A fazer jus ao tema, o número cinco da revista Big Ode volta a aparecer num formato alternativo ao das revistas mais convencionais. Dificulta a leitura, mas confere à publicação uma beleza estética que a transforma num objecto singular de indiscutível deleite visual. São cinco desdobráveis tingidos com múltiplas formas de recriar o pesadelo, sendo que a primeira das quais encontra-se no próprio formato da edição. Um pesadelo é um sonho doloroso, uma experiência inquietante que nos desassossega. Geralmente, encontramos nos pesadelos associações psicanalíticas com a "vida real". Mas a própria "vida real" pode ser tomada como um pesadelo. Na verdade, o que ressalta neste número é, precisamente, a possibilidade de interpretar e desdobrar o conceito de pesadelo em escalas expressivas muito distintas. De um realismo atroz à desfiguração onírica, passando, inclusive, pelo jogo simbólico que sobrepõe a consciência do pesadelo à sua inconsciência intrínseca, os trabalhos coligidos neste número podiam ser alvo, no seu conjunto, de uma reflexão mais aprofundada sobre os elos de ligação que encontramos na teia sombria dos recalcamentos. Muito pertinente, a aranha da capa chama-nos a atenção para isso mesmo. No primeiro desdobrável encontramos micronarrativas de Mário Calado Pedro, poemas visuais de Helen White (sugiro uma visita a este sítio: http://www.krikri.be/helen/) e Renaat Ramon, um microdrama poético-visual de Tiago A. da Veiga, um conto de Fernando Esteves Pinto, composições poético-fotográficas da dupla Margem d’Arte (Frederico Fonseca/Mário Lisboa Duarte), poemas de Rafael Neira e de Luci n da Lourenço – neste caso, acompanhado de uma fotografia -, desenhos de Rui Effe e da dupla Sal & Ana, um poema concreto de Serse Luigetti e o editorial de Rodrigo Miragaia: «A guerra de todas as angústias e ansiedades, o bafo do inimigo no meu pêlo, o metal frio que penetra a carne, a destrói como uma maçã podre, estremece e suga a vida restante. A rotina, os objectos que me controlam, a forma suave como se encaixam em mim, e logo me ultrapassam». Está introduzida a viagem: não há coordenadas fixas, o pesadelo desenvolve-se na corrente do caos, mergulha na obscuridade das forças que animam o corpo para que o corpo não seja apenas um cadáver adiado. Criar, ou recriar, é estar predisposto à expulsão da energia que essas forças emanam, expulsá-las no corpo de uma linguagem tão frágil e complexa quanto a teia da aranha. O segundo desdobrável oferece-nos a poesia visual de Ângelo Mazzuchelli e de Maria João Lopes Fernandes, um poema de Sara Monteiro ilustrado por Margarida Parente, poemas de Arturo Accio e deste que vos escreve, epigramas de Ricardo Riancho, uma narrativa breve de Rui Costa, poemas de Raquel Coelho ilustrados por Sara Franco, trabalhos visuais de António Carvalho. Deixem-me brincar com a revista, organizá-la à minha maneira e chamar terceiro ao desdobrável seguinte. Podia ser o quarto ou o quinto, para mim será o terceiro. No meu terceiro desdobrável estrangulo o olhar sobre a desconfortável poesia visual de Miguel Jimenez, prossigo no território dantesco da narrativa de João Pereira de Matos, divirto-me com o conto de inclinação neo-realista de JoãoFerreira, inquieto-me com os poemas de António Orihuela, João Meirinhos e Ausias Millet, deixo-me fascinar pelas composições poético-visuais de João Concha e de Francisco Carrola, colo os olhos às figuras mitológicas de João Samões e danço com a prosa poética de Sandra G. D. Depois descanso. Volto a dobrar tudo respeitando as dobras originais e parto para uma nova aventura. Regressa o universo visual de Francisco Carrola – um escorpião que me sinto muito tentado a tatuar algures no corpo -, regressa igualmente a poesia concreta de Serse Luigetti. Aprecio os poemas de Rui Carlos Souto, quatro poemas em torno de pesadelos muito reais. Há ainda desenhos de Tim Gaze, textos experimentais de Rodrigo Miragaia, poemas visuais de Ângelo Ricciardi e de Fernando Aguiar, um conto de Vítor Vicente. Deixo para o fim os desenhos surrealistas de Cristóvão Crespo – conheço este rapaz, tem um talento magnífico -, um conto de Luís Ene ilustrado por Margarida Delgado, dois poemas surpreendentemente experimentais – tendo em conta as publicações anteriores da autora – de Rute Mota, narrativas de Ana Marques da Silva e de Virgílio Vieira Tebas, poemas visuais da argentina Hilda Paz e da brasileira Constança Lucas, um soneto de Sílvia Effe, mais dois poemas de Rita Grácio e de Fernando Dinis. Excelente trabalho do Rodrigo Miragaia, da Sara Rocio e da Maria João Lopes Fernandes. Uma revista para guardar até que o sono eterno nos liberte de todos os pesadelos. O tema do próximo número é o Silêncio.
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A fazer jus ao tema, o número cinco da revista Big Ode volta a aparecer num formato alternativo ao das revistas mais convencionais. Dificulta a leitura, mas confere à publicação uma beleza estética que a transforma num objecto singular de indiscutível deleite visual. São cinco desdobráveis tingidos com múltiplas formas de recriar o pesadelo, sendo que a primeira das quais encontra-se no próprio formato da edição. Um pesadelo é um sonho doloroso, uma experiência inquietante que nos desassossega. Geralmente, encontramos nos pesadelos associações psicanalíticas com a "vida real". Mas a própria "vida real" pode ser tomada como um pesadelo. Na verdade, o que ressalta neste número é, precisamente, a possibilidade de interpretar e desdobrar o conceito de pesadelo em escalas expressivas muito distintas. De um realismo atroz à desfiguração onírica, passando, inclusive, pelo jogo simbólico que sobrepõe a consciência do pesadelo à sua inconsciência intrínseca, os trabalhos coligidos neste número podiam ser alvo, no seu conjunto, de uma reflexão mais aprofundada sobre os elos de ligação que encontramos na teia sombria dos recalcamentos. Muito pertinente, a aranha da capa chama-nos a atenção para isso mesmo. No primeiro desdobrável encontramos micronarrativas de Mário Calado Pedro, poemas visuais de Helen White (sugiro uma visita a este sítio: http://www.krikri.be/helen/) e Renaat Ramon, um microdrama poético-visual de Tiago A. da Veiga, um conto de Fernando Esteves Pinto, composições poético-fotográficas da dupla Margem d’Arte (Frederico Fonseca/Mário Lisboa Duarte), poemas de Rafael Neira e de Luci n da Lourenço – neste caso, acompanhado de uma fotografia -, desenhos de Rui Effe e da dupla Sal & Ana, um poema concreto de Serse Luigetti e o editorial de Rodrigo Miragaia: «A guerra de todas as angústias e ansiedades, o bafo do inimigo no meu pêlo, o metal frio que penetra a carne, a destrói como uma maçã podre, estremece e suga a vida restante. A rotina, os objectos que me controlam, a forma suave como se encaixam em mim, e logo me ultrapassam». Está introduzida a viagem: não há coordenadas fixas, o pesadelo desenvolve-se na corrente do caos, mergulha na obscuridade das forças que animam o corpo para que o corpo não seja apenas um cadáver adiado. Criar, ou recriar, é estar predisposto à expulsão da energia que essas forças emanam, expulsá-las no corpo de uma linguagem tão frágil e complexa quanto a teia da aranha. O segundo desdobrável oferece-nos a poesia visual de Ângelo Mazzuchelli e de Maria João Lopes Fernandes, um poema de Sara Monteiro ilustrado por Margarida Parente, poemas de Arturo Accio e deste que vos escreve, epigramas de Ricardo Riancho, uma narrativa breve de Rui Costa, poemas de Raquel Coelho ilustrados por Sara Franco, trabalhos visuais de António Carvalho. Deixem-me brincar com a revista, organizá-la à minha maneira e chamar terceiro ao desdobrável seguinte. Podia ser o quarto ou o quinto, para mim será o terceiro. No meu terceiro desdobrável estrangulo o olhar sobre a desconfortável poesia visual de Miguel Jimenez, prossigo no território dantesco da narrativa de João Pereira de Matos, divirto-me com o conto de inclinação neo-realista de JoãoFerreira, inquieto-me com os poemas de António Orihuela, João Meirinhos e Ausias Millet, deixo-me fascinar pelas composições poético-visuais de João Concha e de Francisco Carrola, colo os olhos às figuras mitológicas de João Samões e danço com a prosa poética de Sandra G. D. Depois descanso. Volto a dobrar tudo respeitando as dobras originais e parto para uma nova aventura. Regressa o universo visual de Francisco Carrola – um escorpião que me sinto muito tentado a tatuar algures no corpo -, regressa igualmente a poesia concreta de Serse Luigetti. Aprecio os poemas de Rui Carlos Souto, quatro poemas em torno de pesadelos muito reais. Há ainda desenhos de Tim Gaze, textos experimentais de Rodrigo Miragaia, poemas visuais de Ângelo Ricciardi e de Fernando Aguiar, um conto de Vítor Vicente. Deixo para o fim os desenhos surrealistas de Cristóvão Crespo – conheço este rapaz, tem um talento magnífico -, um conto de Luís Ene ilustrado por Margarida Delgado, dois poemas surpreendentemente experimentais – tendo em conta as publicações anteriores da autora – de Rute Mota, narrativas de Ana Marques da Silva e de Virgílio Vieira Tebas, poemas visuais da argentina Hilda Paz e da brasileira Constança Lucas, um soneto de Sílvia Effe, mais dois poemas de Rita Grácio e de Fernando Dinis. Excelente trabalho do Rodrigo Miragaia, da Sara Rocio e da Maria João Lopes Fernandes. Uma revista para guardar até que o sono eterno nos liberte de todos os pesadelos. O tema do próximo número é o Silêncio.