Caminhos da Memória

28-05-2010
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Um texto de Adriana Bebiano (*)

O feminismo permanece estranho, mesmo para a esquerda. Da sua história destacam-se muitas vezes os clichés, e das questões que são hoje objecto de lutas e debate interno pouco passa para o público em geral, para além das mediáticas «quotas» ou dos casos de «violência de género». Foi por isso particularmente importante que a Ágora: O Debate Peninsular tenha incluído na sua 10ª edição, que acaba de ter lugar aqui ai lado, em Cáceres, um curso de dois dias designado «A Agenda Feminista: Chegar e Ficar». A Ágora é um evento anual, da responsabilidade da Junta da Estremadura espanhola, que tem por objectivo promover o conhecimento mútuo e o intercâmbio entre Portugal e Espanha. Apesar de habitarem espaços contíguos e de terem um passado em larga medida partilhado, sob o franquismo e o salazarismo, como ficou claro das conferências inaugurais de Amelia Valcárcel e Manuela Tavares, as feministas de ambos os lados da fronteira têm vivido, até certo ponto, no desconhecimento mútuo, que procuram agora superar.

A convite das coordenadoras do curso, Joana Amaral Dias e Monserrat Boix, e perante um público sempre numeroso, um grupo de activistas, académicas, jornalistas e políticas portuguesas e espanholas debaterem, por vezes calorosamente, questões como a história comum, as novas tecnologias, a educação, as representações, a pobreza, a migração e a exclusão social das mulheres. Se a história e os problemas presentes atravessam a fronteira, há, no entanto, diferenças notáveis entre os dois lados, que resultam tanto de realidades como de posições teóricas e políticas diversas, as quais se fizeram sentir com grande impacto no decorrer do encontro.

Em Espanha, o «feminismo de estado», nascido do combate contra a grande subalternidade que as mulheres detiveram durante o franquismo, tem dado resultados notáveis, perceptíveis ao mais distraído leitor de jornais. Ele compreende uma corrente que defende, acima de tudo, a necessidade da conquista de lugares de decisão dentro do sistema e dos aparelhos políticos, lugares que uma vez conquistados promoveriam uma paridade de facto. Basta reparar no actual governo espanhol, porventura o primeiro paritário da História, para comprovarmos que a estratégia tem tido resultados benéficos. O número de espanholas detentoras de cargos políticos, tanto ao nível regional como nacional, que estiveram presentes na Ágora – em larga percentagem afectas ao PSOE, partido que foi instrumental nestas conquistas – tornou ainda mais notórias as diferenças entre a situação das espanholas e a das portuguesas, cuja participação nos mecanismos de poder é visivelmente bem menor.

É verdade que Portugal tem uma das legislações mais avançadas do mundo em termos da garantia dos direitos das mulheres. Sabe-se, no entanto, que uma legislação apenas justa não conduz a uma situação de paridade, e que práticas sociais e culturais arcaicas persistem, mesmo em áreas e ambientes conotados com a esquerda. Tudo isto foi dito e exemplificado durante o curso da Ágora, com o apoio de estatísticas, testemunhos e provas documentais. Se as posições de poder detidas pelas portuguesas estão ainda longe da paridade – e por paridade entende-se uma situação em que o sexo menos representado detém pelo menos 40% dos lugares – é notável, no entanto, a diversidade e a vitalidade dos movimentos e dos estudos feministas portugueses. Uma parte importante do activismo feminista português encontra-se entretanto em ONGs, merecendo destaque a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) que esteve representada em Cáceres por Elizabete Brasil, cuja defesa apaixonada das vítimas de violência doméstica e das mulheres imigrantes empolgou e comoveu a assistência. Foi provavelmente nesta área que se encontraram maiores afinidades entre os dois países: a intervenção de Ana Juan, responsável pela área de migrações do sindicato UGT (espanhola) lembrou, de uma forma pungente, a existência tantas vezes ignorada, mas comum aos dois lados, das mulheres imigrantes, particularmente as ilegais, desprovidas de quaisquer direitos de cidadania.

Outra vertente activa do feminismo português encontra-se – talvez paradoxalmente – na Universidade. Em Cáceres estiveram investigadoras da Universidade Aberta, de Coimbra e do Minho, e do ISCTE. No ensino, em observatórios, laboratórios e projectos de investigação de ponta e no ensino – quase invisíveis nos meios de comunicação – vai-se fazendo ali o levantamento dos problemas e a reflexão, que coexistem e muitas vezes coincidem com o combate no terreno.

O governo que acaba de tomar posse em Portugal tem, pela primeira vez, uma Secretaria de Estado da Igualdade. Elza Pais, até agora presidente da Comissão para a Cidadania a Igualdade de Género (CIG) – criada apenas em 2006, na dependência da Presidência do Conselho de Ministros – ocupa esta secretaria. Se a indiferença que sua criação causou é significativa do alheamento colectivo do país da importância destas questões, ela deve no entanto ser saudada com algum optimismo. E, pelo menos em parte, representa um marco num caminho que tem sido longo e permanece cheio de dificuldades. O que está na «agenda feminista» é um futuro mais justo para todos, mulheres e homens. Se nos encontramos ou não no bom caminho – e eu acredito que estamos – a história futura o dirá.

(*) Biografia de Adriana Bebiano

Um texto de Adriana Bebiano (*)

O feminismo permanece estranho, mesmo para a esquerda. Da sua história destacam-se muitas vezes os clichés, e das questões que são hoje objecto de lutas e debate interno pouco passa para o público em geral, para além das mediáticas «quotas» ou dos casos de «violência de género». Foi por isso particularmente importante que a Ágora: O Debate Peninsular tenha incluído na sua 10ª edição, que acaba de ter lugar aqui ai lado, em Cáceres, um curso de dois dias designado «A Agenda Feminista: Chegar e Ficar». A Ágora é um evento anual, da responsabilidade da Junta da Estremadura espanhola, que tem por objectivo promover o conhecimento mútuo e o intercâmbio entre Portugal e Espanha. Apesar de habitarem espaços contíguos e de terem um passado em larga medida partilhado, sob o franquismo e o salazarismo, como ficou claro das conferências inaugurais de Amelia Valcárcel e Manuela Tavares, as feministas de ambos os lados da fronteira têm vivido, até certo ponto, no desconhecimento mútuo, que procuram agora superar.

A convite das coordenadoras do curso, Joana Amaral Dias e Monserrat Boix, e perante um público sempre numeroso, um grupo de activistas, académicas, jornalistas e políticas portuguesas e espanholas debaterem, por vezes calorosamente, questões como a história comum, as novas tecnologias, a educação, as representações, a pobreza, a migração e a exclusão social das mulheres. Se a história e os problemas presentes atravessam a fronteira, há, no entanto, diferenças notáveis entre os dois lados, que resultam tanto de realidades como de posições teóricas e políticas diversas, as quais se fizeram sentir com grande impacto no decorrer do encontro.

Em Espanha, o «feminismo de estado», nascido do combate contra a grande subalternidade que as mulheres detiveram durante o franquismo, tem dado resultados notáveis, perceptíveis ao mais distraído leitor de jornais. Ele compreende uma corrente que defende, acima de tudo, a necessidade da conquista de lugares de decisão dentro do sistema e dos aparelhos políticos, lugares que uma vez conquistados promoveriam uma paridade de facto. Basta reparar no actual governo espanhol, porventura o primeiro paritário da História, para comprovarmos que a estratégia tem tido resultados benéficos. O número de espanholas detentoras de cargos políticos, tanto ao nível regional como nacional, que estiveram presentes na Ágora – em larga percentagem afectas ao PSOE, partido que foi instrumental nestas conquistas – tornou ainda mais notórias as diferenças entre a situação das espanholas e a das portuguesas, cuja participação nos mecanismos de poder é visivelmente bem menor.

É verdade que Portugal tem uma das legislações mais avançadas do mundo em termos da garantia dos direitos das mulheres. Sabe-se, no entanto, que uma legislação apenas justa não conduz a uma situação de paridade, e que práticas sociais e culturais arcaicas persistem, mesmo em áreas e ambientes conotados com a esquerda. Tudo isto foi dito e exemplificado durante o curso da Ágora, com o apoio de estatísticas, testemunhos e provas documentais. Se as posições de poder detidas pelas portuguesas estão ainda longe da paridade – e por paridade entende-se uma situação em que o sexo menos representado detém pelo menos 40% dos lugares – é notável, no entanto, a diversidade e a vitalidade dos movimentos e dos estudos feministas portugueses. Uma parte importante do activismo feminista português encontra-se entretanto em ONGs, merecendo destaque a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) que esteve representada em Cáceres por Elizabete Brasil, cuja defesa apaixonada das vítimas de violência doméstica e das mulheres imigrantes empolgou e comoveu a assistência. Foi provavelmente nesta área que se encontraram maiores afinidades entre os dois países: a intervenção de Ana Juan, responsável pela área de migrações do sindicato UGT (espanhola) lembrou, de uma forma pungente, a existência tantas vezes ignorada, mas comum aos dois lados, das mulheres imigrantes, particularmente as ilegais, desprovidas de quaisquer direitos de cidadania.

Outra vertente activa do feminismo português encontra-se – talvez paradoxalmente – na Universidade. Em Cáceres estiveram investigadoras da Universidade Aberta, de Coimbra e do Minho, e do ISCTE. No ensino, em observatórios, laboratórios e projectos de investigação de ponta e no ensino – quase invisíveis nos meios de comunicação – vai-se fazendo ali o levantamento dos problemas e a reflexão, que coexistem e muitas vezes coincidem com o combate no terreno.

O governo que acaba de tomar posse em Portugal tem, pela primeira vez, uma Secretaria de Estado da Igualdade. Elza Pais, até agora presidente da Comissão para a Cidadania a Igualdade de Género (CIG) – criada apenas em 2006, na dependência da Presidência do Conselho de Ministros – ocupa esta secretaria. Se a indiferença que sua criação causou é significativa do alheamento colectivo do país da importância destas questões, ela deve no entanto ser saudada com algum optimismo. E, pelo menos em parte, representa um marco num caminho que tem sido longo e permanece cheio de dificuldades. O que está na «agenda feminista» é um futuro mais justo para todos, mulheres e homens. Se nos encontramos ou não no bom caminho – e eu acredito que estamos – a história futura o dirá.

(*) Biografia de Adriana Bebiano

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