O partido mais português de Portugal

19-12-2009
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Portugal no seu normal É voz corrente entre os sociais-democratas que o PSD é "o mais português" dos nossos partidos políticos. Não tenho conhecimentos suficientes sobre o povo do PSD que me permitam contestar este diagnóstico, mas desconfio que a sua veracidade assenta, não em boas, mas em más razões. Ou seja, o PSD será o mais português no que o português tem de características que estão longe de serem louváveis. Para começar, o PSD é um partido sem "mundo". Salvas raras excepções, que o são por mérito próprio, nunca ninguém conheceu os seus dirigentes lá fora, ou, quando não puderam deixar de os conhecer - como sucedeu durante os dez anos de poder de Cavaco Silva -, eles não suscitaram nem simpatias nem entusiasmos. A Europa e o mundo aprenderam a conhecer e a respeitar socialistas como Soares, Guterres, Vitorino, Gama, vá lá, Sampaio. Mas ninguém sabe quem são Cavaco, Fernando Nogueira, Marcelo, Santana Lopes. A excepção aqui é Durão Barroso, que se tornou conhecido pelas piores razões quando da invasão do Iraque e que, por exclusão de partes disponíveis, foi feito a contragosto presidente da Comissão Europeia, onde o seu desempenho até esta data está, aliás, longe de entusiasmar. Ora, não ter "mundo", no sentido cultural, sociológico, profissional, é uma característica atávica dos portugueses - não como forma de chauvinismo arrogante, como sucede com os franceses, mas antes como um saloiismo auto-suficiente, que remete para a herança cultural salazarista. O PSD típico acha que basta ser um português "a sério", tipo Alberto João Jardim ou Valentim Loureiro, para impressionar o pagode. Desde que Mário Soares fechou a porta da Internacional Socialista ao PSD de Sá Carneiro, nunca mais este conseguiu encontrar quem se identificasse com ele ou quem o reconhecesse como gente sua - à parte a filiação ex officio no grupo liberal do Parlamento Europeu, onde também consta o CDS. Mas, se este umbiguismo nacionalista chega para ganhar congressos e, eventualmente até, chegar ao topo do partido, torna-se evidente que, uma vez aí chegados, os líderes sentem falta de credibilidade fora do seu pequeno mundo. Sintomaticamente, a primeira entrevista dada por Santana Lopes assim que se viu transplantado para S. Bento era encabeçada por uma grande fotografia desse mestre das aparências a ler o Le Monde (em pé, coisa que deve dar imenso jeito...). Em segundo lugar, o PSD não tem, nunca teve, ideologia. Se lermos hoje o programa do partido, ele é de tal forma irreal face à realidade ocorrida, que a única razão plausível para continuar a existir como tal é justamente a necessidade de dispensar o partido de ter de pensar qual seria o seu programa, hoje em dia. Aqui e além, ciclicamente, ouvem-se apelos de regresso à "social-democracia", face ao "liberalismo" dominante. Mas há sérias razões para duvidar de que alguém militante do PSD saiba, de facto, o que é a social-democracia e, menos ainda, que estivesse disposto a aceitá-la (até o PS, quanto mais o PSD!). Basta pensarmos que um dos expoentes da social-democracia lá existente é Alberto João Jardim - o baronete de um regime autoritário, onde se confunde o pior do capitalismo com o pior do socialismo, numa lógica que apenas visa a manutenção no poder a qualquer custo de uma clique que tem muito pouco de social e nada de democrática. Talvez Sá Carneiro, se tivesse tido tempo, viesse a evoluir para um pensamento social-democrata. Mas é duvidoso: ele era, sobretudo, um liberal, no sentido político e cultural, que era o melhor da tradição política portuense e que nada tem que ver, obviamente, com esses ridículos ex-esquerdistas hoje autoproclamados liberais, admiradores de Bush e de tudo o que ofende o verdadeiro património político do liberalismo. Com a legitimidade política de ter sido o fundador do partido e com a autoridade moral de ter um passado e um pensamento liberal estruturado, Sá Carneiro poderia ter dotado o PSD de um código de referências ético-políticas que a chantagem revolucionária de então e a sua morte prematura impediram para sempre. Não deixou herança, exactamente porque não teve tempo para deixar doutrina, e, por isso, os que, oportunisticamente, se reclamam seus herdeiros - quando nada mais têm de pensamento próprio para apresentar - não passam de espúrios beatos de sacristia. Depois dele, o PSD nunca mais teve um líder ideológico. Todos - Emídio Guerreiro, Balsemão, Rui Machete, Mota Pinto, Fernando Nogueira, Marcelo, Durão Barroso, Santana Lopes e, agora, Marques Mendes - foram líderes de circunstância onde as ideias apareceram sempre como um luxo e um desperdício. O único que fez as próprias circunstâncias foi Cavaco Silva. Mas Cavaco também não tinha, nem tem, ideologia alguma: se lhe perguntarem onde fica o bem e onde fica o mal, ele não saberá responder. Também não tinha, ao contrário de Sá Carneiro, uma visão cultural da vida e da política. Nem sequer entendia a sua necessidade, e por isso é que julgou que cultura era fazer de Santana Lopes secretário de Estado da coisa, com a missão única de arregimentar "intelectuais" e "artistas" para a propaganda do partido - o que ele fez tão bem, que ainda hoje o próprio Santana Lopes arrasta atrás de si um séquito de artistas subsidiados pelo Estado, ao serviço do PSD e dele próprio. Mas Cavaco acreditava em três coisas: a autoridade do Estado, a oportunidade da integração europeia (que se devia a Soares) e a modernização do país. É engraçado que hoje, quando Cavaco caminha a passos que julga seguros para a Presidência da República, a maioria das pessoas esqueceu-se já do que foi o balanço efectivo da sua década de governação e está pronta a ver nele uma espécie de última regeneração possível do país. Porque, depois da desistência de Guterres, da fuga sem honra de Durão Barroso e da aventura enxovalhante vivida com Santana Lopes, o comum dos portugueses já esqueceu de que a oportunidade europeia se traduziu no roubo e desperdício de milhões a favor de novas fortunas construídas da noite para o dia e que a modernização do país se traduziu em nada - na educação, na saúde, na justiça, na administração pública, na indústria, na agricultura. Ou seja, das três crenças de Cavaco Silva, apenas uma se mantém, como tarefa realizada, na memória dos portugueses: a autoridade do Estado. O que se deve mais à sua pessoa e à sua personalidade do que à recuperação da imagem e do bom nome do próprio Estado. Voltando então ao ponto de partida, se o PSD é o Portugal comum e típico, aquele que esteve reunido em Pombal no passado fim-de-semana, deveria reflectir o estado de espírito do comum dos portugueses. Em Pombal, eles acabaram por se conformar com Cavaco Presidente, sem grande entusiasmo e apenas porque sem alternativa: acreditam que ele lhes pode dar a chefia do Estado, e só por isso lhe perdoam ter ajudado a minar-lhes o poder que detinham ainda há dois meses. Escolheram Marques Mendes porque não tiveram a coragem ou a voragem suicida de regressar ao santanismo, via Luís Filipe Meneses, mas deram-lhe o menor número de votos possíveis para lhe mostrar que está a prazo - provavelmente só até às autárquicas. E guardaram todo o seu coração e os seus aplausos para o "menino-guerreiro" e o seu eterno discurso sobre si próprio (como se aplaudissem o vigésimo ano consecutivo de récitas de Jesus Christ Superstar) e para o seu agora discípulo de Vila Nova de Gaia. Mas, desta vez, eu ouso suspeitar que "o mais português dos partidos portugueses" não absorveu nem foi capaz de reflectir aquilo que uma massa imensa de eleitores disse nas urnas, em 20 de Fevereiro passado, sobre o que era o seu diagnóstico acerca da última passagem do PSD pelo poder. Os portugueses condenaram de forma veemente, quer o consulado errático e terminado de forma desonrosa de Durão Barroso quer, obviamente, a libertinagem governativa dos meses de desvario da desvairada gente de Santana Lopes. Condenaram-nos em nome dos resultados, em nome do estilo e em nome da dignidade mínima que a política tem de ter. Os congressistas de Pombal - cujo grosso caucionou a gestão de Barroso e cobriu a sua fuga, e aceitou a solução palaciana e a aposta suicidária em Santana - aparentemente ainda não perceberam por que foram varridos do poder. Ora, se eles não percebem o que quase dois terços dos portugueses perceberam, é porque ficaram para trás no país onde vivem. Não podendo mudar de país, talvez a solução seja o PSD mudar de gente. Essa é a missão de Marques Mendes. Miguel Sousa Tavares - "Público" - 15.abr.05 .

Portugal no seu normal É voz corrente entre os sociais-democratas que o PSD é "o mais português" dos nossos partidos políticos. Não tenho conhecimentos suficientes sobre o povo do PSD que me permitam contestar este diagnóstico, mas desconfio que a sua veracidade assenta, não em boas, mas em más razões. Ou seja, o PSD será o mais português no que o português tem de características que estão longe de serem louváveis. Para começar, o PSD é um partido sem "mundo". Salvas raras excepções, que o são por mérito próprio, nunca ninguém conheceu os seus dirigentes lá fora, ou, quando não puderam deixar de os conhecer - como sucedeu durante os dez anos de poder de Cavaco Silva -, eles não suscitaram nem simpatias nem entusiasmos. A Europa e o mundo aprenderam a conhecer e a respeitar socialistas como Soares, Guterres, Vitorino, Gama, vá lá, Sampaio. Mas ninguém sabe quem são Cavaco, Fernando Nogueira, Marcelo, Santana Lopes. A excepção aqui é Durão Barroso, que se tornou conhecido pelas piores razões quando da invasão do Iraque e que, por exclusão de partes disponíveis, foi feito a contragosto presidente da Comissão Europeia, onde o seu desempenho até esta data está, aliás, longe de entusiasmar. Ora, não ter "mundo", no sentido cultural, sociológico, profissional, é uma característica atávica dos portugueses - não como forma de chauvinismo arrogante, como sucede com os franceses, mas antes como um saloiismo auto-suficiente, que remete para a herança cultural salazarista. O PSD típico acha que basta ser um português "a sério", tipo Alberto João Jardim ou Valentim Loureiro, para impressionar o pagode. Desde que Mário Soares fechou a porta da Internacional Socialista ao PSD de Sá Carneiro, nunca mais este conseguiu encontrar quem se identificasse com ele ou quem o reconhecesse como gente sua - à parte a filiação ex officio no grupo liberal do Parlamento Europeu, onde também consta o CDS. Mas, se este umbiguismo nacionalista chega para ganhar congressos e, eventualmente até, chegar ao topo do partido, torna-se evidente que, uma vez aí chegados, os líderes sentem falta de credibilidade fora do seu pequeno mundo. Sintomaticamente, a primeira entrevista dada por Santana Lopes assim que se viu transplantado para S. Bento era encabeçada por uma grande fotografia desse mestre das aparências a ler o Le Monde (em pé, coisa que deve dar imenso jeito...). Em segundo lugar, o PSD não tem, nunca teve, ideologia. Se lermos hoje o programa do partido, ele é de tal forma irreal face à realidade ocorrida, que a única razão plausível para continuar a existir como tal é justamente a necessidade de dispensar o partido de ter de pensar qual seria o seu programa, hoje em dia. Aqui e além, ciclicamente, ouvem-se apelos de regresso à "social-democracia", face ao "liberalismo" dominante. Mas há sérias razões para duvidar de que alguém militante do PSD saiba, de facto, o que é a social-democracia e, menos ainda, que estivesse disposto a aceitá-la (até o PS, quanto mais o PSD!). Basta pensarmos que um dos expoentes da social-democracia lá existente é Alberto João Jardim - o baronete de um regime autoritário, onde se confunde o pior do capitalismo com o pior do socialismo, numa lógica que apenas visa a manutenção no poder a qualquer custo de uma clique que tem muito pouco de social e nada de democrática. Talvez Sá Carneiro, se tivesse tido tempo, viesse a evoluir para um pensamento social-democrata. Mas é duvidoso: ele era, sobretudo, um liberal, no sentido político e cultural, que era o melhor da tradição política portuense e que nada tem que ver, obviamente, com esses ridículos ex-esquerdistas hoje autoproclamados liberais, admiradores de Bush e de tudo o que ofende o verdadeiro património político do liberalismo. Com a legitimidade política de ter sido o fundador do partido e com a autoridade moral de ter um passado e um pensamento liberal estruturado, Sá Carneiro poderia ter dotado o PSD de um código de referências ético-políticas que a chantagem revolucionária de então e a sua morte prematura impediram para sempre. Não deixou herança, exactamente porque não teve tempo para deixar doutrina, e, por isso, os que, oportunisticamente, se reclamam seus herdeiros - quando nada mais têm de pensamento próprio para apresentar - não passam de espúrios beatos de sacristia. Depois dele, o PSD nunca mais teve um líder ideológico. Todos - Emídio Guerreiro, Balsemão, Rui Machete, Mota Pinto, Fernando Nogueira, Marcelo, Durão Barroso, Santana Lopes e, agora, Marques Mendes - foram líderes de circunstância onde as ideias apareceram sempre como um luxo e um desperdício. O único que fez as próprias circunstâncias foi Cavaco Silva. Mas Cavaco também não tinha, nem tem, ideologia alguma: se lhe perguntarem onde fica o bem e onde fica o mal, ele não saberá responder. Também não tinha, ao contrário de Sá Carneiro, uma visão cultural da vida e da política. Nem sequer entendia a sua necessidade, e por isso é que julgou que cultura era fazer de Santana Lopes secretário de Estado da coisa, com a missão única de arregimentar "intelectuais" e "artistas" para a propaganda do partido - o que ele fez tão bem, que ainda hoje o próprio Santana Lopes arrasta atrás de si um séquito de artistas subsidiados pelo Estado, ao serviço do PSD e dele próprio. Mas Cavaco acreditava em três coisas: a autoridade do Estado, a oportunidade da integração europeia (que se devia a Soares) e a modernização do país. É engraçado que hoje, quando Cavaco caminha a passos que julga seguros para a Presidência da República, a maioria das pessoas esqueceu-se já do que foi o balanço efectivo da sua década de governação e está pronta a ver nele uma espécie de última regeneração possível do país. Porque, depois da desistência de Guterres, da fuga sem honra de Durão Barroso e da aventura enxovalhante vivida com Santana Lopes, o comum dos portugueses já esqueceu de que a oportunidade europeia se traduziu no roubo e desperdício de milhões a favor de novas fortunas construídas da noite para o dia e que a modernização do país se traduziu em nada - na educação, na saúde, na justiça, na administração pública, na indústria, na agricultura. Ou seja, das três crenças de Cavaco Silva, apenas uma se mantém, como tarefa realizada, na memória dos portugueses: a autoridade do Estado. O que se deve mais à sua pessoa e à sua personalidade do que à recuperação da imagem e do bom nome do próprio Estado. Voltando então ao ponto de partida, se o PSD é o Portugal comum e típico, aquele que esteve reunido em Pombal no passado fim-de-semana, deveria reflectir o estado de espírito do comum dos portugueses. Em Pombal, eles acabaram por se conformar com Cavaco Presidente, sem grande entusiasmo e apenas porque sem alternativa: acreditam que ele lhes pode dar a chefia do Estado, e só por isso lhe perdoam ter ajudado a minar-lhes o poder que detinham ainda há dois meses. Escolheram Marques Mendes porque não tiveram a coragem ou a voragem suicida de regressar ao santanismo, via Luís Filipe Meneses, mas deram-lhe o menor número de votos possíveis para lhe mostrar que está a prazo - provavelmente só até às autárquicas. E guardaram todo o seu coração e os seus aplausos para o "menino-guerreiro" e o seu eterno discurso sobre si próprio (como se aplaudissem o vigésimo ano consecutivo de récitas de Jesus Christ Superstar) e para o seu agora discípulo de Vila Nova de Gaia. Mas, desta vez, eu ouso suspeitar que "o mais português dos partidos portugueses" não absorveu nem foi capaz de reflectir aquilo que uma massa imensa de eleitores disse nas urnas, em 20 de Fevereiro passado, sobre o que era o seu diagnóstico acerca da última passagem do PSD pelo poder. Os portugueses condenaram de forma veemente, quer o consulado errático e terminado de forma desonrosa de Durão Barroso quer, obviamente, a libertinagem governativa dos meses de desvario da desvairada gente de Santana Lopes. Condenaram-nos em nome dos resultados, em nome do estilo e em nome da dignidade mínima que a política tem de ter. Os congressistas de Pombal - cujo grosso caucionou a gestão de Barroso e cobriu a sua fuga, e aceitou a solução palaciana e a aposta suicidária em Santana - aparentemente ainda não perceberam por que foram varridos do poder. Ora, se eles não percebem o que quase dois terços dos portugueses perceberam, é porque ficaram para trás no país onde vivem. Não podendo mudar de país, talvez a solução seja o PSD mudar de gente. Essa é a missão de Marques Mendes. Miguel Sousa Tavares - "Público" - 15.abr.05 .

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