Dias com árvores: Surge o poeta da flor

29-05-2010
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«Disse-me que se autotitulara Poeta da Flor, e como tal queria ser tratado. Porque sua especialidade era flor.- Tem preferências?- Qualquer flor. Todas. Apenas dedico menos atenção à rosa, que se tornou inflacionária em poesia (ah, Rilke e Gertrude Stein!) e ao lírio, com i ou com y, de que os simbolistas abusaram. Da margarida não falo. Vou deixar passar essa onda de tecidos, xícaras, caras e pernas estampadas, e de gripe, para ver se posso fazer alguma coisa em favor da margarida. Esse pessoal é engraçado. De repente, pega uma flor e pensa que é feijão, de consumo obrigatório. Amanhã são capazes de descobrir a georgina.- Georgina?- É a nossa velha dália, que tem esse nome na Europa Central. Enquanto não a tornam hippie, fiz este poeminha:Dá-lhe dália Dalidadélia seiva de Scèvesalve!Gostou? Se não gostou, não faz mal. Eu gostei, eu que fiz. Repare quanta coisa pus em oito palavrinhas, a maior das quais com seis letras: uma cantora moderna, um poeta antigo com seu poema famoso, um grito hípico, uma saudação à flor, que, sendo variabilis na classificação científica, autoriza variações aliteradas. Certamente não notou, mas escorre seiva pelo talo do poema, com eles e esses.- Estou notando.- Dei um exemplo. Sabe o que é lidar com milhares, milhões de espécies florais, na maioria inteiramente inexploradas, pedindo verso, pedindo expressão? (...) Quero fazer um poema para cada uma das flores existentes (...).- Mas ... não receia ser acusado de alienação?- Quem: eu, alienado? Duvido que os poetas engajados do homem-na-história, do contra-o-napalm, etc., digam mais do que eu na minha cantada floral. (...) Cantando flor a gente diz tudo, e eles (o senhor sabe quem são) não podem fazer nada com a gente!»Carlos Drummond de Andrade, Caminhos de João Brandão (1970)


«Disse-me que se autotitulara Poeta da Flor, e como tal queria ser tratado. Porque sua especialidade era flor.- Tem preferências?- Qualquer flor. Todas. Apenas dedico menos atenção à rosa, que se tornou inflacionária em poesia (ah, Rilke e Gertrude Stein!) e ao lírio, com i ou com y, de que os simbolistas abusaram. Da margarida não falo. Vou deixar passar essa onda de tecidos, xícaras, caras e pernas estampadas, e de gripe, para ver se posso fazer alguma coisa em favor da margarida. Esse pessoal é engraçado. De repente, pega uma flor e pensa que é feijão, de consumo obrigatório. Amanhã são capazes de descobrir a georgina.- Georgina?- É a nossa velha dália, que tem esse nome na Europa Central. Enquanto não a tornam hippie, fiz este poeminha:Dá-lhe dália Dalidadélia seiva de Scèvesalve!Gostou? Se não gostou, não faz mal. Eu gostei, eu que fiz. Repare quanta coisa pus em oito palavrinhas, a maior das quais com seis letras: uma cantora moderna, um poeta antigo com seu poema famoso, um grito hípico, uma saudação à flor, que, sendo variabilis na classificação científica, autoriza variações aliteradas. Certamente não notou, mas escorre seiva pelo talo do poema, com eles e esses.- Estou notando.- Dei um exemplo. Sabe o que é lidar com milhares, milhões de espécies florais, na maioria inteiramente inexploradas, pedindo verso, pedindo expressão? (...) Quero fazer um poema para cada uma das flores existentes (...).- Mas ... não receia ser acusado de alienação?- Quem: eu, alienado? Duvido que os poetas engajados do homem-na-história, do contra-o-napalm, etc., digam mais do que eu na minha cantada floral. (...) Cantando flor a gente diz tudo, e eles (o senhor sabe quem são) não podem fazer nada com a gente!»Carlos Drummond de Andrade, Caminhos de João Brandão (1970)

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