Defesa do Interesse Público: [Opinião] A Rotunda não ganha com o ícone

15-10-2009
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Jornal PÚBLICO . Local Porto . 19/4/2005A Rotunda não ganha com o íconepor José Manuel Soares, arquitecto, redactor do Programa da Casa da MúsicaO perímetro bastante contínuo e relativamente consolidado da Rotunda da Boavista precisava de um dos seus "gomos" definidores destruído e interrompido? Julgo que não. Pelo contrário. A rotunda ganhou com a descontinuidade? O novo edifício contrabalança a perda? Não sei. Parece-me bem que não.1. Casa, s.f. edifício para habitação, morada, moradia, mansão, lar, vivenda; família, estirpe, (...)2. Palácio, s.m. casa de reis ou de família nobre; (por ext.) casa grande e aparatosa, edifício majestoso.1,2 - Texto Editora, Dicionário Universal da Língua PortuguesaEstamos em festa com a inauguração da Casa da Música. Finalmente, existe em Portugal um espaço exclusivamente dedicado à música, ou antes, às músicas. Além disso, a sala parece possuir, como se desejava desde o início, uma forte personalidade acústica. É seguramente uma das grandes vitórias em todo este processo. Os grandes compositores, maestros e intérpretes só agora começam a usá-la. Mas alguns deles já se pronunciaram nesse sentido e, portanto, poderemos acreditar que será um espaço de referência no mundo da música. Se um dia alguém disser que Bach, Maria João Pires ou Manuela Azevedo se ouvem e se sentem lá de uma maneira especial, única, própria e caracterizada, então a vitória será mesmo muitíssimo mais importante...Toda a equipa das Porto 2001/Casa da Música e o Pedro Burmester foram os que inicialmente formularam aquela vontade e, finalmente, garantiram que este facto se tornasse realidade. As equipas que a projectaram e a construíram, claro, também... O arquitecto cumpriu. Mas, na verdade, não lhe restava outra hipótese. As referidas equipas funcionaram muito bem. Gastou-se muito mais dinheiro do que o previsto? Sim. Mas também não se previa aquele tipo de obra. Portanto ...Mas, falando no arquitecto, que dizer da "arquitectura", do "ícone"? Ao desembrulhar o pacote que trazia a maqueta do concurso, fiquei desconsolado; sentindo os gritos de entusiasmo à minha volta, fui ficando envolvido pelas qualidades e modernidade que o projecto apontava e fui percebendo que a atitude era forte e propunha algo de novo - fazer "levitar" e abrir para a cidade dois auditórios que normalmente se encerram e vivem para dentro, por razões acústicas... Como os outros dois concorrentes apresentaram fraquíssimas e infelizes ideias, também não havia grande alternativa... Mas dizia desconsolado porquê? Por duas razões:1. A primeira tinha a ver com o programa. Passo a transcrever partes de dois textos produzidos para o lançamento do concurso de ideias: "(...) a programação terá que ser muito versátil e a adequação dos espaços a este objectivo geral tem que estar assegurada; não poderá haver constrangimentos espaciais a esta finalidade fulcral da futura instituição; (...) a dessacralização da música clássica deverá ser um factor a ter em conta na qualidade dos espaços a criar; os espaços da Casa da Música devem ser convidativos, "fáceis" e participativos de outros espaços de transição com o exterior, não havendo grandes constrangimentos no acesso ao interior; (...) não deverá ser só o espaço comummente designado de foyer de dois auditórios (...) deverão ser espaços para estar e percorrer (...) em que não se sinta controlo e qualquer constrangimento em os usar e atravessar" (excertos do relatório prévio à redacção do Programa Preliminar da Casa da Música);"(...) o espaço do foyer deverá ter uma polivalência efectiva; deverá ser um espaço multifuncional aberto e comunicante com o exterior; (...) deverá ter vida própria, espaço de acesso a diferentes serviços/locais com grande autonomia temporal e funcional dos auditórios - restaurante/snack-bar, café-concerto com espaço para cibermúsica e um pequeno palco improvisado, espaços de divulgação e venda de bens ligados à música como, discoteca, videoteca, CD-ROM, instrumentos, biblioteca, espaços para programas educativos/baby-sitting, etc; o desenho deste espaço fundamental da Casa da Música deverá ser pensado de modo a estar assegurada uma forte e franca relação com espaço exterior, para "animação de rua" ou de "praça" (esplanada, auditório de ar livre, representações folclóricas/étnicas). (...)" (excertos do Programa do Concurso da Casa da Música entregue aos concorrentes).É evidente que a proposta ganhadora não teve em conta o conteúdo programático atrás referido. Porquê? Porque apostou na dita arquitectura-"objecto". Porque fez prevalecer um objecto contentor de dois auditórios cujos espaços não coincidem com a estrutura que os suportam a tudo o resto, e isto à custa de um descontrolo completo de todos os espaços interiores restantes que, com astúcia (e oportunismo), assim foram alegremente assumidos. Mas não só. Porque esta arquitectura tem mais impacto, é pensada para ser ícone; sacrifica todos os aspectos programáticos à sua evidência formal; precisa de espaço e distância para se "monumentalizar"; funciona, portanto, em contraste e em oposição ao contexto. Tem aquela forma para não rachar, abater e cair - que o digam os esforçados e geniais engenheiros que projectaram a estrutura -, mesmo que para tal se inventem funções para justificar os espaços sobrantes - veja-se o bar sem vistas ao nível do 11.º(!) piso!Poderá dizer-se: é assim que todos os monumentos se fazem, para além de que o poder centrípeto que um monumento possui em virtude do seu sucesso e notoriedade é suficiente para lhe dar a vida que necessita. Será assim? Não tenho a certeza. Não sei se não se estará a sacralizar ainda mais a música clássica. A música popular faz-se em qualquer lado e, se calhar, é por isso que é popular... A Casa da Música não é qualquer lado! É mais "difícil" entrar lá do que numa catedral ou num palácio da Justiça (agora que muitos já são denominados "casa da Justiça"). O arquitecto de Roterdão não tornou a Casa num Palácio da Música? Não será o edifício mais elitista, porque distante, inatravessável e denso, do Porto? Não lhe chamam rochedo? Será que alguém distraído passeando pela Boavista (?) entrará, quase sem querer, no "Palácio da Música" e, já agora, assistirá a um concerto qualquer e, já agora, descubrirá a música? Ou só interessam os já experts? Essa ideia "democrática" do funcionamento urbano é tonta, não sendo assim que se passam as coisas?... Talvez alguns digam que sim.Lembro-me de uma frase que ouvi na 2001: não queremos "outra Gulbenkian"! Mas então aquilo que construímos agora é mais "aberto" do que aquela instituição essencialmente lisboeta? Julgo que nem pensar. Os convidativos jardins com livre entrada da Av. de Berna, abertos quase todo o dia, não atestam isso? O Centro Cultural de Belém como proposta urbana aberta, polivalente e não-elitista, não sendo uma arquitectura de embasbacar, não é mais culta, menos parola, mais integrada e mais resistente ao tempo e às modas? O CCB não deixou restos nem provocou rupturas urbanas. Não é ícone, mas funciona com um diálogo contido e positivo com o que se passa à sua volta. O ícone que foi (e já não é, passado pouco tempo) o Museu Guggenheim de Bilbau não nos faz pensar um bocado? Apesar de tudo, o museu de Bilbau foi implantado numa zona não comprometida e em reestruturação da cidade.2. O que não é o caso do contexto da Rotunda da Boavista - a segunda razão do meu desconsolo. O seu perímetro bastante contínuo e relativamente consolidado precisava de um dos seus "gomos" definidores destruído e interrompido? Julgo que não. Pelo contrário. A rotunda ganhou com a descontinuidade? O novo edifício contrabalança a perda? Não sei. Parece-me bem que não. Julgo que o arquitecto Koolhaas também teve, a determinada altura, essa percepção, ao propor que todo o espaço envolvente do edifício fosse revestido com um pavimento ondulante de travertino (a ondulação era de aproximadamente 1,5 m!). Esse intuito não era mais do que a confirmação implícita de que aquele espaço não servia para nada (a não ser para contemplar a sua obra e a afastar o mais possível dos edifícios envolventes pobres, tristes e pouco interessantes). A câmara municipal impôs-se e felizmente só se construíram aquelas duas enormes ondas abortivas! Em Roterdão, também não o deixariam fazer isso. E se calhar muito mais.Agora que ele se vai rir de nós, quando se meter no avião, a pensar na permissão que nós - pobres, tristes e pouco interessantes - lhe demos para abrir o janelão no edifício do banco, ai isso vai, vai.(O título é da responsabilidade do PÚBLICO)

Jornal PÚBLICO . Local Porto . 19/4/2005A Rotunda não ganha com o íconepor José Manuel Soares, arquitecto, redactor do Programa da Casa da MúsicaO perímetro bastante contínuo e relativamente consolidado da Rotunda da Boavista precisava de um dos seus "gomos" definidores destruído e interrompido? Julgo que não. Pelo contrário. A rotunda ganhou com a descontinuidade? O novo edifício contrabalança a perda? Não sei. Parece-me bem que não.1. Casa, s.f. edifício para habitação, morada, moradia, mansão, lar, vivenda; família, estirpe, (...)2. Palácio, s.m. casa de reis ou de família nobre; (por ext.) casa grande e aparatosa, edifício majestoso.1,2 - Texto Editora, Dicionário Universal da Língua PortuguesaEstamos em festa com a inauguração da Casa da Música. Finalmente, existe em Portugal um espaço exclusivamente dedicado à música, ou antes, às músicas. Além disso, a sala parece possuir, como se desejava desde o início, uma forte personalidade acústica. É seguramente uma das grandes vitórias em todo este processo. Os grandes compositores, maestros e intérpretes só agora começam a usá-la. Mas alguns deles já se pronunciaram nesse sentido e, portanto, poderemos acreditar que será um espaço de referência no mundo da música. Se um dia alguém disser que Bach, Maria João Pires ou Manuela Azevedo se ouvem e se sentem lá de uma maneira especial, única, própria e caracterizada, então a vitória será mesmo muitíssimo mais importante...Toda a equipa das Porto 2001/Casa da Música e o Pedro Burmester foram os que inicialmente formularam aquela vontade e, finalmente, garantiram que este facto se tornasse realidade. As equipas que a projectaram e a construíram, claro, também... O arquitecto cumpriu. Mas, na verdade, não lhe restava outra hipótese. As referidas equipas funcionaram muito bem. Gastou-se muito mais dinheiro do que o previsto? Sim. Mas também não se previa aquele tipo de obra. Portanto ...Mas, falando no arquitecto, que dizer da "arquitectura", do "ícone"? Ao desembrulhar o pacote que trazia a maqueta do concurso, fiquei desconsolado; sentindo os gritos de entusiasmo à minha volta, fui ficando envolvido pelas qualidades e modernidade que o projecto apontava e fui percebendo que a atitude era forte e propunha algo de novo - fazer "levitar" e abrir para a cidade dois auditórios que normalmente se encerram e vivem para dentro, por razões acústicas... Como os outros dois concorrentes apresentaram fraquíssimas e infelizes ideias, também não havia grande alternativa... Mas dizia desconsolado porquê? Por duas razões:1. A primeira tinha a ver com o programa. Passo a transcrever partes de dois textos produzidos para o lançamento do concurso de ideias: "(...) a programação terá que ser muito versátil e a adequação dos espaços a este objectivo geral tem que estar assegurada; não poderá haver constrangimentos espaciais a esta finalidade fulcral da futura instituição; (...) a dessacralização da música clássica deverá ser um factor a ter em conta na qualidade dos espaços a criar; os espaços da Casa da Música devem ser convidativos, "fáceis" e participativos de outros espaços de transição com o exterior, não havendo grandes constrangimentos no acesso ao interior; (...) não deverá ser só o espaço comummente designado de foyer de dois auditórios (...) deverão ser espaços para estar e percorrer (...) em que não se sinta controlo e qualquer constrangimento em os usar e atravessar" (excertos do relatório prévio à redacção do Programa Preliminar da Casa da Música);"(...) o espaço do foyer deverá ter uma polivalência efectiva; deverá ser um espaço multifuncional aberto e comunicante com o exterior; (...) deverá ter vida própria, espaço de acesso a diferentes serviços/locais com grande autonomia temporal e funcional dos auditórios - restaurante/snack-bar, café-concerto com espaço para cibermúsica e um pequeno palco improvisado, espaços de divulgação e venda de bens ligados à música como, discoteca, videoteca, CD-ROM, instrumentos, biblioteca, espaços para programas educativos/baby-sitting, etc; o desenho deste espaço fundamental da Casa da Música deverá ser pensado de modo a estar assegurada uma forte e franca relação com espaço exterior, para "animação de rua" ou de "praça" (esplanada, auditório de ar livre, representações folclóricas/étnicas). (...)" (excertos do Programa do Concurso da Casa da Música entregue aos concorrentes).É evidente que a proposta ganhadora não teve em conta o conteúdo programático atrás referido. Porquê? Porque apostou na dita arquitectura-"objecto". Porque fez prevalecer um objecto contentor de dois auditórios cujos espaços não coincidem com a estrutura que os suportam a tudo o resto, e isto à custa de um descontrolo completo de todos os espaços interiores restantes que, com astúcia (e oportunismo), assim foram alegremente assumidos. Mas não só. Porque esta arquitectura tem mais impacto, é pensada para ser ícone; sacrifica todos os aspectos programáticos à sua evidência formal; precisa de espaço e distância para se "monumentalizar"; funciona, portanto, em contraste e em oposição ao contexto. Tem aquela forma para não rachar, abater e cair - que o digam os esforçados e geniais engenheiros que projectaram a estrutura -, mesmo que para tal se inventem funções para justificar os espaços sobrantes - veja-se o bar sem vistas ao nível do 11.º(!) piso!Poderá dizer-se: é assim que todos os monumentos se fazem, para além de que o poder centrípeto que um monumento possui em virtude do seu sucesso e notoriedade é suficiente para lhe dar a vida que necessita. Será assim? Não tenho a certeza. Não sei se não se estará a sacralizar ainda mais a música clássica. A música popular faz-se em qualquer lado e, se calhar, é por isso que é popular... A Casa da Música não é qualquer lado! É mais "difícil" entrar lá do que numa catedral ou num palácio da Justiça (agora que muitos já são denominados "casa da Justiça"). O arquitecto de Roterdão não tornou a Casa num Palácio da Música? Não será o edifício mais elitista, porque distante, inatravessável e denso, do Porto? Não lhe chamam rochedo? Será que alguém distraído passeando pela Boavista (?) entrará, quase sem querer, no "Palácio da Música" e, já agora, assistirá a um concerto qualquer e, já agora, descubrirá a música? Ou só interessam os já experts? Essa ideia "democrática" do funcionamento urbano é tonta, não sendo assim que se passam as coisas?... Talvez alguns digam que sim.Lembro-me de uma frase que ouvi na 2001: não queremos "outra Gulbenkian"! Mas então aquilo que construímos agora é mais "aberto" do que aquela instituição essencialmente lisboeta? Julgo que nem pensar. Os convidativos jardins com livre entrada da Av. de Berna, abertos quase todo o dia, não atestam isso? O Centro Cultural de Belém como proposta urbana aberta, polivalente e não-elitista, não sendo uma arquitectura de embasbacar, não é mais culta, menos parola, mais integrada e mais resistente ao tempo e às modas? O CCB não deixou restos nem provocou rupturas urbanas. Não é ícone, mas funciona com um diálogo contido e positivo com o que se passa à sua volta. O ícone que foi (e já não é, passado pouco tempo) o Museu Guggenheim de Bilbau não nos faz pensar um bocado? Apesar de tudo, o museu de Bilbau foi implantado numa zona não comprometida e em reestruturação da cidade.2. O que não é o caso do contexto da Rotunda da Boavista - a segunda razão do meu desconsolo. O seu perímetro bastante contínuo e relativamente consolidado precisava de um dos seus "gomos" definidores destruído e interrompido? Julgo que não. Pelo contrário. A rotunda ganhou com a descontinuidade? O novo edifício contrabalança a perda? Não sei. Parece-me bem que não. Julgo que o arquitecto Koolhaas também teve, a determinada altura, essa percepção, ao propor que todo o espaço envolvente do edifício fosse revestido com um pavimento ondulante de travertino (a ondulação era de aproximadamente 1,5 m!). Esse intuito não era mais do que a confirmação implícita de que aquele espaço não servia para nada (a não ser para contemplar a sua obra e a afastar o mais possível dos edifícios envolventes pobres, tristes e pouco interessantes). A câmara municipal impôs-se e felizmente só se construíram aquelas duas enormes ondas abortivas! Em Roterdão, também não o deixariam fazer isso. E se calhar muito mais.Agora que ele se vai rir de nós, quando se meter no avião, a pensar na permissão que nós - pobres, tristes e pouco interessantes - lhe demos para abrir o janelão no edifício do banco, ai isso vai, vai.(O título é da responsabilidade do PÚBLICO)

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