede criminosa que rouba o Fisco. A informatização, potenciada com o cruzamento de dados, é a grande arma do Fisco contra os faltosos. Este trabalho foi abraçado, numa fase ainda imberbe, pelo anterior director-geral dos Impostos, Paulo Macedo. A partir daí, começaram a multiplicar-se aplicações e sistemas que permitem à máquina fiscal detectar com maior eficácia quem anda a fugir aos impostos. Mas falta pôr a andar muitos mais projectos, que não avançam por falta de meios. A Administração Fiscal está hoje a anos-luz daquilo que era num passado recente. As declarações electrónicas pré-preenchidas são apenas uma das faces mais visíveis da modernização da máquina fiscal. No entanto, há muitas dúvidas e receios em relação ao novo Fisco, que despersonalizou a relação com o contribuinte e atribuiu a máquinas o controlo do cadastro fiscal de todos nós. A penhora automática é uma das inovações que mais tem dado que falar, pela negativa. Acumulam-se queixas na Provedoria de Justiça, por exemplo, que relatam alegados atropelos nos direitos e garantias dos contribuintes. A própria tutela reconhece que há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à melhoria da relação entre as Finanças e os contribuintes. Cinco razões pelas quais é mais difícil fugir ao Fisco 1 Informatização Foi criada uma central de inteligência, que deu capacidade aos funcionários dos impostos de absorver e tratar com maior rapidez toda a informação, que passou a ser desmaterializada. Daí até ao cruzamento de dados foi um passo. Hoje, o Fisco troca informação com várias entidades (segurança social, bancos, notários, conservatórias, entidades patronais, etc.). 2 Valorização dos quadros da Direcção-Geral dos Impostos Há dez anos eram 15 mil os trabalhadores do Fisco. Hoje são 11 mil, e pelo meio saíram 5 mil quadros, o que proporcionou um rejuvenescimento da casa dos impostos e aumentou o nível de formação. Ainda há lacunas para preencher, mas tem havido uma aposta clara em recrutar licenciados na área do Direito e da Economia, nomeadamente. 3 Automatização de procedimentos Há dez anos ainda era frequente a utilização de máquinas de escrever, onde eram batidas, por exemplo, as notificações para os contribuintes faltosos. Hoje basta um clique e seguem milhares de cartas para todo o país. As penhoras automáticas são outro grande trunfo. 4 Esforço legislativo São inúmeras as alterações legislativas que permitiram tornar alguns impostos (como o IVA) menos susceptíveis de fraude. Também se procurou enquadrar como crime determinadas práticas, com a criação da lista de devedores, bem como a lista negra dos paraísos fiscais. Facilitou-se ainda a derrogação do sigilo bancário. 5 Cultura de vitória Hoje, os funcionários do Fisco acreditam que podem fazer a diferença e recuperar impostos devidos ao Estado. E isso é fundamental quando se trata de ficar ao serviço muito para além da hora do expediente, o que é determinante, sobretudo, na cobrança coerciva. Aliás, esse esforço tem permitido ao Ministério das Finanças cumprir sucessivamente as metas definidas no que se refere à recuperação de impostos. Nem sempre foi assim, porque a Administração Fiscal efectivamente não tinha os meios necessários para combater a fraude e a evasão fiscais. Esta mudança começou com o ex-ministro das Finanças Sousa Franco e foi reforçada pelo antigo director-geral dos Impostos Paulo Macedo.


De forma mais ou menos expedita, são aos milhares aqueles que arriscam fugir aos impostos. Há esquemas básicos, como ludibriar as Finanças na compra de um imóvel, e outros mais sofisticados, que envolvem empresas-fantasmas e paraísos fiscais. Ana Sofia Santos in Expresso OnlineO caso é bicudo. Mesmo para esta inspectora das Finanças, que já não é uma novata nestas coisas. Um feeling certeiro levou-a com uma colega, de mandato de busca na mão, a casa do mediador imobiliário. A razão? Desconfiança de fuga aos impostos, envolvendo construtoras e compradores de imóveis, que passava pelo clássico esquema de declarar ao Fisco um valor inferior ao preço real do negócio. "Na empresa, não havia nada que confirmasse as suspeitas, e como era um negócio familiar lembrei-me desta hipótese", conta a funcionária da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI). Bingo. Descobriu que ao intermediário, o mediador, cabia uma comissão de 3% sobre o valor da diferença entre o valor simulado e o montante cobrado realmente. Mas "quem ganhava mesmo a sério com isto eram as construtoras", explica a inspectora, pois escondiam rendimentos, o que lhes permitia fugir ao IRC e também diminuir a factura do IVA. Quanto aos futuros proprietários, poupavam no IMT (ex-sisa), no IMI (ex-contribuição autárquica) e no Imposto do Selo. O empresário não contava com a visita-surpresa, e foi fácil encontrar provas. Há um ano que o Fisco andava a recolher indícios e por isso sabia que o esquema certamente envolvia muitas outras sociedades. Mesmo assim, a inspectora ficou de boca aberta quando tropeçou numa pen com "muitíssimas empresas de construção espalhadas de norte a sul do país". Os compradores dos imóveis também estavam lá escarrapachados, e dessa lista constavam nomes de colegas da inspectora e até de juízes... A falcatrua mais lucrativa permitiu ao comprador sonegar 141 mil euros aos cofres do Estado no momento da escritura. "No mínimo, a poupança era de 5 mil euros." Já foram constituídas arguidas dez empresas, que fugiram com pelo menos 60 mil euros por ano. E a mediadora também vai ser indiciada pelo crime de simulação de negócio. Quanto aos contribuintes particulares, estão a ser notificados para pagarem o valor real dos impostos. "Tenho 560 linhas de Excel onde constam todos os imóveis alvo desta prática", revela a fiscal, enquanto sublinha que se trata "de uma única mediadora... Imagine agora tudo o que não se passa por aí". A derrogação do sigilo bancário é fundamental nesta investigação, já que nenhum dos documentos apreendidos está assinado pelos intervenientes. A inspectora sabe que vai ter "anos de muito trabalho pela frente" e queixa-se da falta de colaboração dos bancos - "muitos estão coniventes com esta maneira de ludibriar o Fisco". Segundo certas estimativas, "que pecam por defeito", o Estado pode ter sido defraudado em 8 milhões de euros entre 2004 e 2007. "Era preciso uma 'Operação Furacão' na mediação imobiliária", aponta.A inspectora refere-se ao maior caso de fuga aos impostos alguma vez investigado em Portugal. A "Operação Furacão" envolve grandes bancos, grandes empresas e grandes escritórios de advogados. Como começou? Com uma mera averiguação da Inspecção Tributária de Braga, através da qual se soube de um esquema bancário que permitia às empresas pagarem menos impostos. Em Outubro de 2005, iniciaram-se as primeiras buscas aos bancos: BPN, Finibanco, Millennium bcp e BES. Entretanto, grandes empresas, como Delta Cafés, Soares da Costa, Mota-Engil, passando pela Porto Editora e Texto Editora, empresas fiduciárias e sociedades de advogados, também foram visitadas. A Media Capital e os empresários Joe Berardo e Horácio Roque são outros dos envolvidos. O último desenvolvimento de um processo marcado por sucessivas mega-operações de buscas foi retirar da "Operação Furacão" 30 arguidos. A suspensão provisória do processo foi proposta pelo Ministério Público (MP), mas o juiz de instrução recusou e o pedido teve de subir ao Tribunal da Relação, onde acabou por ter luz verde. Rosário Teixeira é o procurador que coordena a investigação, e na base da decisão esteve o facto de se tratarem de ilícitos que se resolvem com o pagamento da dívida. A iniciativa do MP abrange apenas empresas e não os bancos ou os escritórios de advogados que propunham aos clientes o esquema para obter benefícios fiscais.Ao todo, Rosário Teixeira autorizou 620 buscas e constituiu quase 400 arguidos. Entretanto, o Estado já recuperou 60 milhões de euros, cerca de 25% do rombo total de 230 milhões de euros. Ainda há perto de 200 arguidos, indiciados pelos crimes de fuga e fraude fiscal. Numa entrevista recente à revista "Sábado", o procurador, de 47 anos de idade, disse que é possível que "haja factos deste género a remontar a meados dos anos 90". E frisou que com a "Operação Furacão" se demonstrou que "é possível fazer investigações sem olhar a quem e varrendo indistintamente pessoas e factos, independentemente de quem os pratique". Será que as coisas estão mesmo a mudar? A inspectora, que pediu anonimato ao Expresso, acredita que sim. Está confiante que vai conseguir ter material suficiente para uma acusação que leve a um desfecho de condenações efectivas no caso que está a investigar. "Vou até ao fim, doa a quem doer", frisa. Ajuda-a o facto de o MP estar "muito empenhado".Estes são apenas dois exemplos de fuga aos impostos dentro de portas. O problema é quando as fraudes fiscais ultrapassam as fronteiras. Hoje em dia existe aquilo a que se pode chamar o franchise do crime que envolve impostos. Ou seja, quando é descoberto um novo tipo de golpe nos EUA, por exemplo, as nossas autoridades ficam logo de sobreaviso, pois mais tarde ou mais cedo o perigo vai bater-nos à porta. Um dos esquemas que mais prejuízo dá aos cofres de vários países - Portugal incluído - é a fraude 'carrossel do IVA'. É um crime sofisticado que começou a alastrar como uma epidemia, sobretudo a partir de 2004. De início, os países mais afectados foram Espanha, Inglaterra e os do Norte da Europa. O mais grave deste tipo de crime é que permite ir buscar ao Estado impostos que nunca foram pagos através de reembolsos indevidos. Ou seja, há uma delapidação do património do país. A estratégia é bem montada e passa pela simulação de transacções comerciais, que 'rodam' entre empresas - daí a denominação 'carrossel' - geralmente fictícias. "É muito difícil de detectar e de investigar", aponta o ex-director nacional adjunto da Polícia Judiciária (foi responsável pelo combate ao crime económico), José Mouraz Lopes. Aqui, a troca de informações com outros Estados-membros é uma das armas. "Estamos a falar de situações que não podem ser investigadas do ponto de vista paroquial. Só com competências transnacionais é que se consegue avançar", refere o magistrado, acrescentando que este crime "envolve valores brutais - astronómicos mesmo -, que podem pôr em causa as economias de alguns países". O recurso a paraísos fiscais é frequente e uma das formas de complicar a vida às autoridades. Menos criativo, mas também uma dor de cabeça para a Administração Fiscal, é a apropriação de impostos retidos a favor do Estado. A DGCI lançou, em Agosto de 2008, a Operação Resgate Fiscal, para 'encostar contra a parede' as sociedades que estão a falhar. A partir de 7500 euros de imposto em falta, esta prática constitui um crime. O último balanço da operação dá conta da detecção de mais de 20 mil empresas infractoras, das quais a esmagadora maioria não entregou o IVA que recebeu dos seus clientes. Mas em causa também estão retenções de IRS dos trabalhadores que são apropriadas pelos patrões. Entretanto, foram recuperados 340 milhões de euros, pouco mais de 10% de um total de dívidas de 3,3 mil milhões de euros, juros de mora incluídos. Estima-se que a evasão fiscal em Portugal se situe entre 4,7% e 7,2% do Produto Interno Bruto. Em 2008, as Finanças riscaram dos seus ficheiros 3,6 mil milhões de euros de dívidas de impostos e de prestações devidas à Segurança Social, ou porque passaram de prazo ou porque a DGCI assumiu que não tem maneira de as cobrar. Um crime que dá prisão Entre 2004 e 2008, mais de 60 contribuintes acabaram na prisão por terem cometido crimes fiscais, segundo o último relatório de actividades da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI). É uma gota de água num oceano de 8897 condenações nesses cinco anos. Os restantes arguidos que não foram para trás das grades tiveram de pagar multas ou viram as suas penas de prisão suspensas, por exemplo. Podem parecer muitas as condenações, mas mesmo este número é completamente cilindrado quando olhamos para os 18.255 inquéritos criminais fiscais instaurados no mesmo período. Os números não enganam. O total de condenados não é proporcional ao número de casos investigados. Em parte, a culpa é da DGCI, porque são inúmeros os casos que chegam com falhas processuais aos tribunais e que deixam de ter pernas para andar. Mas, do lado dos tribunais, as coisas também não correm bem. Os juízes estão atafulhados em processos fiscais e não têm mãos a medir. A falta de preparação, de ambos os lados, é outro entrave ao combate efectivo dos crimes que envolvem impostos. A lei prevê três grandes tipos de crimes fiscais (Regime Geral das Infracções Tributárias): a fraude, a fraude qualificada e o abuso de confiança (a maioria dos casos investigados). A moldura penal mais grave está prevista para a fraude qualificada, com uma pena de prisão que pode ir até aos cinco anos. No entanto, as sanções podem ser mais pesadas, caso se prove que o condenado é, por exemplo, o cabecilha de uma rede criminosa que rouba o Fisco. A informatização, potenciada com o cruzamento de dados, é a grande arma do Fisco contra os faltosos. Este trabalho foi abraçado, numa fase ainda imberbe, pelo anterior director-geral dos Impostos, Paulo Macedo. A partir daí, começaram a multiplicar-se aplicações e sistemas que permitem à máquina fiscal detectar com maior eficácia quem anda a fugir aos impostos. Mas falta pôr a andar muitos mais projectos, que não avançam por falta de meios. A Administração Fiscal está hoje a anos-luz daquilo que era num passado recente. As declarações electrónicas pré-preenchidas são apenas uma das faces mais visíveis da modernização da máquina fiscal. No entanto, há muitas dúvidas e receios em relação ao novo Fisco, que despersonalizou a relação com o contribuinte e atribuiu a máquinas o controlo do cadastro fiscal de todos nós. A penhora automática é uma das inovações que mais tem dado que falar, pela negativa. Acumulam-se queixas na Provedoria de Justiça, por exemplo, que relatam alegados atropelos nos direitos e garantias dos contribuintes. A própria tutela reconhece que há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à melhoria da relação entre as Finanças e os contribuintes. Cinco razões pelas quais é mais difícil fugir ao Fisco 1 Informatização Foi criada uma central de inteligência, que deu capacidade aos funcionários dos impostos de absorver e tratar com maior rapidez toda a informação, que passou a ser desmaterializada. Daí até ao cruzamento de dados foi um passo. Hoje, o Fisco troca informação com várias entidades (segurança social, bancos, notários, conservatórias, entidades patronais, etc.). 2 Valorização dos quadros da Direcção-Geral dos Impostos Há dez anos eram 15 mil os trabalhadores do Fisco. Hoje são 11 mil, e pelo meio saíram 5 mil quadros, o que proporcionou um rejuvenescimento da casa dos impostos e aumentou o nível de formação. Ainda há lacunas para preencher, mas tem havido uma aposta clara em recrutar licenciados na área do Direito e da Economia, nomeadamente. 3 Automatização de procedimentos Há dez anos ainda era frequente a utilização de máquinas de escrever, onde eram batidas, por exemplo, as notificações para os contribuintes faltosos. Hoje basta um clique e seguem milhares de cartas para todo o país. As penhoras automáticas são outro grande trunfo. 4 Esforço legislativo São inúmeras as alterações legislativas que permitiram tornar alguns impostos (como o IVA) menos susceptíveis de fraude. Também se procurou enquadrar como crime determinadas práticas, com a criação da lista de devedores, bem como a lista negra dos paraísos fiscais. Facilitou-se ainda a derrogação do sigilo bancário. 5 Cultura de vitória Hoje, os funcionários do Fisco acreditam que podem fazer a diferença e recuperar impostos devidos ao Estado. E isso é fundamental quando se trata de ficar ao serviço muito para além da hora do expediente, o que é determinante, sobretudo, na cobrança coerciva. Aliás, esse esforço tem permitido ao Ministério das Finanças cumprir sucessivamente as metas definidas no que se refere à recuperação de impostos. Nem sempre foi assim, porque a Administração Fiscal efectivamente não tinha os meios necessários para combater a fraude e a evasão fiscais. Esta mudança começou com o ex-ministro das Finanças Sousa Franco e foi reforçada pelo antigo director-geral dos Impostos Paulo Macedo.

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