Aurora, de presa política a magistrada do Ministério Público

02-02-2011
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"Tentei fazer um espelho com pratas, mas não dava. Nunca me vi a um espelho lá dentro e sentia falta de me ver. Vi-me algumas vezes, mais tarde, em reflexo, num plástico transparente duma espécie de janela da porta divisória da cela, quando estava em contra-luz." (p. 91)

Esta passagem é talvez um dos momentos mais sensíveis e mais pessoais - e por isso mais desconcertantes - da biografia política de Aurora Rodrigues, intitulada Gente Comum - Uma História da PIDE, editada pela 100 Luz (custa 12 euros), e que hoje é lançada na antiga prisão política de Caxias, com apresentação dos historiadores Miguel Cardina e Fernando Rosas, este último antigo dirigente do MRPP, partido político a que Aurora Rodrigues pertenceu.

Hoje com 59 anos e magistrada do Ministério Público em Évora, Aurora Rodrigues aceitou em 2009 reconstruir a sua experiência de oposicionista à ditadura e de prisão pela PIDE, onde, de acordo com camaradas seus da épocacontactados pelo P2, foi dos estudantes mais brutalmente torturados. Gente Comum - Uma História da PIDE é um peculiar e impressionante testemunho e um importante livro de história oral, organizado pelo historiador António Monteiro Cardoso, também ele antigo militante do MRPP, e pela antropóloga Paula Godinho. Numa edição apoiada pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, o livro apresenta textos de enquadramento dos dois investigadores, que servem de introdução a um envolvente e marcante depoimento na primeira pessoa feito por Aurora Rodrigues.

Um relato de memória que a própria justifica: "Acho importante contar o que me aconteceu, porque existe a ideia de que só eram presos e torturados grandes políticos, esquecendo-se que também o eram pessoas comuns, que era aquilo que eu era, sempre fui e ainda sou. Às vezes, leio aqueles livros sobre grandes figuras míticas que foram torturadas e não falaram, mas a verdade é que não foram só eles. Muitas pessoas comuns que se opunham ao regime, por uma razão ou por outra, foram torturadas e conseguiram resistir e nisso não há nada de extraordinário. (...) O medo existe sempre e nisso não há nada de extraordinário." (p. 117)

Mas o livro de Aurora Rodrigues lembra também a experiência que esta mulher viveu ao voltar a Caxias como presa política após o 25 de Abril. Foi presa a 28 de Maio de 1975, quando, acompanhada pelo ex-líder do MRPP Arnaldo de Matos, chegava à sede do partido, na Avenida de Álvares Cabral, em Lisboa. Descobriram então as instalações ocupadas pela tropa, que levou todos os que aí se encontravam. Foi uma operação a nível nacional, que deteve 432 pessoas nas sedes do partido após este ter sido proibido, por decreto de 17 de Maio, de concorrer à Assembleia Constituinte.

A franqueza e o desassombro de Aurora Rodrigues são uma constante, bem como a real coragem desta mulher que certamente surgiu aos olhos da ditadura e da polícia política como uma provocadora, tal a sua capacidade de afrontar os torturadores e de resistir à violência e à brutalidade com que foi tratada.

Cantar para não ceder

Nascida em 20 de Janeiro de 1952, em Vale da Azinheira, Minas de São Domingos, no Alentejo, e filha de um anarco-sindicalista, Aurora Rodrigues matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa, em 1969/70, com 17 anos. Abordada pelo PCP, trabalha com o MRPP, fundado em 1970, pois considera este movimento mais abertamente contra a guerra colonial. Só aderirá formalmente depois de ver de perto o também estudante Ribeiro dos Santosser assassinado pela PIDE - episódio que é relatado no livro com uma genuinidade e uma emoção contida raras.

"Tentei fazer um espelho com pratas, mas não dava. Nunca me vi a um espelho lá dentro e sentia falta de me ver. Vi-me algumas vezes, mais tarde, em reflexo, num plástico transparente duma espécie de janela da porta divisória da cela, quando estava em contra-luz." (p. 91)

Esta passagem é talvez um dos momentos mais sensíveis e mais pessoais - e por isso mais desconcertantes - da biografia política de Aurora Rodrigues, intitulada Gente Comum - Uma História da PIDE, editada pela 100 Luz (custa 12 euros), e que hoje é lançada na antiga prisão política de Caxias, com apresentação dos historiadores Miguel Cardina e Fernando Rosas, este último antigo dirigente do MRPP, partido político a que Aurora Rodrigues pertenceu.

Hoje com 59 anos e magistrada do Ministério Público em Évora, Aurora Rodrigues aceitou em 2009 reconstruir a sua experiência de oposicionista à ditadura e de prisão pela PIDE, onde, de acordo com camaradas seus da épocacontactados pelo P2, foi dos estudantes mais brutalmente torturados. Gente Comum - Uma História da PIDE é um peculiar e impressionante testemunho e um importante livro de história oral, organizado pelo historiador António Monteiro Cardoso, também ele antigo militante do MRPP, e pela antropóloga Paula Godinho. Numa edição apoiada pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, o livro apresenta textos de enquadramento dos dois investigadores, que servem de introdução a um envolvente e marcante depoimento na primeira pessoa feito por Aurora Rodrigues.

Um relato de memória que a própria justifica: "Acho importante contar o que me aconteceu, porque existe a ideia de que só eram presos e torturados grandes políticos, esquecendo-se que também o eram pessoas comuns, que era aquilo que eu era, sempre fui e ainda sou. Às vezes, leio aqueles livros sobre grandes figuras míticas que foram torturadas e não falaram, mas a verdade é que não foram só eles. Muitas pessoas comuns que se opunham ao regime, por uma razão ou por outra, foram torturadas e conseguiram resistir e nisso não há nada de extraordinário. (...) O medo existe sempre e nisso não há nada de extraordinário." (p. 117)

Mas o livro de Aurora Rodrigues lembra também a experiência que esta mulher viveu ao voltar a Caxias como presa política após o 25 de Abril. Foi presa a 28 de Maio de 1975, quando, acompanhada pelo ex-líder do MRPP Arnaldo de Matos, chegava à sede do partido, na Avenida de Álvares Cabral, em Lisboa. Descobriram então as instalações ocupadas pela tropa, que levou todos os que aí se encontravam. Foi uma operação a nível nacional, que deteve 432 pessoas nas sedes do partido após este ter sido proibido, por decreto de 17 de Maio, de concorrer à Assembleia Constituinte.

A franqueza e o desassombro de Aurora Rodrigues são uma constante, bem como a real coragem desta mulher que certamente surgiu aos olhos da ditadura e da polícia política como uma provocadora, tal a sua capacidade de afrontar os torturadores e de resistir à violência e à brutalidade com que foi tratada.

Cantar para não ceder

Nascida em 20 de Janeiro de 1952, em Vale da Azinheira, Minas de São Domingos, no Alentejo, e filha de um anarco-sindicalista, Aurora Rodrigues matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa, em 1969/70, com 17 anos. Abordada pelo PCP, trabalha com o MRPP, fundado em 1970, pois considera este movimento mais abertamente contra a guerra colonial. Só aderirá formalmente depois de ver de perto o também estudante Ribeiro dos Santosser assassinado pela PIDE - episódio que é relatado no livro com uma genuinidade e uma emoção contida raras.

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