Almanaque Republicano: A NOITE SANGRENTA – 19 DE OUTUBRO DE 1921

20-01-2011
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"Depois veio a noite infame [19 de Outubro de 1921], onde, além dos actores visíveis, dos marinheiros e dos soldados, dos bonifrates que actuaram entre gritos de loucura, entrou outro actor tremendo, do qual não pudemos mais desviar os olhos – e que não devia fazer parte da peça. De tarde, aquele desgraçado [António Granjo] via os homens porem-lhe cerco como a um bicho e o seu suor era já de agonia. Via-os aproximarem-se – ouvia-os falar na escada do prédio onde se refugiara [António Granjo residia na Rua João Crisóstomo e a sua casa confinava, pelas traseiras, com a morada de Cunha Leal, na Av. Miguel Bombarda, para onde Granjo procurou abrigo, avisado do perigo que corria por um vizinho e seu Irmão da maçonaria, Bernardino Simões, comerciante – consultar, Rocha Martins, “Vermelhos, Brancos e Azuis”, vol.2].Veio depois a noite e eu tenho a impressão nítida de que a mesma figura de ódio – o mesmo fantasma para o qual todos concorremos – passou nas ruas e apagou todos os candeeiros. Os seres medíocres desapareceram na treva - os bonifrates desapareceram: só ficaram bonecos monstruosos, com aspectos imprevistos de loucura e de sonho, que na camioneta fantasma [nome como foi conhecida a camioneta, que transportava os assassinos (10?) que levaram a cabo os crimes perpetuados nesse dia. Entre eles estavam, Benjamim Pereira, Manuel José Carlos e Abel Olímpio (o Dente de Ouro). Pelo que é referido por Berta Maia, viúva de Carlos da Maia (um dos assassinados) a camioneta foi fornecida pelo tenente Mergulhão] procuravam as suas vítimas. Noite de chumbo. No quarto andar da Rua da Madalena, a sombra esmagava-me o coração, reduzindo-o a cisco. Na taberna em frente a mesma música reles de todas as noites não cessava de tocar num realejo a que um galego dava corda ... E a noite prolonga-se, sórdida e satânica.A essa hora o desgraçado consumia a sua agonia no Arsenal, entre rugidos das bestas desencadeadas. – Sangrem-no como a um porco!Outro [Carlos da Maia] é arrancado dos braços da mulher, que grita inutilmente, cheia de dor, pedindo piedade para o marido e o filho que tem nos braços. E a camioneta, onde os bonecos se agitam, percorre as ruas negras, alucinante e trágica. – Almirante [Machado dos Santos], é a sua hora: vai ser fuzilado! – E a voz daquele ingénuo, que quis ser político, jornalista e revolucionário e vai ser, de encontro a uma parede, um farrapo humano a escorrer sangue por todas as feridas, responde: Veja – diz ele para o bandido que lhe fala – que as minhas pulsações não aumentaram. (...)Se todos nos quiséssemos ouvir, encontraríamos, talvez, dentro da nossa alma, a explicação da noite infame e compreenderíamos por que ela foi possível. Ódio, terror e o desconhecido. Andaram também metidos nisso políticos e, ao que se diz, até um padre [referência, presume-se, ao Padre Lima (natural de Estivares), e que juntamente com Fernando de Sousa, ambos do jornal A Voz, mais o tenente Mergulhão, Gastão de Matos, Luiz Moutinho de Carvalho, Carlos Pereira e o Conde de Tarouca, foram considerados, na época, como os principais mandantes dos assassinatos em cadeia – vidé, Berta Maia, As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio ‘O Dente de Ouro’, Lisboa, 1929]– nas ruas são as personagens insignificantes que entram em todas as tragédias. Quem os mandou matar? – porque estas coisas nunca são espontâneas. (...)” Raul Proença, in Memórias, vol. IIIJ.M.M.


"Depois veio a noite infame [19 de Outubro de 1921], onde, além dos actores visíveis, dos marinheiros e dos soldados, dos bonifrates que actuaram entre gritos de loucura, entrou outro actor tremendo, do qual não pudemos mais desviar os olhos – e que não devia fazer parte da peça. De tarde, aquele desgraçado [António Granjo] via os homens porem-lhe cerco como a um bicho e o seu suor era já de agonia. Via-os aproximarem-se – ouvia-os falar na escada do prédio onde se refugiara [António Granjo residia na Rua João Crisóstomo e a sua casa confinava, pelas traseiras, com a morada de Cunha Leal, na Av. Miguel Bombarda, para onde Granjo procurou abrigo, avisado do perigo que corria por um vizinho e seu Irmão da maçonaria, Bernardino Simões, comerciante – consultar, Rocha Martins, “Vermelhos, Brancos e Azuis”, vol.2].Veio depois a noite e eu tenho a impressão nítida de que a mesma figura de ódio – o mesmo fantasma para o qual todos concorremos – passou nas ruas e apagou todos os candeeiros. Os seres medíocres desapareceram na treva - os bonifrates desapareceram: só ficaram bonecos monstruosos, com aspectos imprevistos de loucura e de sonho, que na camioneta fantasma [nome como foi conhecida a camioneta, que transportava os assassinos (10?) que levaram a cabo os crimes perpetuados nesse dia. Entre eles estavam, Benjamim Pereira, Manuel José Carlos e Abel Olímpio (o Dente de Ouro). Pelo que é referido por Berta Maia, viúva de Carlos da Maia (um dos assassinados) a camioneta foi fornecida pelo tenente Mergulhão] procuravam as suas vítimas. Noite de chumbo. No quarto andar da Rua da Madalena, a sombra esmagava-me o coração, reduzindo-o a cisco. Na taberna em frente a mesma música reles de todas as noites não cessava de tocar num realejo a que um galego dava corda ... E a noite prolonga-se, sórdida e satânica.A essa hora o desgraçado consumia a sua agonia no Arsenal, entre rugidos das bestas desencadeadas. – Sangrem-no como a um porco!Outro [Carlos da Maia] é arrancado dos braços da mulher, que grita inutilmente, cheia de dor, pedindo piedade para o marido e o filho que tem nos braços. E a camioneta, onde os bonecos se agitam, percorre as ruas negras, alucinante e trágica. – Almirante [Machado dos Santos], é a sua hora: vai ser fuzilado! – E a voz daquele ingénuo, que quis ser político, jornalista e revolucionário e vai ser, de encontro a uma parede, um farrapo humano a escorrer sangue por todas as feridas, responde: Veja – diz ele para o bandido que lhe fala – que as minhas pulsações não aumentaram. (...)Se todos nos quiséssemos ouvir, encontraríamos, talvez, dentro da nossa alma, a explicação da noite infame e compreenderíamos por que ela foi possível. Ódio, terror e o desconhecido. Andaram também metidos nisso políticos e, ao que se diz, até um padre [referência, presume-se, ao Padre Lima (natural de Estivares), e que juntamente com Fernando de Sousa, ambos do jornal A Voz, mais o tenente Mergulhão, Gastão de Matos, Luiz Moutinho de Carvalho, Carlos Pereira e o Conde de Tarouca, foram considerados, na época, como os principais mandantes dos assassinatos em cadeia – vidé, Berta Maia, As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio ‘O Dente de Ouro’, Lisboa, 1929]– nas ruas são as personagens insignificantes que entram em todas as tragédias. Quem os mandou matar? – porque estas coisas nunca são espontâneas. (...)” Raul Proença, in Memórias, vol. IIIJ.M.M.

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