Carlos Tê

14-09-2010
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Há diferenças magníficas entre os dois mundos e ainda bem. Por exemplo, a nível da percepção e da ansiedade. Os homens são mais ansiosos, as mulheres tendem a um equilíbrio maior, há quem diga que o estrogéneo tranquiliza e o androgéneo intranquiliza.

Faço parte de uma geração que fez a escola separada. Não tive irmãs, sou filho único. Desde muito cedo tendi a sacralizar o mundo das mulheres. O contacto era de raspão, o que serviu para espicaçar a sedução e a curiosidade. Vivi a infância e a adolescência nessa tensão e nessa aflição: aí vêm elas! Isso contribuiu para me transformar no que sou, atento e curioso. Uma coisa sempre me perturbou: a risada. Foi sempre perturbador, o medo do riso das mulheres. Nunca se sabe se se estão a rir de nós, das nossas tentativas patéticas de lhes agradar.

Há qualquer coisa que nos diz que para ter direito a um lugar exclusivo na alma de alguém é preciso fazer alguma coisa. Ou se é muito bonito e entra-se naturalmente em estado de graça, ou então é preciso bater as asas como os pavões. A minha estratégia era o riso, mas era conseguido à base de uma estratégia de autodesvalorização, quase clownesca. Como não havia uma cultura universal recíproca para fazer humor com as coisas do mundo, tinha de se partir de uma base qualquer. Olha o meu esforço! Olha para mim em cima do arame! Olha como eu caio e como tu te ris quando eu caio!

Os únicos que não têm de passar por esta aprovação são os gays, que viram as costas majestaticamente às mulheres e elas gostam. Dão-se ao luxo de ser amigos. Um tipo tem de trabalhar muito para estar sempre naquela fronteira tenebrosa entre o amigo e o amante.

Essa fronteira nunca há-de estar definida, está sempre latente uma migalha de sedução. As mulheres são capazes de burilar a pedra da amizade de uma maneira mais isenta de sexo. Os homens não, lá no fundo do cérebro há sempre um saltitãozito a dizer é pá, que tal? Há ali sempre uma máquina de possibilidades a funcionar, que a gente vai de algum modo dissimulando com elegância e lhaneza.

O princípio da canção é sempre o mesmo: deixa-me ser teu escravo. É assim que nasce o rock & roll, é aquele lamento contínuo. Se ela não gosta de ti, vais escrever uma canção, um poema, um romance. Há quem diga até que sem a recusa não havia pelo menos metade da literatura. Nas minhas letras, e em mais uns milhões no mundo todo, o tema é sempre o amor.

A banda era um sítio de canastrões que tinham algum jeito para tocar e se juntavam para lamentar, para verter as mágoas em formato de canção. Se entrasse uma figura feminina na banda, como cantora, era logo uma tensão muito grande para ver quem tinha direito ao prémio principal, muitas vezes até à desintegração.

Ou então era a bruxa má que entrava, aquilo a que eu chamo o "complexo Yoko Ono". Ela chegou e a banda, que vivia numa zona saudavelmente masculina, ficou quebrada. A pequena bruxa má fisgou o Lennon e a banda sentiu que ele tinha saído. Quando nas bandas há um que começa a levar a namorada para o ensaio, está feito. Ela começa a dizer "não estás a ser bem valorizado", "devias ter direito a compor também", e ele começa a acreditar...

Isto é quase um arquétipo. Lembro-me sempre do papel da Connie, no Padrinho, aquela actriz fantástica [Talia Shire] muito frágil, muito viúva mas sempre a mandar. Ela é que decidia: é preciso matar, mata. E o próprio Pacino devia dizer "isto não pode ser assim" e ela sempre pragmática, como quem decide uma lista de compras.

As mulheres são muito mais pragmáticas, os homens têm tendência para andar mais em círculo, e fazem do engonhanço a sua energia criativa.

O que me atrai numa mulher continua a ser a inteligência. Uma das coisas que me chateavam nas raparigas era uma certa vacuidade, quando eu já me preocupava com algumas coisas. As primeiras amigas a sério que eu tive no período do 25 de Abril - que permitiu pela primeira vez uma circulação entre classes - eram muito cultas, ainda por cima bonitas, um 2 em 1 irresistível. Foram muito importantes na minha formação porque me trouxeram coisas que eu desconhecia, cinema, livros. A minha fasquia ficou irremediavelmente alta.

A amizade masculina tem regras específicas, é desinteressada. Com um homem, consigo ter conversas infindáveis sobre banalidades, há ali uma espécie de terra estéril. Com uma mulher fico impaciente, sinto que estou a perder tempo se não houver ali um lado desconhecido, uma vereda nova.

As mulheres chegam a uma idade em que encaram o sexo de uma maneira mais pacífica, apaziguada. Os homens conceptualizam mais o sexo, chegam ao fim da vida e continuam ansiosos, como diz o Philip Roth, a pensar que "uma erecção depois dos 60 anos é um prego arrancado ao caixão".

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As mulheres chegam ao fim da vida com muito pouca paciência para os homens. O politicamente correcto é muito lampeiro a usar a palavra misoginia em relação às mulheres, mas não há palavra correspondente para o contrário, para a atitude de uma mulher em relação aos homens.

A mulher é mais completa, mais autocentrada. Os homens são muito mais à toa, não sabem fazer nada, nunca conseguiram autonomia. E há mulheres para quem isso é uma forma de poder, eles andam por ali a toque de caixa, a ver o ar dos pneus, encarregados das pequenas coisas enquanto elas ficam a supervisionar o grande mundo doméstico. a

anasdiasg@gmail.com

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com o letrista

Há diferenças magníficas entre os dois mundos e ainda bem. Por exemplo, a nível da percepção e da ansiedade. Os homens são mais ansiosos, as mulheres tendem a um equilíbrio maior, há quem diga que o estrogéneo tranquiliza e o androgéneo intranquiliza.

Faço parte de uma geração que fez a escola separada. Não tive irmãs, sou filho único. Desde muito cedo tendi a sacralizar o mundo das mulheres. O contacto era de raspão, o que serviu para espicaçar a sedução e a curiosidade. Vivi a infância e a adolescência nessa tensão e nessa aflição: aí vêm elas! Isso contribuiu para me transformar no que sou, atento e curioso. Uma coisa sempre me perturbou: a risada. Foi sempre perturbador, o medo do riso das mulheres. Nunca se sabe se se estão a rir de nós, das nossas tentativas patéticas de lhes agradar.

Há qualquer coisa que nos diz que para ter direito a um lugar exclusivo na alma de alguém é preciso fazer alguma coisa. Ou se é muito bonito e entra-se naturalmente em estado de graça, ou então é preciso bater as asas como os pavões. A minha estratégia era o riso, mas era conseguido à base de uma estratégia de autodesvalorização, quase clownesca. Como não havia uma cultura universal recíproca para fazer humor com as coisas do mundo, tinha de se partir de uma base qualquer. Olha o meu esforço! Olha para mim em cima do arame! Olha como eu caio e como tu te ris quando eu caio!

Os únicos que não têm de passar por esta aprovação são os gays, que viram as costas majestaticamente às mulheres e elas gostam. Dão-se ao luxo de ser amigos. Um tipo tem de trabalhar muito para estar sempre naquela fronteira tenebrosa entre o amigo e o amante.

Essa fronteira nunca há-de estar definida, está sempre latente uma migalha de sedução. As mulheres são capazes de burilar a pedra da amizade de uma maneira mais isenta de sexo. Os homens não, lá no fundo do cérebro há sempre um saltitãozito a dizer é pá, que tal? Há ali sempre uma máquina de possibilidades a funcionar, que a gente vai de algum modo dissimulando com elegância e lhaneza.

O princípio da canção é sempre o mesmo: deixa-me ser teu escravo. É assim que nasce o rock & roll, é aquele lamento contínuo. Se ela não gosta de ti, vais escrever uma canção, um poema, um romance. Há quem diga até que sem a recusa não havia pelo menos metade da literatura. Nas minhas letras, e em mais uns milhões no mundo todo, o tema é sempre o amor.

A banda era um sítio de canastrões que tinham algum jeito para tocar e se juntavam para lamentar, para verter as mágoas em formato de canção. Se entrasse uma figura feminina na banda, como cantora, era logo uma tensão muito grande para ver quem tinha direito ao prémio principal, muitas vezes até à desintegração.

Ou então era a bruxa má que entrava, aquilo a que eu chamo o "complexo Yoko Ono". Ela chegou e a banda, que vivia numa zona saudavelmente masculina, ficou quebrada. A pequena bruxa má fisgou o Lennon e a banda sentiu que ele tinha saído. Quando nas bandas há um que começa a levar a namorada para o ensaio, está feito. Ela começa a dizer "não estás a ser bem valorizado", "devias ter direito a compor também", e ele começa a acreditar...

Isto é quase um arquétipo. Lembro-me sempre do papel da Connie, no Padrinho, aquela actriz fantástica [Talia Shire] muito frágil, muito viúva mas sempre a mandar. Ela é que decidia: é preciso matar, mata. E o próprio Pacino devia dizer "isto não pode ser assim" e ela sempre pragmática, como quem decide uma lista de compras.

As mulheres são muito mais pragmáticas, os homens têm tendência para andar mais em círculo, e fazem do engonhanço a sua energia criativa.

O que me atrai numa mulher continua a ser a inteligência. Uma das coisas que me chateavam nas raparigas era uma certa vacuidade, quando eu já me preocupava com algumas coisas. As primeiras amigas a sério que eu tive no período do 25 de Abril - que permitiu pela primeira vez uma circulação entre classes - eram muito cultas, ainda por cima bonitas, um 2 em 1 irresistível. Foram muito importantes na minha formação porque me trouxeram coisas que eu desconhecia, cinema, livros. A minha fasquia ficou irremediavelmente alta.

A amizade masculina tem regras específicas, é desinteressada. Com um homem, consigo ter conversas infindáveis sobre banalidades, há ali uma espécie de terra estéril. Com uma mulher fico impaciente, sinto que estou a perder tempo se não houver ali um lado desconhecido, uma vereda nova.

As mulheres chegam a uma idade em que encaram o sexo de uma maneira mais pacífica, apaziguada. Os homens conceptualizam mais o sexo, chegam ao fim da vida e continuam ansiosos, como diz o Philip Roth, a pensar que "uma erecção depois dos 60 anos é um prego arrancado ao caixão".

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As mulheres chegam ao fim da vida com muito pouca paciência para os homens. O politicamente correcto é muito lampeiro a usar a palavra misoginia em relação às mulheres, mas não há palavra correspondente para o contrário, para a atitude de uma mulher em relação aos homens.

A mulher é mais completa, mais autocentrada. Os homens são muito mais à toa, não sabem fazer nada, nunca conseguiram autonomia. E há mulheres para quem isso é uma forma de poder, eles andam por ali a toque de caixa, a ver o ar dos pneus, encarregados das pequenas coisas enquanto elas ficam a supervisionar o grande mundo doméstico. a

anasdiasg@gmail.com

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