Cruzeiro do Fado regressou ao cais de Alcântara em silêncio

15-09-2010
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Alguns feridos já estão em casa, mas 16 foram para o hospital. Cais encheu-se de curiosos e familiares das vítimas de Marrocos

Fernanda Melo passou a tarde com as mãos coladas às grades de ferro enferrujadas e com a cabeça encaixada nas barras metálicas. A cada barco "grande" que vislumbrava, o coração de 72 anos batia mais depressa. Estava alheia ao enjoativo cheiro da urina acumulada durante anos naquela zona discreta do Porto de Lisboa e agora aquecida e reactivada pelo calor. Alheia às centenas de curiosos que se juntaram no Cais de Alcântara para fotografar com os olhos e com a máquina a chegada do paquete Funchal, que efectuara um cruzeiro temático (dedicado ao fado) de cinco dias. O Cruzeiro do Fado, que terminou oficialmente ontem, acabou mais cedo para os nove portugueses que morreram na quarta-feira num acidente de autocarro a poucos quilómetros de Ceuta quando aproveitaram a escala para fazer uma visita a Tétuan. "Estava lá a minha cunhada e a minha sobrinha. Era uma viagem de avó e neta... e a miúda voltou sozinha", contou, de olhos salgados.

A chegada do paquete, perto das 18h, foi rodeada de fortes medidas de segurança. Dezasseis dos feridos que tiveram condições de regressar com os restantes passageiros do cruzeiro mal saíram do barco entraram em oito ambulâncias e foram transportados para o Hospital Cuf/Infante Santo. No entanto, outros já não precisaram de cuidados hospitalares e preferiram regressar a casa. Foi o caso de Júlio Couta e da sua mulher.

Com as cabeças baixas e chapéus enterrados, tentaram fingir que não faziam parte do grupo que ia no autocarro que capotou. Mas os colares cervicais e os pensos - que não disfarçavam todas as escoriações - denunciaram-nos. "Não quero sequer ver as imagens que passam nas televisões. Nós é que estivemos a tirar mortos e feridos do autocarro. Não houve rapidez em ajudar, mas fomos muito bem atendidos em Ceuta", resumiu Júlio Couta.

Com eles saiu uma maré de passageiros solidários com o que aconteceu com uma parte do grupo e que se abraçavam entre lágrimas e sorrisos às centenas de familiares e amigos (e também cães) que os aguardavam. Isabel Carvalho, de 48 anos, aguardava o filho, dois sobrinhos e uma amiga. Das suas duas irmãs que ficaram em Marrocos, sabe pouco. "Há pouca informação. Uma salvou-se de lhe amputarem a perna, mas a mais velha ainda não consegui confirmar se foi ou não operada. Felizmente o meu filho desobedeceu-me e não quis ir com as tias no autocarro."

Demasiada espera

Ao início da tarde de ontem chegaram também a Lisboa os feridos que vieram num voo da Royal Air Maroc e que foram transportados para hospitais da capital. Os três adultos e uma criança tinham no aeroporto quatro ambulâncias na pista de aterragem. Ao todo, registaram-se 19 feridos graves e 17 ligeiros, segundo fonte governamental. No hospital de Tétuan estavam 11 passageiros e no de Ceuta outros seis, sendo que só os quatro referidos já voltaram a Lisboa. Os nove mortos são esperados esta manhã.

João Paulo Peixoto não esteve entre os feridos "por muito pouco", mas presenciou a espera referida pelos passageiros. Devia ter ido no primeiro autocarro, mas, como estava cheio, mudaram-no. Pouco depois da saída viu o autocarro da frente "a ziguezaguear" e o motorista do seu veículo "a repetir sem parar: "Alá!", "Alá!", "Alá!"".

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Saiu para ir ajudar os outros portugueses juntamente com um médico que seguia na excursão. "Naquele momento não estava a chover, mas a estrada estava molhada. Isso deve ter ajudado ao acidente", começou por explicar João Paulo Peixoto, de 46 anos. "Quando chegámos ao autocarro, já estavam uns marroquinos a tentar desligá-lo e a tirar as primeiras pessoas. Íamos tirando as pessoas como podíamos. A um ritmo de uma pessoa por cada três ou quatro minutos. Vinham feridas, com sangue. Algumas não aguentaram. Deitámo-las na relva com uma toalha na cara", acrescentou.

Velhos do Restelo

Ao lado de João esteve também Helena Silva. Seguia com o namorado no segundo autocarro e quando perguntaram se havia algum médico ou enfermeiro que pudesse ajudar, ofereceu-se. Tem 20 anos e é aluna de Enfermagem. "Ajudei no que pude, mas as coisas funcionaram muito mal. Não é um país de terceiro mundo. É de quarto ou de quinto. A ajuda demorou 45 minutos a chegar e ao fim de cinco horas uma passageira ainda estava encarcerada. Foi difícil manter a calma e esconder as emoções, mesmo sendo isso que nos ensinam no curso. E depois, quando regressámos ao paquete, havia pouca informação e muitos boatos. A Classic International Cruises deu muito pouco apoio. Uma miúda de 12 anos que viajava com a avó que morreu não teve apoio. Fomos nós que a fomos acompanhando durante todo o regresso até Lisboa". A "miúda" é a sobrinha de Fernanda. A mãe teve direito a esperá-la no interior do cais. Evitou a confusão e os curiosos que, quais Velhos do Restelo, murmuraram: "É isto que acontece quando se vai para sítios esquisitos". "Haja dinheiro". "Fiquem antes em Portugal".

Alguns feridos já estão em casa, mas 16 foram para o hospital. Cais encheu-se de curiosos e familiares das vítimas de Marrocos

Fernanda Melo passou a tarde com as mãos coladas às grades de ferro enferrujadas e com a cabeça encaixada nas barras metálicas. A cada barco "grande" que vislumbrava, o coração de 72 anos batia mais depressa. Estava alheia ao enjoativo cheiro da urina acumulada durante anos naquela zona discreta do Porto de Lisboa e agora aquecida e reactivada pelo calor. Alheia às centenas de curiosos que se juntaram no Cais de Alcântara para fotografar com os olhos e com a máquina a chegada do paquete Funchal, que efectuara um cruzeiro temático (dedicado ao fado) de cinco dias. O Cruzeiro do Fado, que terminou oficialmente ontem, acabou mais cedo para os nove portugueses que morreram na quarta-feira num acidente de autocarro a poucos quilómetros de Ceuta quando aproveitaram a escala para fazer uma visita a Tétuan. "Estava lá a minha cunhada e a minha sobrinha. Era uma viagem de avó e neta... e a miúda voltou sozinha", contou, de olhos salgados.

A chegada do paquete, perto das 18h, foi rodeada de fortes medidas de segurança. Dezasseis dos feridos que tiveram condições de regressar com os restantes passageiros do cruzeiro mal saíram do barco entraram em oito ambulâncias e foram transportados para o Hospital Cuf/Infante Santo. No entanto, outros já não precisaram de cuidados hospitalares e preferiram regressar a casa. Foi o caso de Júlio Couta e da sua mulher.

Com as cabeças baixas e chapéus enterrados, tentaram fingir que não faziam parte do grupo que ia no autocarro que capotou. Mas os colares cervicais e os pensos - que não disfarçavam todas as escoriações - denunciaram-nos. "Não quero sequer ver as imagens que passam nas televisões. Nós é que estivemos a tirar mortos e feridos do autocarro. Não houve rapidez em ajudar, mas fomos muito bem atendidos em Ceuta", resumiu Júlio Couta.

Com eles saiu uma maré de passageiros solidários com o que aconteceu com uma parte do grupo e que se abraçavam entre lágrimas e sorrisos às centenas de familiares e amigos (e também cães) que os aguardavam. Isabel Carvalho, de 48 anos, aguardava o filho, dois sobrinhos e uma amiga. Das suas duas irmãs que ficaram em Marrocos, sabe pouco. "Há pouca informação. Uma salvou-se de lhe amputarem a perna, mas a mais velha ainda não consegui confirmar se foi ou não operada. Felizmente o meu filho desobedeceu-me e não quis ir com as tias no autocarro."

Demasiada espera

Ao início da tarde de ontem chegaram também a Lisboa os feridos que vieram num voo da Royal Air Maroc e que foram transportados para hospitais da capital. Os três adultos e uma criança tinham no aeroporto quatro ambulâncias na pista de aterragem. Ao todo, registaram-se 19 feridos graves e 17 ligeiros, segundo fonte governamental. No hospital de Tétuan estavam 11 passageiros e no de Ceuta outros seis, sendo que só os quatro referidos já voltaram a Lisboa. Os nove mortos são esperados esta manhã.

João Paulo Peixoto não esteve entre os feridos "por muito pouco", mas presenciou a espera referida pelos passageiros. Devia ter ido no primeiro autocarro, mas, como estava cheio, mudaram-no. Pouco depois da saída viu o autocarro da frente "a ziguezaguear" e o motorista do seu veículo "a repetir sem parar: "Alá!", "Alá!", "Alá!"".

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Saiu para ir ajudar os outros portugueses juntamente com um médico que seguia na excursão. "Naquele momento não estava a chover, mas a estrada estava molhada. Isso deve ter ajudado ao acidente", começou por explicar João Paulo Peixoto, de 46 anos. "Quando chegámos ao autocarro, já estavam uns marroquinos a tentar desligá-lo e a tirar as primeiras pessoas. Íamos tirando as pessoas como podíamos. A um ritmo de uma pessoa por cada três ou quatro minutos. Vinham feridas, com sangue. Algumas não aguentaram. Deitámo-las na relva com uma toalha na cara", acrescentou.

Velhos do Restelo

Ao lado de João esteve também Helena Silva. Seguia com o namorado no segundo autocarro e quando perguntaram se havia algum médico ou enfermeiro que pudesse ajudar, ofereceu-se. Tem 20 anos e é aluna de Enfermagem. "Ajudei no que pude, mas as coisas funcionaram muito mal. Não é um país de terceiro mundo. É de quarto ou de quinto. A ajuda demorou 45 minutos a chegar e ao fim de cinco horas uma passageira ainda estava encarcerada. Foi difícil manter a calma e esconder as emoções, mesmo sendo isso que nos ensinam no curso. E depois, quando regressámos ao paquete, havia pouca informação e muitos boatos. A Classic International Cruises deu muito pouco apoio. Uma miúda de 12 anos que viajava com a avó que morreu não teve apoio. Fomos nós que a fomos acompanhando durante todo o regresso até Lisboa". A "miúda" é a sobrinha de Fernanda. A mãe teve direito a esperá-la no interior do cais. Evitou a confusão e os curiosos que, quais Velhos do Restelo, murmuraram: "É isto que acontece quando se vai para sítios esquisitos". "Haja dinheiro". "Fiquem antes em Portugal".

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