O filme que não se pode ver apenas duas vezes

14-09-2010
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E se, mesmo sem estar aqui uma obra-prima absoluta, estivesse aqui o Leão de Ouro de Veneza 2010?

Haveria certamente quem gritasse “conluio”, “amizade”, “nepotismo”. Afinal, foi Monte Hellman quem deu a mão a Quentin Tarantino e o ajudou a montar “Cães Danados”.

Mas é irresistível apostar em “Road to Nowhere” (competição) como filme maior do certame para um júri que inclui cineastas como Arnaud Desplechin (e todos sabemos como os franceses amam Hellman...), Luca Guadagnino, Guillermo Arriaga ou Gabriele Salvatores.

É-o porque não se viu este ano em Veneza outro filme que exale tanto amor ao cinema, que defina tão certeiramente a mistura de sonho e pesadelo, fascínio malsão e entrega abnegada, masoquismo e transcendência de quem verdadeiramente vive o cinema.

É-o porque se houve filme cinéfilo na competição 2010, foi este - Preston Sturges, Ingmar Bergman, Victor Erice são referenciados, homenageados directamente (há imagens de “O Espírito da Colmeia”, que Hellman refere na conferência de imprensa ser “uma obra-prima primária”, uma “âncora” para o seu cinema).

“Road to Nowhere” é – diz Hellman - “o meu primeiro filme”. Porque em todos os anteriores ele entrou já com o processo em marcha, enquanto neste esteve envolvido desde o princípio.

Ainda assim, “Road to Nowhere” não é exactamente uma obra-prima. A primeira longa de Monte Hellman em vinte anos não tem actores para isso; tem problemas de ritmo; alterna entre o extraordinário e o pretensioso, o notável e o pomposo. Há momentos em que o digital (mesmo que magnificamente utilizado pelo director de fotografia Josep Civet) é demasiado “bruto”, demasiado artificial; há momentos em que os diálogos são tão banais que nos perguntamos se isto é tudo a sério.

A própria história – de uma rodagem onde as fronteiras entre a realidade quotidiana e a ficção que se está a rodar se começam a confundir – não é nada de novo.

Mas é precisamente na corda bamba entre o sonho e a realidade, que Hellman mantém permanentemente bamba até já não sabermos qual o nível de ficção que estamos a ver, que “Road to Nowhere” se ganha.

Onde o “Mulholland Drive” de David Lynch (com o qual tem muitos pontos de contacto) se perdia rapidamente nos labirintos insondavelmente abstrusos da psique surreal do realizador, Hellman prefere ir esbatendo a “realidade” e a “ficção” até darmos por nós à deriva (os próprios actores confessam: nem sempre sabiam exactamente o que se estava a passar). Onde a “Origem” de Christopher Nolan mantém o mapa dos sonhos sempre precisamente referenciado, Hellman sabe que a sua mais-valia é a sensação de desorientação que constrói.

Voltamos à conferência de imprensa, pouco frequentada, sinal da estranheza que “Road to Nowhere” instalou numa altura em que o cansaço da competição se faz sentir, numa “recta final” pouco estimulante. Voltamos a Hellman: “Um dos meus mentores é Jean Cocteau, que disse que uma obra de arte deve ser difícil de tocar, que temos de voltar a ela uma e outra vez para tentar compreendê-lo. Gosto que “Road to Nowhere” seja misterioso. Gosto, como sugeriu alguém como um slogan para o filme, da ideia que não se pode vê-lo apenas duas vezes.”

(Vale a pena, dizemos nós.)

“Road to Nowhere” é – já que estamos a carregar na cinefilia – uma espécie de “Vertigo” de vão-de-escada, cuja mulher fatal (interpretada fotogenicamente por Shannyn Sossamon) pode, tal como Kim Novak, “viver duas vezes” (para citar o título português do filme de Hitchcock). O centro do filme reside precisamente aí: perceber se Laurel, a actriz inexperiente que o realizador Mitchell contratou para ser a mulher fatal do “film noir” que está a realizar baseado num caso verídico, é ou não Velma, a verdadeira (e desaparecida) mulher fatal do dito caso verídico.

E se, mesmo sem estar aqui uma obra-prima absoluta, estivesse aqui o Leão de Ouro de Veneza 2010?

Haveria certamente quem gritasse “conluio”, “amizade”, “nepotismo”. Afinal, foi Monte Hellman quem deu a mão a Quentin Tarantino e o ajudou a montar “Cães Danados”.

Mas é irresistível apostar em “Road to Nowhere” (competição) como filme maior do certame para um júri que inclui cineastas como Arnaud Desplechin (e todos sabemos como os franceses amam Hellman...), Luca Guadagnino, Guillermo Arriaga ou Gabriele Salvatores.

É-o porque não se viu este ano em Veneza outro filme que exale tanto amor ao cinema, que defina tão certeiramente a mistura de sonho e pesadelo, fascínio malsão e entrega abnegada, masoquismo e transcendência de quem verdadeiramente vive o cinema.

É-o porque se houve filme cinéfilo na competição 2010, foi este - Preston Sturges, Ingmar Bergman, Victor Erice são referenciados, homenageados directamente (há imagens de “O Espírito da Colmeia”, que Hellman refere na conferência de imprensa ser “uma obra-prima primária”, uma “âncora” para o seu cinema).

“Road to Nowhere” é – diz Hellman - “o meu primeiro filme”. Porque em todos os anteriores ele entrou já com o processo em marcha, enquanto neste esteve envolvido desde o princípio.

Ainda assim, “Road to Nowhere” não é exactamente uma obra-prima. A primeira longa de Monte Hellman em vinte anos não tem actores para isso; tem problemas de ritmo; alterna entre o extraordinário e o pretensioso, o notável e o pomposo. Há momentos em que o digital (mesmo que magnificamente utilizado pelo director de fotografia Josep Civet) é demasiado “bruto”, demasiado artificial; há momentos em que os diálogos são tão banais que nos perguntamos se isto é tudo a sério.

A própria história – de uma rodagem onde as fronteiras entre a realidade quotidiana e a ficção que se está a rodar se começam a confundir – não é nada de novo.

Mas é precisamente na corda bamba entre o sonho e a realidade, que Hellman mantém permanentemente bamba até já não sabermos qual o nível de ficção que estamos a ver, que “Road to Nowhere” se ganha.

Onde o “Mulholland Drive” de David Lynch (com o qual tem muitos pontos de contacto) se perdia rapidamente nos labirintos insondavelmente abstrusos da psique surreal do realizador, Hellman prefere ir esbatendo a “realidade” e a “ficção” até darmos por nós à deriva (os próprios actores confessam: nem sempre sabiam exactamente o que se estava a passar). Onde a “Origem” de Christopher Nolan mantém o mapa dos sonhos sempre precisamente referenciado, Hellman sabe que a sua mais-valia é a sensação de desorientação que constrói.

Voltamos à conferência de imprensa, pouco frequentada, sinal da estranheza que “Road to Nowhere” instalou numa altura em que o cansaço da competição se faz sentir, numa “recta final” pouco estimulante. Voltamos a Hellman: “Um dos meus mentores é Jean Cocteau, que disse que uma obra de arte deve ser difícil de tocar, que temos de voltar a ela uma e outra vez para tentar compreendê-lo. Gosto que “Road to Nowhere” seja misterioso. Gosto, como sugeriu alguém como um slogan para o filme, da ideia que não se pode vê-lo apenas duas vezes.”

(Vale a pena, dizemos nós.)

“Road to Nowhere” é – já que estamos a carregar na cinefilia – uma espécie de “Vertigo” de vão-de-escada, cuja mulher fatal (interpretada fotogenicamente por Shannyn Sossamon) pode, tal como Kim Novak, “viver duas vezes” (para citar o título português do filme de Hitchcock). O centro do filme reside precisamente aí: perceber se Laurel, a actriz inexperiente que o realizador Mitchell contratou para ser a mulher fatal do “film noir” que está a realizar baseado num caso verídico, é ou não Velma, a verdadeira (e desaparecida) mulher fatal do dito caso verídico.

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