"Quis transmitir essa forma muito natural de viver a morte"

20-04-2011
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Tréfaut diz ter querido transmitir uma forma "muito natural de viver a morte"Se a presença de vida quotidiana num cemitério era uma das motivações do projecto, evitar o bilhete postal era primordial para TréfautCinco anos de trabalho, sempre em trânsito entre Lisboa e o Cairo

Cinco anos depois de "Lisboetas", Sérgio Tréfaut mostra ao público a sua viagem a um universo completamente diferente mas igualmente escondido no interior de uma cidade: "A Cidade dos Mortos", sobre a vida quotidiana nos cemitérios do Cairo. Jorge Mourinha

""Lisboetas" era um filme sobre uma coisa que está por todo o lado e que tinha um grau de invisibilidade apesar disso tudo. Este é sobre algo que não querem deixar ver, que é diferente."

Esse "algo" é o milhão de pessoas que vive nos cemitérios do Cairo, espalhadas por uma necrópole que ocupa um quarto da área da capital egípcia. "El"Arafa", "a cidade dos mortos", é o nome que os cairotas dão aquele lugar. "A densidade populacional ali é baixa, e no entanto você tem ruelas cheias de criancinhas a jogar futebol durante o dia. É muito vivo, muito ameno, você sente que está a passear numa aldeola do Alentejo..."

Durante cinco anos de trabalho, sempre em trânsito entre Lisboa e o Cairo, o documentarista Sérgio Tréfaut, autor de "Lisboetas" (2004), partiu à aventura para uma cultura que não dominava, para filmar um retrato celebratório de uma vida normal paredes-meias com a morte. "A relação com a morte é algo muito importante, e fascinou-me o modo como ela é resolvida naquele lugar," explica, invocando o filósofo francês Michel Foucault. "Hoje, nas sociedades contemporâneas, pusemos fora os hospitais, as prisões, os loucos e os mortos. Até ao final do século XIX, o velório [de um morto] era feito em casa. Hoje, uma criança não vê sequer um cão morto, não sabe o que é a morte. E, para aquela gente, túmulos, ossos, corpos a degradarem-se é o pão nosso de cada dia. Quis transmitir essa forma muito natural de viver a morte."

O resultado chega esta semana às salas, depois de um percurso por mais de uma dúzia de festivais que lhe valeu o prémio máximo do madrileno Documenta e já garantiu o interesse da estação televisiva al-Jazeera em exibir o filme. "A Cidade dos Mortos", pouco mais de uma hora de viagem pelo quotidiano daqueles que se instalaram de armas e bagagens nos cemitérios cairotas, surge acompanhado da curta "Waiting for Paradise", "um "divertissement" despretensioso" de vinte minutos sobre os casamentos dos habitantes locais, montado a partir de material que não coube no filme mas que Tréfaut ficou com "má consciência" de não utilizar. Aliás, "é uma dor de cabeça ter material dessa ordem e ter de o condenar em nome do equilíbrio..."

Um filme clandestino

"A Cidade dos Mortos" é um filme "clandestino", nas palavras do realizador: os infindáveis esforços para obter autorização de rodagem junto das autoridades egípcias foram ignorados, o que acabou por impedir o envolvimento de produtores locais que não quiseram arriscar filmar sem documento oficial. As rodagens acabaram por ser de guerrilha, "cada vez que estávamos no cemitério e aparecia um polícia, tínhamos de desmontar tudo, dizíamos que íamos visitar amigos", e foram perseguidas por problemas técnicos. "Tem a ver comigo fazer coisas que parecem impossíveis. É suicidário e parto o nariz muitas vezes, tanto que o filme arranca em 2004 e só fica pronto em 2009. A língua era um obstáculo, a cultura era um obstáculo, visualmente era um obstáculo porque aquilo não parece um cemitério nem por nada deste mundo... Se já tinha sido difícil entrar em contacto com algumas comunidades [emigrantes] em Lisboa, na cidade onde vivo, imagine num lugar daqueles, onde um estrangeiro pode ser mal visto... "

Mas, à chegada, percebe-se no modo como Tréfaut fala um orgulho mal disfarçado, um prazer enorme por ter feito o filme que quis, como o quis - mesmo que, na sua versão final, dure pouco mais de uma hora. Não por precisar de responder a qualquer tipo de formatações, apenas porque sim. "Gosto muito mais desta versão do que das outras, mais longas. Uma boa refeição é uma refeição que, quando chega ao fim, deixa vontade de comer um bocadinho mais... Há muita indulgência relativamente aos autores que são complacentes. Eu não sou."

Essa recusa de complacência prolongou-se no processo de construção do filme, que foi mudando ao longo dos cinco anos entre o arranque do projecto e a conclusão da montagem. "Comecei pelo desafio do documentário observacional, sabendo que seria difícil ter as tensões e os conflitos e as revelações que fazem com que um filme desses tenha força. Depois, procurei uma estrutura narrativa, com os noivos que se casavam, mas aquilo não funcionava porque eles nunca mais casavam... Finalmente, pensei na voz de um narrador como algo que exprimisse algo de espiritual, um sentimento por aquele lugar, e quis que essa dimensão marcasse o filme. Tentei contar o amor que algumas daquelas pessoas têm àquele lugar. Que é um tabu difícil de aceitar, sobretudo para os egípcios."

Esse tabu é a "ocupação selvagem" dos cemitérios cairotas como alojamento para aqueles que não conseguiam encontrar outros locais, iniciada nos anos 1960 "quando os israelitas bombardearam as cidades do Mar Vermelho e alguns vieram instalar-se no cemitério. Alguns dos migrantes foram para ali, outros para outros lugares que, embora não sendo cemitérios, são por vezes de muito pior qualidade de vida. As opiniões são diferentes: há pessoas que amam aquilo, há pessoas que querem que o túmulo dos seus pais seja recuperado... As pessoas que são do Cairo gostariam que aquilo não existisse. Mas o governo oferece a dado momento realojamento: há quem não queira, há outros a quem é oferecida uma casa a 15km do centro, aceitam, alugam a casa a 15km e voltam para ali!"

Se a presença de vida quotidiana num cemitério era uma das motivações do projecto, evitar o bilhete postal era primordial para o realizador, que cita o exemplo da prática religiosa, invisível no filme, para explicar essa fuga ao que chama "folclore". "Filmei muito a religião, mas achei que tinha um lado folclórico que eu não queria dar. Os egípcios são dos povos mais orgulhosos, amam o seu país e a sua identidade, com Mubarak ou sem Mubarak. Têm um terrível receio que o forasteiro venha fazer um retrato de miséria. Eu tinha que explicar-lhes que a minha intenção não era essa."

O cozinheiro a sério

Inevitavelmente, impõe-se perguntar como Tréfaut, que viveu no Cairo durante a produção, vê a reviravolta política no Egipto. "Quando estive no festival do Dubai em Dezembro, encontrei amigas egípcias e disse-lhes do alto da minha ingenuidade que as coisas estavam a ficar muito esquisitas, e elas "não, não, não, está tudo igual, tudo na mesma"... Passados dois meses estava a acontecer tudo e, claro, estava sempre a telefonar para o Cairo para saber o que se passava... Senti uma frustração de não ter estado lá e de não ter vivido aquilo no dia-a-dia, mas existe neste momento uma coisa tão aberta para o que vai acontecer que só mesmo um sentimento egípcio habitual a pode expressar: "Insha"Allah" ["se Deus quiser"]. Como se em português eles dissessem "tudo se há de resolver", e isso não é garantia de nada. Estou morto por ir para lá" - Tréfaut viaja ao Cairo em Maio para mostrar o filme aos que nele participam - "mas não estou com uma fé estrondosa que tudo esteja resolvido. O grau de injustiça social no Egipto é tão grande que não sei como é que se parte para um reequilíbrio..."

Os acontecimentos no Egipto acabam por colorir a estreia portuguesa do filme, mas foi "um acaso"."A Cidade dos Mortos" é distribuído em regime de "edição de autor", através da Faux, estrutura de Tréfaut. "Há distribuidores independentes que trabalham bem, mas o meu modelo é o cozinheiro que é cozinheiro a sério: vai ao mercado, escolhe o peixe, sabe o preço, escolhe as batatas, sabe onde vai buscar o vinho... Não partilho nada essa ideia da separação da produção da realização da distribuição..."

E também não é por aí que se deve ler o "atraso" de ano e meio por relação à conclusão do filme e ao seu percurso por festivais. "Foi, apenas, porque faço outras coisas. Sempre quis estrear o filme, mas sem pressa. Pôr um filme em sala é um trabalho a tempo inteiro durante dois meses, e quando você faz várias coisas ao mesmo tempo, tem de saber o que faz em cada momento. Entre terminar este filme e mostrá-lo no primeiro festival, tive dois DocLisboas pelo meio, uma direcção da Apordoc, a sucessão de uma direcção, entretanto rodei uma longa de ficção ["Viagem a Portugal", a concurso em Maio no Indie]... não dou para tudo."

E - talvez a principal razão para um filme que fala de vida e de morte - ""A Cidade dos Mortos" não envelhece. Não é uma coisa que morra de um dia para o outro."

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Tréfaut diz ter querido transmitir uma forma "muito natural de viver a morte"Se a presença de vida quotidiana num cemitério era uma das motivações do projecto, evitar o bilhete postal era primordial para TréfautCinco anos de trabalho, sempre em trânsito entre Lisboa e o Cairo

Cinco anos depois de "Lisboetas", Sérgio Tréfaut mostra ao público a sua viagem a um universo completamente diferente mas igualmente escondido no interior de uma cidade: "A Cidade dos Mortos", sobre a vida quotidiana nos cemitérios do Cairo. Jorge Mourinha

""Lisboetas" era um filme sobre uma coisa que está por todo o lado e que tinha um grau de invisibilidade apesar disso tudo. Este é sobre algo que não querem deixar ver, que é diferente."

Esse "algo" é o milhão de pessoas que vive nos cemitérios do Cairo, espalhadas por uma necrópole que ocupa um quarto da área da capital egípcia. "El"Arafa", "a cidade dos mortos", é o nome que os cairotas dão aquele lugar. "A densidade populacional ali é baixa, e no entanto você tem ruelas cheias de criancinhas a jogar futebol durante o dia. É muito vivo, muito ameno, você sente que está a passear numa aldeola do Alentejo..."

Durante cinco anos de trabalho, sempre em trânsito entre Lisboa e o Cairo, o documentarista Sérgio Tréfaut, autor de "Lisboetas" (2004), partiu à aventura para uma cultura que não dominava, para filmar um retrato celebratório de uma vida normal paredes-meias com a morte. "A relação com a morte é algo muito importante, e fascinou-me o modo como ela é resolvida naquele lugar," explica, invocando o filósofo francês Michel Foucault. "Hoje, nas sociedades contemporâneas, pusemos fora os hospitais, as prisões, os loucos e os mortos. Até ao final do século XIX, o velório [de um morto] era feito em casa. Hoje, uma criança não vê sequer um cão morto, não sabe o que é a morte. E, para aquela gente, túmulos, ossos, corpos a degradarem-se é o pão nosso de cada dia. Quis transmitir essa forma muito natural de viver a morte."

O resultado chega esta semana às salas, depois de um percurso por mais de uma dúzia de festivais que lhe valeu o prémio máximo do madrileno Documenta e já garantiu o interesse da estação televisiva al-Jazeera em exibir o filme. "A Cidade dos Mortos", pouco mais de uma hora de viagem pelo quotidiano daqueles que se instalaram de armas e bagagens nos cemitérios cairotas, surge acompanhado da curta "Waiting for Paradise", "um "divertissement" despretensioso" de vinte minutos sobre os casamentos dos habitantes locais, montado a partir de material que não coube no filme mas que Tréfaut ficou com "má consciência" de não utilizar. Aliás, "é uma dor de cabeça ter material dessa ordem e ter de o condenar em nome do equilíbrio..."

Um filme clandestino

"A Cidade dos Mortos" é um filme "clandestino", nas palavras do realizador: os infindáveis esforços para obter autorização de rodagem junto das autoridades egípcias foram ignorados, o que acabou por impedir o envolvimento de produtores locais que não quiseram arriscar filmar sem documento oficial. As rodagens acabaram por ser de guerrilha, "cada vez que estávamos no cemitério e aparecia um polícia, tínhamos de desmontar tudo, dizíamos que íamos visitar amigos", e foram perseguidas por problemas técnicos. "Tem a ver comigo fazer coisas que parecem impossíveis. É suicidário e parto o nariz muitas vezes, tanto que o filme arranca em 2004 e só fica pronto em 2009. A língua era um obstáculo, a cultura era um obstáculo, visualmente era um obstáculo porque aquilo não parece um cemitério nem por nada deste mundo... Se já tinha sido difícil entrar em contacto com algumas comunidades [emigrantes] em Lisboa, na cidade onde vivo, imagine num lugar daqueles, onde um estrangeiro pode ser mal visto... "

Mas, à chegada, percebe-se no modo como Tréfaut fala um orgulho mal disfarçado, um prazer enorme por ter feito o filme que quis, como o quis - mesmo que, na sua versão final, dure pouco mais de uma hora. Não por precisar de responder a qualquer tipo de formatações, apenas porque sim. "Gosto muito mais desta versão do que das outras, mais longas. Uma boa refeição é uma refeição que, quando chega ao fim, deixa vontade de comer um bocadinho mais... Há muita indulgência relativamente aos autores que são complacentes. Eu não sou."

Essa recusa de complacência prolongou-se no processo de construção do filme, que foi mudando ao longo dos cinco anos entre o arranque do projecto e a conclusão da montagem. "Comecei pelo desafio do documentário observacional, sabendo que seria difícil ter as tensões e os conflitos e as revelações que fazem com que um filme desses tenha força. Depois, procurei uma estrutura narrativa, com os noivos que se casavam, mas aquilo não funcionava porque eles nunca mais casavam... Finalmente, pensei na voz de um narrador como algo que exprimisse algo de espiritual, um sentimento por aquele lugar, e quis que essa dimensão marcasse o filme. Tentei contar o amor que algumas daquelas pessoas têm àquele lugar. Que é um tabu difícil de aceitar, sobretudo para os egípcios."

Esse tabu é a "ocupação selvagem" dos cemitérios cairotas como alojamento para aqueles que não conseguiam encontrar outros locais, iniciada nos anos 1960 "quando os israelitas bombardearam as cidades do Mar Vermelho e alguns vieram instalar-se no cemitério. Alguns dos migrantes foram para ali, outros para outros lugares que, embora não sendo cemitérios, são por vezes de muito pior qualidade de vida. As opiniões são diferentes: há pessoas que amam aquilo, há pessoas que querem que o túmulo dos seus pais seja recuperado... As pessoas que são do Cairo gostariam que aquilo não existisse. Mas o governo oferece a dado momento realojamento: há quem não queira, há outros a quem é oferecida uma casa a 15km do centro, aceitam, alugam a casa a 15km e voltam para ali!"

Se a presença de vida quotidiana num cemitério era uma das motivações do projecto, evitar o bilhete postal era primordial para o realizador, que cita o exemplo da prática religiosa, invisível no filme, para explicar essa fuga ao que chama "folclore". "Filmei muito a religião, mas achei que tinha um lado folclórico que eu não queria dar. Os egípcios são dos povos mais orgulhosos, amam o seu país e a sua identidade, com Mubarak ou sem Mubarak. Têm um terrível receio que o forasteiro venha fazer um retrato de miséria. Eu tinha que explicar-lhes que a minha intenção não era essa."

O cozinheiro a sério

Inevitavelmente, impõe-se perguntar como Tréfaut, que viveu no Cairo durante a produção, vê a reviravolta política no Egipto. "Quando estive no festival do Dubai em Dezembro, encontrei amigas egípcias e disse-lhes do alto da minha ingenuidade que as coisas estavam a ficar muito esquisitas, e elas "não, não, não, está tudo igual, tudo na mesma"... Passados dois meses estava a acontecer tudo e, claro, estava sempre a telefonar para o Cairo para saber o que se passava... Senti uma frustração de não ter estado lá e de não ter vivido aquilo no dia-a-dia, mas existe neste momento uma coisa tão aberta para o que vai acontecer que só mesmo um sentimento egípcio habitual a pode expressar: "Insha"Allah" ["se Deus quiser"]. Como se em português eles dissessem "tudo se há de resolver", e isso não é garantia de nada. Estou morto por ir para lá" - Tréfaut viaja ao Cairo em Maio para mostrar o filme aos que nele participam - "mas não estou com uma fé estrondosa que tudo esteja resolvido. O grau de injustiça social no Egipto é tão grande que não sei como é que se parte para um reequilíbrio..."

Os acontecimentos no Egipto acabam por colorir a estreia portuguesa do filme, mas foi "um acaso"."A Cidade dos Mortos" é distribuído em regime de "edição de autor", através da Faux, estrutura de Tréfaut. "Há distribuidores independentes que trabalham bem, mas o meu modelo é o cozinheiro que é cozinheiro a sério: vai ao mercado, escolhe o peixe, sabe o preço, escolhe as batatas, sabe onde vai buscar o vinho... Não partilho nada essa ideia da separação da produção da realização da distribuição..."

E também não é por aí que se deve ler o "atraso" de ano e meio por relação à conclusão do filme e ao seu percurso por festivais. "Foi, apenas, porque faço outras coisas. Sempre quis estrear o filme, mas sem pressa. Pôr um filme em sala é um trabalho a tempo inteiro durante dois meses, e quando você faz várias coisas ao mesmo tempo, tem de saber o que faz em cada momento. Entre terminar este filme e mostrá-lo no primeiro festival, tive dois DocLisboas pelo meio, uma direcção da Apordoc, a sucessão de uma direcção, entretanto rodei uma longa de ficção ["Viagem a Portugal", a concurso em Maio no Indie]... não dou para tudo."

E - talvez a principal razão para um filme que fala de vida e de morte - ""A Cidade dos Mortos" não envelhece. Não é uma coisa que morra de um dia para o outro."

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