Dias com árvores: Planimundo

19-12-2009
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Imagine uma maçã a ser fatiada por uma faca: cada fatia é uma figura plana com um formato que recorda o da maçã inteira. Mas, se sempre tivesse vivido confinado a um plano, conheceria apenas as fatias isoladas da maçã: conseguiria ainda assim reuni-las mentalmente e adivinhar a forma tridimensional do fruto?Este é um dos desafios que Edwin A. Abbott (1838-1926) propõe em Flatland: a romance of many dimensions (1884), uma aventura de percepção num mundo plano, com personagens inspiradas na matemática e regras de relacionamento copiadas da sociedade inglesa do século XIX. Tal como em Platão, estes seres só têm acesso a impressões que resultam de sombras de objectos sólidos projectadas numa parede. Mas é cenário propício para uma sátira aos preconceitos da Inglaterra vitoriana, onde a ascensão social não se fazia por mérito e poucas mulheres tinham acesso ao ensino.As personagens masculinas, que corporizam o saber racional, são circunferências ou polígonos (triângulos, quadrados, pentágonos,...), sendo tanto mais sábias quanto mais lados tiverem. Os soldados são triângulos, as circunferências - que, encaradas como polígonos com infinitos lados, representam a sabedoria suprema- são os sacerdotes desta história. Nesta sociedade, os filhos nascem com mais um lado do que os pais, o que significa que cada geração sobe um degrau na escala social; mas, naturalmente, os sacerdotes estão impedidos de procriarem. As figuras femininas, que personificam o saber intuitivo, e também conceitos abstractos como a lealdade ou o amor, são meros segmentos de recta. Sendo tão estreitas e tão pouco inteligentes, mal compreendem a linguagem masculina, cujos meandros lhes são propositadamente ocultados. Mas são seres perigosos e temidos: têm o poder de se tornarem invisíveis (um segmento visto da extremidade reduz-se a um ponto) e de, usando o seu formato de agulhas, furarem e destruírem os polígonos.Hábil no manejo da ironia, Abbott, ao contrário do que é usual em relatos de viagens a mundos exóticos, dá voz de narrador ao anfitrião (um quadrado) e não ao visitante; e o quadrado vai mudando de perspectiva, e de sensibilidade, por influência do que vai ouvindo ao estranho que vem do espaço, apesar das naturais dificuldades de comunicação. Pelo caminho, cruzamo-nos com várias pérolas da geometria que, interpretadas neste mundo, são acessíveis a matemáticos e a leigos.Abbott foi também estudioso de Shakespeare e são muitas as alusões ao dramaturgo neste livro. Algumas distorcidas, como «One touch of nature makes all worlds akin» - que, no original, da tragicomédia Troilus and Cressida, é «One touch of nature makes the whole world kin». Contudo o livro não refere plantas neste universo achatado; por isso fomos à procura de uma que se pudesse encaixar numa espessura mínima sem se deformar em demasia. Deveria ser vulgar no nosso mundo, para que a reconhecêssemos facilmente mesmo num contexto incomum; e certamente teria de ser uma trepadeira, das que ascendem unidas às paredes da cidade como uma segunda pele, que não temem a ausência de sombra e que pintam aguarela que disfarça o tédio das nossas esquinas. Ficus pumila


Imagine uma maçã a ser fatiada por uma faca: cada fatia é uma figura plana com um formato que recorda o da maçã inteira. Mas, se sempre tivesse vivido confinado a um plano, conheceria apenas as fatias isoladas da maçã: conseguiria ainda assim reuni-las mentalmente e adivinhar a forma tridimensional do fruto?Este é um dos desafios que Edwin A. Abbott (1838-1926) propõe em Flatland: a romance of many dimensions (1884), uma aventura de percepção num mundo plano, com personagens inspiradas na matemática e regras de relacionamento copiadas da sociedade inglesa do século XIX. Tal como em Platão, estes seres só têm acesso a impressões que resultam de sombras de objectos sólidos projectadas numa parede. Mas é cenário propício para uma sátira aos preconceitos da Inglaterra vitoriana, onde a ascensão social não se fazia por mérito e poucas mulheres tinham acesso ao ensino.As personagens masculinas, que corporizam o saber racional, são circunferências ou polígonos (triângulos, quadrados, pentágonos,...), sendo tanto mais sábias quanto mais lados tiverem. Os soldados são triângulos, as circunferências - que, encaradas como polígonos com infinitos lados, representam a sabedoria suprema- são os sacerdotes desta história. Nesta sociedade, os filhos nascem com mais um lado do que os pais, o que significa que cada geração sobe um degrau na escala social; mas, naturalmente, os sacerdotes estão impedidos de procriarem. As figuras femininas, que personificam o saber intuitivo, e também conceitos abstractos como a lealdade ou o amor, são meros segmentos de recta. Sendo tão estreitas e tão pouco inteligentes, mal compreendem a linguagem masculina, cujos meandros lhes são propositadamente ocultados. Mas são seres perigosos e temidos: têm o poder de se tornarem invisíveis (um segmento visto da extremidade reduz-se a um ponto) e de, usando o seu formato de agulhas, furarem e destruírem os polígonos.Hábil no manejo da ironia, Abbott, ao contrário do que é usual em relatos de viagens a mundos exóticos, dá voz de narrador ao anfitrião (um quadrado) e não ao visitante; e o quadrado vai mudando de perspectiva, e de sensibilidade, por influência do que vai ouvindo ao estranho que vem do espaço, apesar das naturais dificuldades de comunicação. Pelo caminho, cruzamo-nos com várias pérolas da geometria que, interpretadas neste mundo, são acessíveis a matemáticos e a leigos.Abbott foi também estudioso de Shakespeare e são muitas as alusões ao dramaturgo neste livro. Algumas distorcidas, como «One touch of nature makes all worlds akin» - que, no original, da tragicomédia Troilus and Cressida, é «One touch of nature makes the whole world kin». Contudo o livro não refere plantas neste universo achatado; por isso fomos à procura de uma que se pudesse encaixar numa espessura mínima sem se deformar em demasia. Deveria ser vulgar no nosso mundo, para que a reconhecêssemos facilmente mesmo num contexto incomum; e certamente teria de ser uma trepadeira, das que ascendem unidas às paredes da cidade como uma segunda pele, que não temem a ausência de sombra e que pintam aguarela que disfarça o tédio das nossas esquinas. Ficus pumila

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