Dias com árvores: A quimera do luxo

19-12-2009
marcar artigo


Fotos: pva 0504 - Hospital Santos Silva - Gaia: tílias (1.ª foto); sobreiro, castanheiro e tília (2.ª foto); tílias, veigelas, pinheiros e hortênsias (3.ª foto); carvalho-alvarinho (4.ª foto)O Hospital Eduardo Santos Silva, no Monte da Virgem (Gaia), está situado num recinto amplo em terreno onduloso e densamente arborizado: inúmeras árvores de grande porte, sombras frondosas, recantos ajardinados e, como moldura de todo o complexo, uma mata de sobreiros e carvalhos forrando a encosta. Apesar do mau estado dos edifícios, o ambiente repousante é já meio caminho para a cura. Para compreender o privilégio que é para a população gaiense ter o seu hospital num local assim, basta recordar a história recente dos dois maiores hospitais do Porto: a ampliação do Santo António, há uma década, sacrificou todo o seu antigo jardim; no São João, os sucessivos acrescentos ao edifício original (incluindo centro comercial e hotel!), e mais recentemente as obras do Metro, fazem temer que a envolvente arbórea do hospital, que começou por ser generosa, desapareça quase por completo.Se os edifícios fossem recuperados ou reconstruídos, poderia Gaia ter um dos mais acolhedores hospitais do país. A ideia de hospital acolhedor nada tem de contra-senso, e decorre até do humanismo mais básico: trata-se de apaziguar a tragédia da doença com um ambiente aconchegante, que não se assemelhe ao de uma prisão ou quartel. Como este modo de pensar é pouco correntio mesmo entre políticos ex-médicos, planeava-se, até há poucos dias, construir o Hospital de Gaia noutro local, destinando-se os terrenos no Monte da Virgem ao inevitável condomínio de luxo. O que sem dúvida tem a sua coerência: num concelho onde escasseiam os locais aprazíveis, é natural que eles sejam um luxo só acessível a meia-dúzia de afortunados. A urbanização do actual recinto hospitalar até poderia conservar todas as árvores, mas o comum dos cidadãos deixaria de usufruir delas; e a multiplicação de condomínios fechados, de vidas que se resguardam do contágio de outras vidas, é uma fractura que vai minando o próprio conceito de cidade.E como não pôr em dúvida a razoabilidade económica da edificação galopante que vai avassalando Gaia? Mesmo em prédios novos e em zonas comparativamente apetecíveis, como a vizinhança do Jardim Soares do Reis, são muitos os apartamentos devolutos. A Câmara tarda em compreender que, não sendo cada português obrigado por lei a ter mais do que uma residência, só pela valorização do espaço público pode o negócio imobiliário ter futuro. Pois quem se deixa iludir pelo condomínio dito de luxo se tudo à volta é inóspito, sem jardins, sem espaços para crianças, tantas vezes sem passeios nas ruas?O caso do Hospital de Gaia registou há poucos dias uma feliz evolução: o Ministro da Saúde, na passada segunda-feira, declarou que a decisão de se construir o hospital noutro local será reavaliada, ponderando-se a hipótese de ele se manter onde está com instalações remodeladas. Oxalá que, mesmo com a discordância do Presidente da Câmara, entusiasta defensor do condomínio de luxo, essa sábia decisão não seja revertida.


Fotos: pva 0504 - Hospital Santos Silva - Gaia: tílias (1.ª foto); sobreiro, castanheiro e tília (2.ª foto); tílias, veigelas, pinheiros e hortênsias (3.ª foto); carvalho-alvarinho (4.ª foto)O Hospital Eduardo Santos Silva, no Monte da Virgem (Gaia), está situado num recinto amplo em terreno onduloso e densamente arborizado: inúmeras árvores de grande porte, sombras frondosas, recantos ajardinados e, como moldura de todo o complexo, uma mata de sobreiros e carvalhos forrando a encosta. Apesar do mau estado dos edifícios, o ambiente repousante é já meio caminho para a cura. Para compreender o privilégio que é para a população gaiense ter o seu hospital num local assim, basta recordar a história recente dos dois maiores hospitais do Porto: a ampliação do Santo António, há uma década, sacrificou todo o seu antigo jardim; no São João, os sucessivos acrescentos ao edifício original (incluindo centro comercial e hotel!), e mais recentemente as obras do Metro, fazem temer que a envolvente arbórea do hospital, que começou por ser generosa, desapareça quase por completo.Se os edifícios fossem recuperados ou reconstruídos, poderia Gaia ter um dos mais acolhedores hospitais do país. A ideia de hospital acolhedor nada tem de contra-senso, e decorre até do humanismo mais básico: trata-se de apaziguar a tragédia da doença com um ambiente aconchegante, que não se assemelhe ao de uma prisão ou quartel. Como este modo de pensar é pouco correntio mesmo entre políticos ex-médicos, planeava-se, até há poucos dias, construir o Hospital de Gaia noutro local, destinando-se os terrenos no Monte da Virgem ao inevitável condomínio de luxo. O que sem dúvida tem a sua coerência: num concelho onde escasseiam os locais aprazíveis, é natural que eles sejam um luxo só acessível a meia-dúzia de afortunados. A urbanização do actual recinto hospitalar até poderia conservar todas as árvores, mas o comum dos cidadãos deixaria de usufruir delas; e a multiplicação de condomínios fechados, de vidas que se resguardam do contágio de outras vidas, é uma fractura que vai minando o próprio conceito de cidade.E como não pôr em dúvida a razoabilidade económica da edificação galopante que vai avassalando Gaia? Mesmo em prédios novos e em zonas comparativamente apetecíveis, como a vizinhança do Jardim Soares do Reis, são muitos os apartamentos devolutos. A Câmara tarda em compreender que, não sendo cada português obrigado por lei a ter mais do que uma residência, só pela valorização do espaço público pode o negócio imobiliário ter futuro. Pois quem se deixa iludir pelo condomínio dito de luxo se tudo à volta é inóspito, sem jardins, sem espaços para crianças, tantas vezes sem passeios nas ruas?O caso do Hospital de Gaia registou há poucos dias uma feliz evolução: o Ministro da Saúde, na passada segunda-feira, declarou que a decisão de se construir o hospital noutro local será reavaliada, ponderando-se a hipótese de ele se manter onde está com instalações remodeladas. Oxalá que, mesmo com a discordância do Presidente da Câmara, entusiasta defensor do condomínio de luxo, essa sábia decisão não seja revertida.

marcar artigo