Dias com árvores: Lembrar Garrett

18-12-2009
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A cidade tem andado esquecida. Desculpar-se-á com o emaranhado de afazeres diários que lhe enevoam a sensibilidade, com os canónicos dissabores do Outono chuvoso, com as arrelias neste torrão de lágrimas. Mas não há perdão para o desinteresse oficial por efeméride de tanto relevo: Almeida Garrett faleceu há 150 anos e seria de todo pertinente que a cultura portuense sublinhasse a data com evocação especial da obra do escritor. Como registo dessa efeméride, só a carta de Manuel António Pina (in Visão, Agosto de 2004) ao poder camarário:«Exmo. Sr. Presidente da Câmara do Porto:Almeida Garrett morreu há 150 anos. Talvez V. Excia. não esteja, assim de repente, a ver de quem se trata, mas se tiver a maçada de olhar pela janela do gabinete há-de reparar numa estátua colocada na praça fronteira aos Paços do Concelho: Almeida Garrett é esse, como confirmará mandando alguém lá abaixo.Estranhará V. Excia. que o venham tirar das fadigosas congeminações camarárias para lhe dizer que o tal Almeida Qualquer Coisa morreu há 150 anos, e perguntará justificadamente: "Que tenho eu com isso?" Na verdade, V. Excia. não tem nada com isso. Nem a circunstância de o homem ter nascido no Porto, cidade (às vezes chamada "cidade de Garrett") a cujos destinos V. Excia. preside, é decerto motivo bastante, já que todos os dias nasce gente no Porto. (...)Ora para que não se comente que o "leal, paciente e bom povo" do Porto (...) não honra os seus filhos, talvez V. Excia. queira, tendo tempo, considerar uma qualquer evocação da efeméride antes do termo do ano, mesmo que a preço de alguns foguetes a menos na próxima sessão de fogo-de-artifício. (...)Isto, apesar de já ter sido dito, (...) que "a maior honra que podem fazer ao eminente escriptor é ensinarem a gente do Porto a ler, e depois mais tarde darem-lhe para admirar os escriptos do seu patrício". Mas, se toda a gente do Porto lesse Garrett, quem sobraria para o fogo-de-artifício?»Se, lendo Garrett, o homenageamos, saboreemos pois um excerto de Viagens na minha terra (1846):«Este é que é o pinhal da Azambuja?Não pode ser.Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico! (...) ...Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão...Por quantas maldições e infernos adornam o estilo dum verdadeiro escritor romântico, digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos desta espessura? Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?... (...) Uns poucos de pinheiros raros e enfezados através dos quais se estão vendo as vinhas e olivedos circunstantes!... É o desapontamento mais chapado e solene que nunca tive na minha vida - uma verdadeira logração em boa e antiga frase portuguesa. E contudo aqui é que devia ser, aqui é que é, geográfica e topograficamente falando, o bem conhecido e confrontado sítio do pinhal da Azambuja... Passaria por aqui algum Orfeu que, pelos mágicos poderes da sua lira, levasse atrás de si as árvores deste antigo e clássico Ménalo dos salteadores lusitanos? Eu não sou muito difícil em admitir prodígios quando não sei explicar os fenómenos por outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se.»


A cidade tem andado esquecida. Desculpar-se-á com o emaranhado de afazeres diários que lhe enevoam a sensibilidade, com os canónicos dissabores do Outono chuvoso, com as arrelias neste torrão de lágrimas. Mas não há perdão para o desinteresse oficial por efeméride de tanto relevo: Almeida Garrett faleceu há 150 anos e seria de todo pertinente que a cultura portuense sublinhasse a data com evocação especial da obra do escritor. Como registo dessa efeméride, só a carta de Manuel António Pina (in Visão, Agosto de 2004) ao poder camarário:«Exmo. Sr. Presidente da Câmara do Porto:Almeida Garrett morreu há 150 anos. Talvez V. Excia. não esteja, assim de repente, a ver de quem se trata, mas se tiver a maçada de olhar pela janela do gabinete há-de reparar numa estátua colocada na praça fronteira aos Paços do Concelho: Almeida Garrett é esse, como confirmará mandando alguém lá abaixo.Estranhará V. Excia. que o venham tirar das fadigosas congeminações camarárias para lhe dizer que o tal Almeida Qualquer Coisa morreu há 150 anos, e perguntará justificadamente: "Que tenho eu com isso?" Na verdade, V. Excia. não tem nada com isso. Nem a circunstância de o homem ter nascido no Porto, cidade (às vezes chamada "cidade de Garrett") a cujos destinos V. Excia. preside, é decerto motivo bastante, já que todos os dias nasce gente no Porto. (...)Ora para que não se comente que o "leal, paciente e bom povo" do Porto (...) não honra os seus filhos, talvez V. Excia. queira, tendo tempo, considerar uma qualquer evocação da efeméride antes do termo do ano, mesmo que a preço de alguns foguetes a menos na próxima sessão de fogo-de-artifício. (...)Isto, apesar de já ter sido dito, (...) que "a maior honra que podem fazer ao eminente escriptor é ensinarem a gente do Porto a ler, e depois mais tarde darem-lhe para admirar os escriptos do seu patrício". Mas, se toda a gente do Porto lesse Garrett, quem sobraria para o fogo-de-artifício?»Se, lendo Garrett, o homenageamos, saboreemos pois um excerto de Viagens na minha terra (1846):«Este é que é o pinhal da Azambuja?Não pode ser.Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico! (...) ...Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão...Por quantas maldições e infernos adornam o estilo dum verdadeiro escritor romântico, digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos desta espessura? Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?... (...) Uns poucos de pinheiros raros e enfezados através dos quais se estão vendo as vinhas e olivedos circunstantes!... É o desapontamento mais chapado e solene que nunca tive na minha vida - uma verdadeira logração em boa e antiga frase portuguesa. E contudo aqui é que devia ser, aqui é que é, geográfica e topograficamente falando, o bem conhecido e confrontado sítio do pinhal da Azambuja... Passaria por aqui algum Orfeu que, pelos mágicos poderes da sua lira, levasse atrás de si as árvores deste antigo e clássico Ménalo dos salteadores lusitanos? Eu não sou muito difícil em admitir prodígios quando não sei explicar os fenómenos por outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se.»

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